quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ontem fui à Travessa da Espera

Anteontem e ontem estive em Lisboa a tratar de assuntos diversos relacionados com uma das minhas actividades e, mesmo em cima da hora de me vir embora, passei pelo Bairro Alto onde me aguardava o meu filho Vicente por causa de uma mudança de móveis. Uns cunhados meus foram viver para Nova Iorque e deixaram vago um terceiro andar/águas furtadas na Travessa da Espera. Ficam num edifício com história, familiar e não só, e no qual a Mariana e eu, no rés-do-chão, passámos os dois primeiros anos depois de casarmos. Chega-se ao dito terceiro andar por umas escadas que existem no miolo do prédio, sobre as quais uma enorme clarabóia deixa cair luz a jorros. Já junto ao telhado, todos os aposentos são cheios de luz, também, com janelas grandes, mirantes sobre as telhas e vidraças de trapeira. Havia sol e, dentro, todos os aposentos estavam e estão com aquele ar de abandono, falhos de móveis, trastes espalhados, restos de papelada, algumas estantes e armários vazios. Na entrada há ainda o espaço dos bilhetes de recados com alguns punaises a prender folhinhas e aqui e ali ficou nas paredes esta ou aquela moldura, alguns bibelots pelo chão, bric-à-brac por todo o lado, abandonado deste lado do Atlântico. E livros.
Umas poucas dezenas de livros ficaram numa pilha e nuns caixotes de cartão. A Giulia e o Pedro tinham dito que os poderíamos levar. Peguei nuns quantos e trouxe-os. Dois deles, em tamanho dos mais pequenos, chamaram-me a atenção pela capa e há um que me tem feito hoje companhia. Já o folheei e comecei a ler durante a hora de um teste de anatomia que há bocado dei aos alunos. Chama-se Family and Friends, é de uma Anita Brookner, que desconhecia até ontem,e é daqueles que apetece ler de um ápice, que se tem pena de o não ter escrito e que só falta ser comestível: na capa um retrato de Klimt, daqueles que o génio dele faz das mulheres seres etéreos, reais ainda, pintados com cores que são tudo menos cores, são só sensibilidade e riqueza interior. A capa é um detalhe do retrato de Gertha Felsövanyi, pintado em 1902 e que está numa colecção privada da Galeria Welz, de Salzburgo. Ainda por cima, dos de bolso e guardado meses e meses, senão anos, sem ser aberto, tem aquele cheirinho característico dos livros ingleses de bolso antes dos químicos do papel reciclado.
Estou agora com imensa vontade de ler o livro todo (187 páginas), de saber quem é Sofka e o que irá acontecer a Frederick, a Alfred, a Mireille e a Babette (Mimi e Betty) e de saber onde é que a autora desencantou a foto com que começa o livro, uma foto que não vemos mas de cuja descrição parte todo o enredo.
É que é um gosto enorme observar fotos, entrar dentro delas, descobrir e cumprimentar as pessoas que lá estão, viver nas situações, experimentar as alegrias e dramas que chegam através dos olhares. Fotografias de sépia em que pego ou que vejo em computador e que me olham de uma forma inexistente mas, à sua maneira, também etéria, e me interpelam num silêncio e num olhar arrebatador como o olhar sensível e cheio de riqueza interior de um retrato de Klimt. Não me canso de olhar para a Gertha Felsövanyi, nunca me canso de um destes olhares de Klimt! Como será a Anita Brookner?
Eu ontem não sabia, ao andar com o Vicente, aposento a aposento, a imaginar como é que a empresa transportadora irá desmontar e trazer as estantes e cómodas e mesas que vamos trazer para aqui, que hoje iria estar com um puzzlle feito de olhares e a ler um livro escrito a partir de uma foto! Vou ter de mandar um e-mail à Giulia e ao Pedro! A dizer obrigado!

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