sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

PERSPECTIVA TURÍSTICA DA CAÇA

Perspectiva turística da caça


Seminário TURISMO: A OPORTUNIDADE EM TRÁS-OS-MONTES

XV FEIRA DE CAÇA E TURISMO

MACEDO DE CAVALEIROS

28 de Janeiro de 2011



Manuel Cardoso

A caça e o turismo, em Trás-os-Montes, andaram ligados no passado e estarão ligados no futuro. Mais do que ser a caça uma forma de turismo, é o turismo que tem na caça um dos seus produtos principais. Saber encarar, estudar e desenvolver esta forma de turismo, é importante para que este recurso continue a ser – e o seja cada vez mais – uma fonte de rendimento e de criação de riqueza. Mas para isso há que mudar alguns paradigmas…

1. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Os caçadores vinham da cidade: do Porto, de Guimarães, de Braga, tendo como destino Trás-os-Montes e, especialmente, Macedo de Cavaleiros. Alugavam quartos na Estalagem, em Pensões e em casas de amigos e compadres. A vinda dos caçadores significava dinheiro, que se veria trocado pelas dormidas, pelas refeições e tainadas, pelos aprestos de caça. Só casas a vender cartuchos legalmente havia, nos anos cinquenta e sessenta, oito. E haveria que gratificar, nas aldeias, o conhecimento dos poios da bicharada, a cedência dos cães, o serviço dos batedores e estafetas, até o trabalho das mulheres que tratavam da indispensável e genuína retaguarda gastronómica. Os caçadores apareciam primeiro para as rolas, mas eram raros, Verão ainda. Depois faziam-se mais numerosos para a perdiz e para os coelhos e lebres, orgulhosos cintos de fartos números em que não era raro aparecer uma raposa. E, Inverno entrado, havia os tordos, abibes e aves frias, nuns anos mais permitidos e noutros menos, caça de espera com rotinas marcadas, campeonatos de número, por olivais reconhecidos de ano para ano. “Vêm aí os caçadores!” era uma frase que marcava uma época, um sintoma da vida social que, economicamente, tinha expressão. Não se lhe chamava turismo mas era-o na sua essência e tomáramos nós que ainda hoje tivesse o significado que tinha. Centenas de noites vendidas em época baixa, elevadas taxas de ocupação num período que hoje é difícil de conseguir.
Edroso, Igreja Matriz, cena de caça ao javali, sécs. XIII-
XIV

2. Não era por acaso que os caçadores demandavam Macedo. A fama antiga de ser fértil em caça reconhece-se nos documentos que estão aí, pelo menos desde a Idade Média, de que as referências nos forais não são raras nem são raros os testemunhos. Por isso há uma caçada ao javali gravada na pedra em Edroso, com mais de seiscentos anos, e há os relatos deixados pelo século XVIII, que nos descrevem uma região, a nossa, abundante de caça, abundante de javalis e de corços, já nesse tempo. Multiplicam-se por aí, na nossa toponímia, as alusões aos cervos. Há livros que nos falam do Monte de Morais como “o mar da caça” e a Serra de Bornes, num tempo em que era cultivada de alto a baixo, foi alvo de várias tentativas para se transformar, na perspectiva desses tempos, em couto venatório. Numa fase de transição, a da transição da caça como forma de abastecimento de proteínas, de sustento de famílias, para a fase mais lúdica, mais desportiva, como então se dizia.

3. E não havendo cartazes, nem jornais que o propalassem, nem notícias de rádio e televisão, como surgiu esse interesse dos homens do litoral por este destino de caça? Quem nos revelou?

