Mostrar mensagens com a etiqueta macedo de cavaleiros. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta macedo de cavaleiros. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Entrevista ao AZIBO RURAL

 
- Estando há cerca de 20 meses a exercer as funções de Director Regional de Agricultura e Pescas, qual o balanço que faz deste período?

Um balanço muito bom. A agricultura está a atravessar uma das suas mais importantes transformações dos últimos anos e é com enorme satisfação que nos encontramos envolvidos e empenhados com a equipa que está a protagonizar este processo profundo. Se reparar, nada está a ficar como dantes. Tanto em reorganização dos serviços do Estado como na dinâmica impressa ao sector, articulando-se com todo o agroalimentar. Estamos a mudar do que foi o status quo dos anos anteriores, a mudar de paradigma para uma nova fase em que interessa o aumento da produção, o ganho da escala nos diferentes segmentos e uma melhor distribuição do rendimento obtido ao longo de toda a cadeia de produção, transformação e comercialização. Estamos a protagonizar a mudança para uma política em que interessa produzir bens transacionáveis. O nosso objetivo é contribuir para que em 2020 tenhamos o equilíbrio, em valor, da nossa balança agroalimentar, fazer com que, em euros, produzamos tanto como aquilo que consumimos e tenhamos equilibrado assim as nossas importações com as nossas exportações. Creio que tudo isto é bem visível, tem sido uma imagem indelével que tem dado a Senhora Ministra, no que tem sido acompanhada pelo trabalho também notável dos Senhores Secretários de Estado. Ainda só passaram dois anos. Dois anos de balanço positivo.

- O Proder, Programa de Desenvolvimento Regional, estando já numa fase final, foi este um instrumento que contribuiu para a melhoria da Agricultura na Região?

O PRODER melhorou o sector agroalimentar de uma forma que ninguém poderá negar! De tal modo que se notam na paisagem os investimentos PRODER. Por todo o lado. Poderia estar agora aqui a despejar números e mais números sobre isto. Será desnecessário. Apesar de o PRODER ter começado mal e hesitante, não vale a pena agora perder tempo com lamentações sobre isso. Mas depois este governo veio imprimir velocidade e metas ao programa e corrigir algumas coisas incompreensíveis que se fizeram no início (como foi a de se distribuir irresponsavelmente dinheiro de prémio sem investimento, por exemplo, que agora em vários casos se vai ter de pedir a devolução por incumprimento dos promotores).

- Numa altura em que a Agricultura está na moda não se sente esse furor na região, visto não se notar grande actividade económica virada para o mercado, o que se deve isto?

A perspectiva correcta de que os investimentos devem gerar trabalho e visar o aumento de produção e o lucro, tem sido fortemente incutida aos investidores na agricultura e no sector agroalimentar em geral. A par da inovação e do empreendedorismo. Mas é importante que se diga que ainda há muito que está por fazer. Sobretudo aqui nesta região há muito para corrigir e muito para fazer. Há uma certa preguiça dalguns responsáveis instalados, alguma falta de vontade em querer fazer andar as coisas. E estão a ver passar e a deixar passar os comboios sem os apanhar. É estranho e não deve ser aceitável, por parte dos agricultores, que haja tal atitude por parte dos dirigentes das suas organizações. É um assunto em que cabe a cada um assumir as suas responsabilidades. Agora isto não deve inibir quem queira andar para a frente e progredir. O progresso faz-se andando para a frente, pensando coisas novas e investindo, tirando partido das circunstâncias. Tenho esperança que com a chegada de novos investidores ao setor (e há novos investidores no setor, se há!) muita coisa mude para melhor e se crie uma nova dinâmica. Não se deve ficar amarrado a instituições com inércia para o repouso, deve-se entrar naquelas que neste momento estejam ou se proponham estar em movimento uniformemente acelerado, como as suas congéneres doutras regiões de Portugal e europeias. Ficar parado e não agarrar o progresso é querer fazer da sua vida uma catástrofe!

 

- Tendo o Sr. Director Regional vindo a apoiar o Associativismo como é o caso da Federação de Regadios Públicos do Norte, onde está envolvida a ABMC, que importância terá o Associativismo no futuro para a agricultura?

