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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O homem e a maçã

O homem à beira da estrada, capacete de obras na cabeça e sinal de stop entalado sob o braço, estafeta no meio da poeira e da confusão do tráfego, sol muito quente, desviou por momentos a atenção dos grandes camiões da empreitada que atravessavam à nossa frente, carregados e ruidosos, e voltou-se, não para nós, que aguardávamos que tirasse o bendito sinal e no-lo mostrasse pela outra face, mas para uma maçã que segurava com a mão esquerda e que, com a direita, partia com uma navalha. Observava atentamente o pomo que dividia em quartos, descascados com perícia, e meteu o primeiro na boca, mastigando-o com manifesta vontade e prazer. Calor, estava de vidros fechados pelo ruído e pela terra levantada pelos grandes pneus que a atiravam para o ar, olhos semicerrados pela luz demasiada a reflectir-se nos milhares de partículas de mica e quartzo que voavam. Inexplicavelmente, senti-me a cheirar a maçã, um cheiro doce e suave com travo acre a raineta. Que maçã tão mágica seria aquela? Seria a irrecusável que a Eva ofereceu a Adão, engasgado, reluzente no seu fatal destino? Seria a fadada e venenosa, do cesto da Bruxa Malvada que a entregou, irresistível, à Branca de Neve, e a adormeceu num sono de maravilha? Seria a de Newton, da revelação e conclusão de Newton, atraída para o chão por uma causa invisível? Seria a de Guilherme Tell, sobre a cabeça do filho, a captar-lhe o virotão da besta? Deviam ser todas, para cheirar assim! Como cheirava bem dentro do carro! E vi-me a alinhá-las, há tantos anos!, nas prateleiras do fruteiro, faces rosadas voltadas para nós, depois de parafinadas, prontas a enfrentar os meses de espera até serem comidas à mesa. Dúzias de maçãs! As filas das golden, amarelas e douradas, grandes, sensação táctil de dar logo vontade de trincar! As starking, vermelhas e orgulhosas, farinhentas na boca, boas para enfeitar o centro de mesa e ser comidas com queijo e marmelada. As bravo-de-esmolfe, muito iguais, algo problemáticas mas capazes de espalhar essências por todo o sítio. As rainetas, pequenas e grandes, duras, ácidas, tão perfumadas!, aroma de inspirar e sentir o tempo a entrar com o ar, o tempo de as colher na macieira desgrenhada de ramos carregados de frutos quase a partir, pendentes para o chão, sobre a água dum regato. “Dá cá o cambito para puxar aquele ramo ali que não lhe chego!”. E as cestas de asa no braço, os cestos maiores e as canastras iam-se enchendo no meio de graças e gargalhadas com aqueles frutos de fim de época, de fim de estação, que davam à casa um aroma aconchegado de tudo estar no seu lugar. Com uma mão conhecedora, a Tina ou a Ticha entalavam, entre a cinza e o rebordo da braseira, uma maçã que cobriam com uma prata. A sala rescendia! E todo esse cheiro, vindo não sabia de onde, se misturava com o verde das folhas, o sabor dos frutos, o ar que parecia desanuviar o ambiente do carro com esse encanto vindo do passado. Estava quase a experimentar a maçã assada, casca tostada e sabor melado a abrir-se de surpresas, quando uma buzinadela fez desaparecer o encanto. Os camiões tinham deixado de se atravessar à nossa frente, o homem estendia a mão segurando o sinal com o verde voltado para nós e agitava-o a mandar seguir, capacete entalado sob o braço esquerdo, sorriso. Tinha acabado a maçã. O sol estava intenso, o pó pairava, nós seguimos.