Caçadores pioneiros, a que não esteve estranho o facto de para aqui vir, combóio acima, durante anos seguidos, um caçador em particular, seguido do seu séquito, e que aliou à sua paixão pelos nossos montes e vales, o lado utilitário do negócio. Foi ele Manuel Pinto de Azevedo. Começou por vir até cá a convite e hospedado em casa de amigos, os Falcões, mas rapidamente toda a sua entourage ocupava o hotel Saldanha e as outras pensões que havia na vila. Do gosto de caçar pelos planaltos da serra de Ala e nas encostas para os Cortiços lhe veio a ideia de um dia comprar um casal de terra. Daí nasceu, há quase um século, a sua raiz em Vale Pradinhos. Progredindo no mundo dos negócios e relacionando-se com gente cada vez mais elevada no ranking dos empresários do Porto, nacionais e estrangeiros, que desafiava para este seu recanto de Portugal, nasceu a necessidade de ter um sítio onde instalar, com as comodidades que o século XX vinha proporcionando, todos esses seus amigos, de cada vez mais requintada exigência. Olho de caçador, de negociante de grosso trato e industrial, carteira de investimentos com capital bastante para necessidades e para caprichos, manda fazer uma Estalagem. Moderna, confortável, de um luxo fino. E com um grande nome: Estalagem do Caçador. Pensada no pós-guerra, construiu-se e inaugurou-se no início dos anos cinquenta. E teve um condão: identificou-se com Macedo. Em Portugal inteiro e até no estrangeiro, Macedo era a Estalagem. Toda a gente reconhecia este ponto no mapa, um importante cruzamento de estradas, como o sítio onde havia a Estalagem do Caçador. E fez mais pelo turismo pelo simples facto de ter existido aqui do que qualquer campanha para captação de visitantes. Quem quer que viesse a Trás-os-Montes, em negócio, em política, em trabalho, em veraneio, ficava ou passava pela Estalagem do Caçador. Que teve durante anos seguidos, nesses idos de cinquenta, sessenta e ainda setenta, períodos de contínua lotação esgotada. Com clientes habituais, que reservavam de ano a ano o seu quarto para a época venatória. E podiam trazer cão: a estalagem também tinha acomodações para o fiel amigo do caçador. Na esteira da fama da estalagem foram abrindo outras casas. Ainda bem. A caça dava para tudo.

4. O que fez esmorecer esse momento tão bom em que a caça era turismo? A diminuição do poder de compra? A alteração de hábitos sociais? As modificações e melhorias nas vias de comunicação? A democratização deste “desporto”?

Cremos que de tudo um pouco. Mas não há dúvida que as alterações das vias de comunicação, que vieram permitir a ida-e-volta sem esforço a partir do litoral, foi determinante para mudar a maneira de caçar e, sobretudo, o tempo de caçar. Deixou de ser preciso gastar cinco horas, cães a reboque, para vir e cinco horas para ir. Pela metade do tempo vem-se e regressa-se. E este facto foi determinante para transformar em meros visitantes, de um dia escasso, aqueles que até então vinham de véspera ou de antevéspera e eram autênticos turistas de pernoita certa. Com isso perdeu-se o tempo para mais. E a caça, hoje, na maioria dos casos, não é mais do que uma fuga de um dia à rotina, alterando-se definitivamente toda a atmosfera que envolvia a actividade e o modo de gastar o tempo que se lhe dedicava. Mas uma coisa é certa. Ainda há interesse pela caça, ainda somos um destino de caça e ainda não morreu a chama acesa da lareira a que nos aquecemos depois de um dia de caça. Então…