Fundamental! Em várias vertentes. Ao longo do tempo o Estado tem estado a delegar funções e competências nas organizações de agricultores. Esta política não irá mudar e as OA terão de se manter habilitadas, em meios humanos e materiais, para tal. Há, ainda, o facto de que cada vez mais terão de ser as OA a prestar serviços especializados aos seus associados e relacionados com domínios tão diferentes como gestão de recursos, informação de mercados, modernização tecnológica e reconversão de produções. Tudo isto a uma velocidade cada vez mais exigente e variável consoante os mercados dos produtos produzidos e as necessidades dos clientes. É, por isso, necessário modernizar e actualizar quadros e instalações de um modo contínuo. E ganhar escala. As organizações de produtores vão ter de ganhar escala, vão ter de deixar de estar cada uma a olhar apenas para o seu umbigo… Isto não são apenas palavras, é a verdade. Um produtor individual que não se associe e não aprenda a trabalhar em grupo dificilmente sobreviverá como produtor. Na agricultura do futuro irá haver empresas e irá haver redes de produtores associados. E sempre em constante transformação. Por isso achamos isto essencial e contem sempre connosco para apoiar o associativismo.

- A Bolsa Nacional de Terras, está numa fase inicial, que espectativas tem deste novo instrumento de gestão da propriedade?

A Bolsa de Terras é uma lei recente e cuja implementação está ainda no início. Em que o Estado deverá dar o próprio exemplo de disponibilizar terras a fim de incentivar os particulares a fazê-lo. A gestão de todo o processo será mais ou menos veloz conforme o empenhamento das organizações de agricultores, uma vez que elas irão ser protagonistas em todo o processo. A responsabilidade da condução do processo caberá à DGADR, sendo que o papel das Direções Regionais será imprescindível na ligação, informação e sensibilização. Trata-se dum edifício legislativo que perdurará por anos e anos e será um instrumento de desenvolvimento à semelhança do Programa de Desenvolvimento Regional. Haverá um escrupuloso respeito pela propriedade privada e só compreendendo isto se entende que possa ser promotora de terras disponíveis para utilização por terceiros. Creio que no nosso caso, na nossa região, será uma excelente solução de futuro para muitos terrenos que pertencem a emigrantes que não possam ou não queiram utilizá-los e que deste modo os disponibilizem a troco de receber deles um rendimento certo sem abdicar da sua propriedade. E será uma forma de que aqueles que não têm terra e queiram ser agricultores, possam desenvolver os seus projetos de investimento. Particularizando ainda mais, achamos que seria uma forma de melhorar a utilização dos perímetros de rega que o não estejam a fazer em toda a sua extensão. A Bolsa de Terras é um instrumento de um enorme potencial e que se destina a perdurar no tempo. Está ainda e só a arrancar.   

- O Regadio do Azibo é um factor vital para a instalação de culturas que valorizem a água, o que seria necessário para a sua instalação, e que papel deveriam ter as organizações Associativas e Cooperativas?

