domingo, 13 de dezembro de 2009

antes de beber - leia o rótulo!


Vê-se que é um vinho de pipa lavada. Se bem que hoje se usem cubas. E sabe-se – porque se prova – que é um vinho antigo, de bioquímicas sem electricidade, feito com a preocupação de ser vinho e não um produto de prateleira. A plain wine. Que digo eu: preocupação? Devo estar doido ou não dormi bem! Feito com um amor, assim é que é, entranhado pelo chão, pelas plantas, pelas cores das videiras, pelo calor que dão as vides quando se queimam na lareira. Que tudo é vinho: o lavrar e sachar, o podar e tratar, o espoldrar, o colher e esmagar, saber aguardar pela alquimia do mosto, pela alquimia da cuba, pela alquimia da cor que se vê contra a luz num copo facetado, até pela alquimia da evolução do sabor. Que só se sabe se é vinho se for bebido!


Lembro-me bem de que em nossa casa a pipa abria-se sob o lema de “in vino…Baco!”, escrito, aliás, desenhado a giz na porta da adega pela Guida e festejada com uma festarola para a qual se tinham cozinhado almendrados e amarantinos que um grupo de amigos do pai consumia animadamente, juntamente com fatias finas de presunto, pão torrado e salpicões de azeite (haveria mais coisas, decerto, mas são estas as que guardo comigo). E o vinho que se bebia, dessa pipa que se abria, a pipa do canto, mais comprida e respeitada, era parecido com este, um vinho de sabor especial como o é sempre o vinho do dono da casa. Una anos era mais tinto, outros era mais claro, “está mesmo um clarete!” diziam estalando a língua. “Palhete”, chamava-se-lhe por Macedo. E ainda se chama, essência de tons difíceis, amadurecida nestas vinhas de altitude e clima caprichoso (será por isso caprichoso, o nosso vinho?). Um vinho antigo. Bom para beber no Verão, “fresquinho vindo da pipa”, que apesar do tom ou da cor, nada impede que não escorra divinamente do frigorífico para apaziguar a canícula (o nosso Avô Amadeu era dado a astros, sabia as constelações todas e, contava o meu Pai, ele empregava esta palavra na sua verdadeira acepção: canícula era o período de conjunção do Sol com a constelação de Cão, um período do Verão quente e abafado). Deste vinho se fazia o melhor vinagre, num pipo pequeno de tampa aberta, em que o líquido nunca se acabava. E com este vinagre se temperava a água dos cântaros mais retardada, para que não fizesse febres, e se regavam as saladas no prato abundantemente, de certeza pelo mesmo motivo. Mas voltando ao vinho que aqui nos traz, é, por isto tudo, um vinho antigo cujo sabor eu já suspeitava. É que também o nosso tinha uvas de vinho e uvas de mesa. No dia da vindima era preocupação colher aparte os cachos sem defeito dos dedos de dama, da uva de rei, das sem grainha e das outras das cepas da ponta (impossível a Mãe deixar que alguém dissesse que eram as quilhões de galo…). Feita a escolha dos que se penduravam nos pregos da despensa para ir comendo e fazer passas, que não tivessem bagos chochos nem suspeitas de bolores, as outras iam directas para o esmagador de volante e cremalheira e misturavam-se na dorna, mexida diariamente com um trado de madeira, vigiada diariamente com um pesa-mosto. Depois de metido na pipa passava-se o Inverno como se não existisse – a menos que lhe saltasse a tampa, sinal que iríamos ter um vinho turvo – até se lhe meter a torneira a maço, dia de gáudio, “in vino… Baco!”, e se trasvasar para as garrafas. O preparar das garrafas tinha sido uma trabalheira: passadas por água, lavadas com escovilhão de arames, destroços de rolha retirados de dentro delas com utensílios engenhosos, chocalhadas com chumbos de espingarda para lhe destacar das paredes o sarro, as concreções, depósitos esquecidos. Iam-se alinhando. Num caldeiro ferviam as rolhas novas de cortiça, boiando e rebolando na água, rescendendo como se fossem uma infusão de magia (e não o era, tudo aquilo?), apanhadas num ápice para a goela do arrolhador que, com um gemido, as enfiava pelo gargalo da garrafa.

A garrafa verde que ontem me vieram oferecer a casa e tirei de uma caixa, aliás, de umas caixas onde estavam muitas mais, trazia rótulo. Tal como o vinho, não era nem é um rótulo qualquer, pretensiosice paga para captar clientes, cheio de anotações numéricas de normas, atestados e classificações e um paleio mole e piroso a elogiar o vinho… nada disso! É um rótulo elegante e feminino, como se fosse uma garrafa pronta e vestida assim, de vestido curto dos de dançar o Charleston nos anos vinte, colar largueirão de contas vermelhas até à cintura usado para as letras, muito simples e por isso requintada sedução de “que venha a festa que eu estou aqui, sou como sou!”. O Amendoeira 2008 é um vinho histórico. Pelo seu passado e pelo seu significado, bem expresso no rótulo, tão simples e significativo, da CASA DOS SERRAS: diz tudo o que é, como numa declaração de amor feita de coração na mão.