5. …então há que repensar a perspectiva da caça e em vez de equacionarmos o turismo por termos cá caçadores, equacionemos a caça para termos por cá turistas. O produto “caça” é um produto turístico muito mais importante do que o simples acto de caçar um coelho, uma perdiz ou um javali. O pressuposto de que “caça” implica uma arma, um homem e um animal para ser abatido, é apenas um detalhe do nosso produto. “Caça”, em si, é o animal e a sua paisagem. Por aí andam por esses montes e pelas nossas serras. À espera de ser observados, estudados, caçados e comidos. A caça em si é uma experiência que deve ser proporcionada ao turista. Com a presença e a emoção de caçar, de ir pelo campo, de ouvir os cães e sentir o frio e o cheiro. Mas que pode e deve ser complementada com cultura, com arte, com gastronomia. Com ciência! Não é por acaso que o canal Discovery ou o National Geographic Magazine têm elevadas audiências nos programas sobre vida natural: colocam o homem face a face com o jogo mais antigo da humanidade, o da observação dos animais. Algo que um caçador faz, e muito bem. E que tanto pode fazer com uma arma como com uma máquina de filmar ou fotográfica, como com um binóculo ou telescópio. Neste ponto de vista todos somos um caçador potencial. Está-nos nos genes. Saberemos indicar aos nossos potenciais caçadores-turistas onde podem ir caçar coelhos? E perdizes? Sabemos onde está a nossa caça? Como se multiplica? Organizamos workshops sobre a perdiz gastronómica? Organizamos workshops sobre os modos de caçar? Temos algo para dizer ou para mostrar sobre caça a quem nos escolhe como destino turístico? Estamos simplesmente à espera que venham os caçadores e que encontrem caça por aí?... Hm…

Veado em Latães, na Serra de Ala, 12 de Outubro de 2009
6. Para conseguirmos que, no futuro, continuemos a desenvolver a caça na perspectiva do turismo, não basta que haja o monte, a perdiz e a espingarda. Tem de haver algo mais, muito mais. O caçador tem de se sentir acolhido como um turista e não apenas como um cliente de uma associativa. Tem de se sentir bem e tem de sentir que os que traz consigo se estão a sentir bem. Tem de sentir que quando vem à pressa para regressar no mesmo dia, perde algo mais, muito mais, se não ficar cá a dormir. Tal como tem de sentir que o facto de ter vindo sozinho é um desperdício por não ter trazido a mulher e os filhos para que, entretanto, se dediquem a fazer algo que seria impensável e impossível se tivessem ficado na cidade. Um dia de caça entre nós tem de ser uma experiência inesquecível mas repetível, como o era para os caçadores que cá vinham há décadas atrás e passavam a palavra dos dias inesquecíveis nos nossos campos, na nossa estalagem, nas nossas lareiras. Temos de ser capazes de demonstrar que vale a pena não só vir caçar como vale a pena vir passar o dia entre nós. E a noite. E, mesmo que não se cace nada, fazer com que no espírito do nosso turista fique a sensação grata de um dia preenchido e não o desagradável vazio de um dia desperdiçado sem nenhuma perdiz ou coelho para por à cinta.

7. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Mas temos de fazer com que volte um tempo em que os caçadores que cá vêm, com voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, digam “vem aí o nosso fim-de-semana em Macedo de Cavaleiros”. No dia em que isto acontecer, tal significa que a caça deixou de ser uma forma de turismo e o caçador passou a ser um verdadeiro turista. Não se pense que isto é um mero jogo de palavras. Nada disso. Isto é a demonstração de que há uma forma de ver a caça e o turismo como actividades com futuro na nossa terra. Tudo evolui. E o que não evolui, definha e morre. Ora, nós saberemos evoluir.

Albufeira do Azibo, Dezembro de 2007. Foto de Nuno Oliveira Martins

Vivemos um momento difícil, numa conjuntura difícil em que o país foi colocado. Mas os momentos difíceis são sempre momentos de oportunidade. Na perspectiva da caça, o turismo terá um futuro cada vez mais difícil. Mas na perspectiva do turismo, a caça terá um futuro promissor. É esta a maneira correcta de colocar hoje este nosso assunto. Somos um destino turístico de Verão que ultrapassou os 100 000 visitantes. Podemos ser um destino turístico de todo o ano desde que passemos a tratar a Caça na perspectiva do Turismo.

10 comentários:

Miguel Midões disse...