Em boa parte já está implícita em respostas anteriores a resposta a esta. Mas é sempre bom frisar que o regadio é uma agricultura necessária e de futuro. Assim o compreendeu o governo, que se bateu contra o que era a intenção dos países do centro e norte da Europa em não querer ajudas nem subsídios para o regadio, e conseguiu para Portugal que este tipo de agricultura pudesse manter as ajudas e os apoios ao investimento. Agora uma coisa é certa: há uma enorme responsabilidade da parte dos proprietários de terrenos que estejam integrados em perímetros de rega, bem como de todos os agricultores com acesso a redes de rega: estão a usufruir de equipamentos instalados com dinheiros públicos e, por isso, têm uma obrigação especial em rentabilizar ou deixar que outros rentabilizem tais investimentos. Não se compreende o abandono de terrenos e a não utilização de terrenos para a agricultura que se encontrem infraestruturados com rega. Por outro lado, o regadio é uma agricultura que está cada vez mais evoluída em termos de tecnologia e de ciência na correcta utilização do recurso água, evitando desperdício, e do recurso terra, evitando a sua inutilização precoce por esgotamento e erosão. Aqui as organizações de produtores têm um papel importante de formação e de informação. Por outro lado ainda, há a questão da gestão da produção/transformação/comercialização do que é produzido. Aqui está o calcanhar de Aquiles de todo aquele que se quer dedicar à agricultura mas também está todo o potencial de geração de riqueza que a agricultura proporciona. Só com uma atitute muito activa é que tudo isto pode funcionar. Vivemos num mundo moderno em que o consumo, apesar da crise, se mantém nos produtos alimentares e cuja necessidade mundial é crescente. Daí que seja necessário aumentar a produção. Mas isto só faz sentido que lhe acrescentarmos todo o valor que pudermos na transformação e se retirarmos toda a margem que pudermos na sua comercialização. Para tal são necessárias organizações de produtores, sob a forma associativa, empresarial ou cooperativa, com espírito empreendedor e aberto, jovens, que trabalhem por objetivos e os persigam sem esmorecer com o que corra mal e com um elevado sentido de sustentabilidade. Que não confundam um bom negócio de uma colheita ou de um ano com um negócio bom, perdurável no tempo e capaz de garantir estabilidade e possibilitar planeamento a quem produz. Se colocarmos no mesmo copo tudo isto, temos um cocktail de sucesso!

- A propriedade rural na região é de baixa dimensão, com agricultores de idade avançada, não gera emprego, não fixa população, é basicamente de auto-suficiência, não deve o Ministério criar politicas que promovam alterações profundas na dimensão da propriedade de forma a serem geradoras de emprego, viabilidade económica e ter mais importância no desenvolvimento rural? 

Tudo o que está implícito na sua pergunta parte de pressupostos que já não são exactamente os que neste momento estão à vista no nosso panorama agrícola. A propriedade média tem vindo a aumentar na nossa região, começa a haver agricultores mais jovens, começa a haver mais emprego na agricultura (a começar pelos que criam o seu próprio posto de trabalho) e a agricultura já não é, maioritariamente, de auto-suficiência. Ainda há dias estive numa exploração em que dois velhinhos tratavam alegremente da sua horta. Ao vê-los, água a correr pelos sulcos das batatas, das couves, dos feijões e das cebolas, ele com o sacho conduzindo a água, dir-se-ia que estávamos na autêntica agricultura de auto-subsistência… mas com um grande orgulho ambos me disseram que as suas filhas, que vivem no Porto, aqui vêm todos os fins de semana e daquela horta se alimentam as suas casas, todos os netos e ainda há umas vendas a uns vizinhos, que lhes compram o azeite e que lhes ficam com batatas e “as coisas que vão havendo”, que vendem com grande sucesso. Há uns anos esta horta seria de subsistência mas hoje, de facto, com a mobilidade e os circuitos de comercialização antes insuspeitos, hoje a realidade é diferente. Daí que eu diga que a realidade vivida não seja a mesma com que se retratava a agricultura de há uns anos, ainda poucos, atrás.

Agora, claro, que não é esse o rumo geral. O rumo geral deve ser o de agarrarmos a oportunidade que aí vem com o novo PDR, programa de desenvolvimento regional, 2014-2020, e tirarmos dele todo o partido que conseguirmos. Os instrumentos estarão lá, precisamos de gente que os queira usar. Como agricultores individuais a trabalhar em rede ou como empresas a executar um plano de longo prazo. Com inteligência e determinação, com alegria e com resiliência para ultrapassar os desaires, que também os haverá. Com a certeza de que o êxito também espera e protege os audazes que se queiram lançar a trabalhar. De tudo isto e de todos estes precisa a nossa agricultura. Já vai tendo, felizmente. Mas precisa de muito e de muitos mais.

- Como espera que evolua o sector agrícola na região no próximo quadro comunitário e se a Agricultura tem futuro na região, nomeadamente a Agricultura ligada ao regadio?