Antes de beber o vinho, comece a saboreá-lo lendo o rótulo, todas as palavras do rótulo, as escritas e as que foram sonhadas para que, vinho e rótulo, se possam ler e beber.

9 comentários:

Anónimo disse...

Olá, olá, Manel,

É inacreditável como consegue a partir de um simples rótulo de uma garrafa de vinho, escrever um texto tão romântico. Mas é assim mesmo, cada um é para o que nasce, e o Manel, além de ter nascido para escrever, alia a isso uma sensibilidade muito especial.

Mais uma vez me fez lembrar muitas coisas que se passaram em casa dos meus Avós, vivências comuns pelos vistos, adormecidas....mas que num ápice, ao ler este texto, ficaram muito vivas... quase como se tivesse voltado atrás no tempo, e estivesse mesmo ali... com todos eles... de quem tantas saudades tenho.

E por último, é claro que vou comprar já este vinho (está à venda não está?), e quando beber o primeiro copo, tchim tchim... faço uma saúde em sua honra.
Beijinhos
Cristina

Cavaleiro Andante disse...

O mosto do sumo das palavras, fermentado ao sabor de uma pena que permite descobrir taninos nas letras. Ou textos com acidez equilibrada, límpidos, bouquet inconfundível... "Abonda cá um copo pra buber um cibinho e bota lá mai'scrita que tamém sabe mim bem bubê-la"

Gonçalo Pimentel disse...

Olá Tio,

E eu que, apesar de ouvinte atento de todas as histórias sobre a casa e família que o ouço contar, não fazia ideia de que já "tínhamos" sido enólogos!

Ainda há poucas semanas fui mais uma vez visitar a Feira Anual do Vinho, no Centro de Congressos de Lisboa, onde prestei o devido respeito e homenagem ao "Vale Pradinhos", caseta onde, quando identifiquei o Tio, logo me disseram que conheciam muito bem, e que, se eu pudesse, que lhe transmitisse os seus cumprimentos.

Pelos visto foram cumprimentos estes, entre "colegas".

Abraço

Gonçalo

LS disse...

Que prenda, fados seus! Ao génio, já nos habituara, mas agora sou testemunha que lhe bastam horas (minutos?) para exalar texto de fazer sonhar, seja qual for o mote!
O vinagre, por exemplo. Nunca algo se “esconjurara” para mudar o que sempre vi trivial nos tempos do meu Avô, amigo do Avô do MC e da geração seguinte. Mas agora “vejo”: o vinagre era ritual e balsâmico, tal e qual como ele nos explica, do fabrico á função. Isto é um exemplo, o resto do texto apela-nos no mesmo modo.
Mas é o acaso do mote que me toca o coração. É assunto entre nós.

deep disse...

Bom dia. Embora não tenha comentado, há dias que li este seu texto e só posso partilhar da opinião (favorável!) dos restantes visitantes.

Aproveito, agora, para lhe desejar um Natal Muito Feliz. :)

Anónimo disse...

Cristina, Senhora Minha
Perdoe o atrevimento deste ‘directo’ de um desconhecido mas suponho que, pelo menos, partilhamos dois encantos: o Autor deste blog e a terra que ele ilustra. Verdadeiramente, penso não ser atrevimento porque tenho cotejado que a sua fala é aberta e de singela natureza.
Só agora reparei na pergunta. O vinho não está à venda porque, simplesmente, não o merece. O interesse da Cristina – e de outros que porventura leiam o poético escrito - deriva das evocações que ele (MC) nos sabe fazer nascer. Posso garantir-lhe que o engarrafado é vinhito com papel colado só p’ra desculpar pobreza na textura. Quem lhe engarrafou fumos de saudades de tempos por nós vividos, foi o texto do Manel pois, tal como dizia Pitigrilli (e se bem me lembro) «poetas são engarrafadores de nuvens». Bem... perdi-me. Voltando ao assunto...
O meu mui respeitoso objectivo é informá-la que em encontro capacitado e possuído de servil e untuoso desejo de a equipar com o meio necessário ao seu brinde ao nosso Amigo, mesmo que a ‘pinga’ só seja tragável com o texto debaixo dos olhos. Diga-me onde lhe pouso a garrafa.
Bom Natal para todos os leitores do MC.
L Serra

Anónimo disse...

Ai, como a língua é traiçoeira…
Acima, na outra mensagem, penúltimo parágrafo, eu pretendia ter escrito «me encontro» e saiu-me, no tropeço do digitar, «em encontro»...
Eu entrego o vítreo e seu conteúdo na loja que me indicarem, ao anónimo balconista!

deep disse...

Passo para agradecer e retribuir os votos de Bom Ano. Que não faltem motivos para se sentir feliz! :)

anamaria disse...

Olá!

Bom ano, driving down the road of friendship!