Mais uma grande e inteligente lição de história, sobretudo para quem anda há seis anos a tentar perceber e conhecer melhor a terra que o acolheu. Obrigado

Miguel Midões

manuel cardoso disse...

Olá, Miguel, sempre atento! É isso mesmo: para se conhecer e perceber uma terra, há que saber não só os factos mas os seus motivos! Um abraço e obrigado eu, por ser meu leitor!

LS disse...

Será possível? Não é utopia voltar a haver pela manhã bandos de 12 perdizes nos morros junto a lavradios, coelhos na noite atravessando a estrada antiga, abutres pairando ao sol poente? Haverá uma ponta nesta meada? Haverá modo de travar por cinco anos os predadores e proteger os caçadores locais promovendo-os a couteiros e
depois, sim, acolher visitantes deslumbrados com o número da “caça”, mas obrigatoriamente orientados por nativos remunerados. Aprenderiam muito com tão hospitaleira gente, talvez em suas casas hospedados.

manuel cardoso disse...

Meu excelente vizinho, claro que é possível! Aliás, sou um privilegiado porque, como sabe, com muita frequência vemos as perdizes, as lebres, os coelhos,os corços, os javalis... e todos os dias, nos postes do telefone ou nos carvalhos agora só hirtos de galhos, perscruta o horizonte uma de asa redonda ou outra rapina... Mas penso que sim, que é necessária e possível uma mudança de paradigma.

jose alfredo almeida disse...

Bom dia

Ando há muito para lhe escrever isto sobre este seu escrito que me deu imenso prazer de ler e de viajar neste por paraísos do nosso "reino maravilhoso".

Adorei ver o passado e o presente nas fotografias que escolheu, onde a eternidade desses lugares fica mais apetecida de lá voltar uma primeira vez e, no meu caso, outras vezes como aquela luz intensa de uma fim de tarde num espelho de água que me deixa nostalgia.


Obrigado, por me proporcionar esse prazer pela viagem que faço em volta das suas palavras tão cheias de luz como se fossem iguais às fotografias desse lugares transmontanos, onde tudo se poderemos repetir na efemeridade da nossa existência.

Um abraço do meu Douro, de um seu estimado leitor.

José Alfredo Almeida

FredericoV disse...

Bela foto do veado em Latães. Entretanto voltaram a aparecer mais? Já são comuns nessa zona?
Pensava que os veados estavam limitados ao Montesinho, afinal já se expandiram mais para sul. Qual será a sua fronteira mais a sul actualmente?

Cumprimentos

manuel cardoso disse...

Caro Frederico

Penso que a fronteira mais a sul será o IP4 nesta zona da Serra de Ala (Macedo de Cavaleiros). Este ano também têm rondado por aqui mas não consegui fotografar nenhum. Para os corços já não é este o limite, uma vez que os há em número razoável e aparecem também na Serra de Bornes, Monte de Morais, Quadraçal, etc.

FredericoV disse...

Obrigado pela informação.

Encontrei algumas referências na internet sobre a existência de veados na Zona de Caça Turística da Serra de Bornes, assim como nos sites das juntas de freguesia de Bornes e Gebelim. Mas talvez se refiram a alguma área cercada onde esteja a ZCT e não a animais em estado selvagem.

Cumprimentos

manuel cardoso disse...

Caro Frederico, não conheço a existência de veados por aí. Corços, sim, e um dia avistei um gamo, na Serra de Bornes, termo da aldeia de Bornes, que há anos se teria escapado de um cercado particular a uns 15 Km de distância. Ia comigo o meu amigo Pedro Coelho e falhámos a fotografia por segundos...

FredericoV disse...

Possivelmente as indicações que existem sobre veados na serra de Bornes se refiram a esse tal cercado particular (talvez seja aí a ZCT).
Interessante saber que já existem alguns gamos no norte do país. No Alentejo já começam a ser mais comuns, mas no norte não sabia de nada.