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terça-feira, 10 de novembro de 2009

cafés, pastelarias e casas de chá

Toda a vida gostei de cafés, pastelarias e casas de chá. As mais antigas lembranças da minha vida (lembranças, que as recordações são outras…), estão-lhes ligadas, ao seu som e ruído, ao seu cheiro inesquecível, ao seu conforto resguardado. Lembro-me de imensos sítios, de muito longe, ao colo ou pela mão do meu pai, aroma tão doce de cariocas que já não existem, à mesa com a minha mãe, diante de um prato de bolos sortidos, ou a servir de chaperon nos namoros das minhas irmãs, a olhar para as bolhas a subir num copo de canada-dry. Há episódios de cada um que se sobrepõem como centenas de flashes, que me vêm do Marzim, do Palace, do Guarda-sol, da velha Estalagem do Caçador, do Central, do Gelo, do Nicola, da Brasileira, da Suiça, da estação da Régua, da Helena Tirone, da Poveirinha, do Poças, do 140, da Aurora, do Texas, do Monumental, do Paladium, da Imperium, da Colombo, da Caravela, da Mexicana, da Flor da Granja, da Bénard, de tantos e tantos outros. De todos esses pedaços do meu tempo (já que foram pedaços de tempo, um bem tão precioso, que neles fui deixando) guardo uma especial memória de alguns. A intensidade desses momentos passados foi tal que ainda hoje – e, estou certo, até que um dia feche os olhos – deles cintila comigo a sua luz inesquecível e saborosa.
Tenho pena de serem impossíveis de revisitar com a mesma atmosfera. A começar pelo Diana Bar, pousado na areia da praia da Póvoa, em que se entrava com a sensação de tomar lugar numa nave prestes a partir e com gente sempre a chegar, ruído de cadeiras de madeira e de metal, sabor de yogurts amargos, dos verdadeiros, dos de se lhes por açúcar às colheradas tiradas de açucareiros também verdadeiros, cromados, de tampa com entalhe para a colher. Luz por todos os lados, do céu, do lado do mar, das vidraças, vento a ver-se lá fora no drapejar incessante das riscas das barracas e toldos de lona da praia. Da galeria redonda avistava-se a sala de baixo como quem assiste a um programa de variedades, toillettes e passos estudados, homens mais graves de chapéu escuro e fatos de importância, pose de leitura dos diários, óculos polidos para não macular a visão dos penteados e dos passos das senhoras e raparigas. Tantas saudades do Diana Bar! Do cheirinho do café de saco que vinha das máquinas do bar de baixo e subia como que empurrado pelos tabuleiros que os criados erguiam acima das cabeças de toda a gente, para não chocarem, repletos de chávenas e pires, e os levavam voando como se executassem um número de ballet. Bem sei que era poiso do José Régio e precisamente porque era poiso do José Régio, tenho a certeza que ninguém mais do que ele se teria oposto ao que é hoje: uma biblioteca, espaço cultural. Cultura, cultura, era o Diana Bar com toda aquela gente a fervilhar, a viver o seu tempo, a utilizar o seu espaço, tertúlia feita de quem a vive. Que mania esta de hoje, de querer viver a cultura como quem a exuma, em espaços cenografados de que se varreu a vida!
Em Lisboa voltei a encontrar o mesmo cheiro do café de saco no mais imperdível dos meus recantos: na Versailles. Descrever a Versailles e o que vivi na Versailles daria um livro para várias edições, todas revistas e comentadas mais ainda. E ainda me custa falar da Versailles. Ainda vou lá. Não tenho o à-vontade da distância e, sem isso, não tenho a liberdade de construir frases sem que sobre elas pese demasiado comedimento. Ora, ser comedido no que se escreve é o contrário do que seria autêntico sobre o que foram os meus anos mais intensos da Versailles: exuberantes. Descrever, por isso, a exuberância com comedimento seria falsear em absoluto o espírito com que dia a dia cruzei as portas de vaivém e vidro gravado que separavam e separam a Avenida da República daquele microcosmos de todos os regimes. O melhor sítio para se beber chocolate - à Versailles e à espanhola.
Toda a gente me dizia sempre que o café de Espanha era intragável. Horrível. De se não beber. Mas devo dizer que o café que bebi há imensos anos no Novelty, em Salamanca, me valeu por quase todos da vida. Tinha ficado embasbacado com a Plaza. Trovejava como num livro de tragédia e aproveitei uma aberta para me por no centro, ainda havia carros por ali nesses anos, mas raros, esplanadas à volta, fachadas de pedra à volta, um turbilhão de história a toda a volta que, num rodopio, me fez sentir uma vertigem daquelas que sabem bem, que nos arrebatam. Depois andámos pelas arcadas, surpreendendo o exótico, passos leves, querer tudo inspirar como uma possibilidade. Entrámos, então, no Novelty. Foi como quem muda as rotações de um gira-discos, de repente um 33 ou mesmo um 78 dos antigos, de ponta de aço e boca de gramophone, espelhos em que se via erudição e requinte mas tudo ao alcance de quem se deixa apenas ficar ali, passar a vista nas letras dos periódicos, ouvir cada frase sonora (sempre sonoras, as frases dos espanhóis) dita de forma decisiva e a misturar arte, paixão e estilo (até para matar um touro, os espanhóis o fazem com arte, paixão e estilo). Confesso que não me apercebi logo de que café era aquele. Apenas captei tudo o que o inesperado pode deixar captar de uma vez só, em que somos confrontados com a sensação de que era mesmo aqui que eu queria poder vir todos os dias. Ali o deslocado era eu, nas bluejeans, na mochila, no ar de visita. Mas fui encarado como da casa, como se fosse um cliente de sempre – deu-me ideia que ali os clientes não eram clientes, eram mais como se fossem membros de um clube, um clube de sempre, a cheirar a puros – e foi-me servido um café espanhol, com travo de café espanhol, numa chávena onde cabia uma colherona espanhola. Bebi-o concentrado, como se estivesse bebendo uma poção, tentando corresponder a que estava num local de arte, desde logo sentindo pelo sítio uma paixão e esforçando-me por fazê-lo com o meu melhor estilo. Estava mesmo bom, aquele café. Era daquele mesmo que tinham bebido tantos antes de mim, que o tinham cheirado, saboreado, sentido mais ou menos acre, mais ou menos forte. No fundo, aquele travo e aquele aroma era a forma mais próxima que eu tinha de me sentir chegado a todos os que tinham frequentado o Novelty antes de mim. Tinham-se visto nos mesmos espelhos, sentado nas mesmas poltronas e bancos, usado o mesmo balcão, as mesmas mesas. Quando hoje leio Torrente Ballester, por exemplo, imagino-o ali sentado ou em pé, discorrendo de forma sonora, observando as pessoas sob as arcadas, vendo Espanha e todo o mundo na Plaza, idealizando com arte, paixão e estilo cada uma das frases com que nos encanta ao lermos cada uma delas.
E por falar em encantamento, não posso deixar de dizer para memória futura que se houve granitados, sorvetes e batidos que o tenham tido, eram, sem qualquer dúvida, os da Ferrari. Começavam pelo colorido. Iam mudando de tom, conforme o tempo passava e os sorvíamos pelas palhinhas. Morangos com chantilly. A Ferrari era colorida também por toda a gente. O primeiro sítio de Lisboa em que eu, mais habituado a que as cores estivessem nas árvores e em tudo mas menos nas pessoas, monocromáticas e em frios tons de escuro, me senti como se estivesse num arco-íris. Estava também nos meus anos de arco-íris, Portugal estava de repente a ficar um país pequeno, eu a multiplicar horizontes para lá de parentes e primos. Tão boas as tardes na Ferrari, os fins de tarde na Ferrari! Foi numa mesa da Ferrari que tive as minhas mais inocentes conversas de flirt e também a minha mais séria conversa de namoro. A minha maior perda com o incêndio do Chiado foi a Ferrari. Alguém terá por aí uma fotografia tirada dentro da Ferrari?