Há algumas décadas atrás houve sérios investimentos na agricultura na nossa região. Apareceram então culturas novas, como os morangos e o lúpulo, apareceram unidades industriais capazes de transformar os produtos, como as do Cachão, as de Macedo e outras. Nesse tempo, apesar das dificuldades de comunicações (não havia as estradas de hoje, nem os veículos, nem os telemóveis, nem computadores, muitas aldeias não dispunham sequer de eletricidade…) foi possível insuflar uma mentalidade modernizadora na agricultura. Isso veio a possibilitar que os lavradores ficassem abertos à inovação e aceitassem novos desafios, como acabaram por ser uns anos depois os da produção de leite, que floresceu e injectou dinheiro certo durante uma vintena e meia de anos em muitas das nossas aldeias. Se já fomos capazes, por várias vezes, de por em marcha determinadas fileiras e determinados negócios, também iremos ser capazes desta vez. Com uma mentalidade aberta e voltada para o futuro, que tenha aprendido algo com as lições do passado e que compreenda que o tempo está em permanente mudança. Provavelmente as necessidades culturais de hoje irão ser abandonadas amanhã e substituídas por outras. Tudo bem. Temos de ser capazes de aceitar estes factos e de estar atentos aos sinais e ao momento de decidirmos a mudança.

Os próximos anos irão ser importantes. Vai haver dinheiro para investir, disponível quer para cada agricultor, quer para cada empresa agrícola, quer para as organizações de produtores. Deve-se desde já preparar o campo para isto, tomando decisões e planeando, auscultando os mercados e procurando alternativas de contingência. Devem desde já estabelecer-se as redes de empreendedorismo agrícola.

O interesse das pessoas pela agricultura está a aumentar, tem havido um grande foco e visibilidade que a política da Senhora Ministra Assunção Cristas tem suscitado. Esperamos que continue a aumentar o número de jovens a instalar-se, sobretudo de jovens bem preparados a instalar-se. Queremos dizer com isto que os jovens, integrados nas suas associações e organizações, devem estar bem preparados não só a saber produzirmas também a trabalhar em rede, a ler os sinais dos mercados e a produzir para o mercado. Jovens e não jovens que compreendam que a agricultura é uma actividade económica que não é fácil mas que é promissora e que é, sem dúvida, uma das grandes promotoras do progresso do país, tal como o será da nossa região.

A agricultura especializada do regadio é, sem dúvida também, uma enorme potencialidade da nossa terra. Ainda não explorada verdadeiramente. Quando o for, não tenho dúvida que haverá um enorme impulso para o nosso comércio local, o nosso turismo, o nosso desenvolvimento.

Terminamos com uma palavra de agradecimento por esta entrevista em que muito ficou por dizer mas em que muito foi dito também – e muito importante. Conte sempre com o Diretor Regional de Agricultura e Pescas do Norte para fazer andar as coisas para a frente e estaremos sempre à disposição para o que a ABMC precisar. Uma última palavra de parabéns à ABMC por ter compreendido e aceite integrar, como co-fundadora, a Federação de Regadios Públicos do Norte. Este gesto e este acto virá a revelar-se decisivo para o futuro, futuro esse que já começou, como bem sabe o seu preclaro Presidente da Direção, Hélder Fernandes. Bem hajam!



terça-feira, 17 de maio de 2011

Ti Manel Xeringa, de Carla Ferreira

No passado dia 13 de Maio, no CC de Macedo de Cavaleiros, coube-me a grata tarefa de apresentar um livro. Todos nós conhecemos muitos tipos de livros. Uns são de poesia, outros são romances, outros de contos, outros de ensaios, técnicos, cor-de-rosa, grossos, finos, tudo o que quiserem. Mas o que eu estive a apresentar é um livro especial, muito especial. Porque é um livro sobre a ternura.


Ti Manel Xeringa, de Carla Ferreira, é uma colecção de emoções, de amor e regresso à infância, de amor e respeito pela velhice.

Foi fácil apresentar este livro porque a autora escreveu nele tudo o que há a dizer numa apresentação: a “breve nota” com que o abre tem tudo - até da alma de quem escreve - escancarada como nos coloca a revelação do seu locus amoenus, Nozelos: “um lugar onde todos se conhecem, homens fabricados pelo trabalho duro da terra, mulheres de luta e crianças felizes. Histórias que segui com admiração e que sem as quais nunca agradeceria com veracidade tudo o que tenho e sou. Vidas simples, sem grandes ambições, gente que chora as derrotas e celebra as vitórias. Tenho orgulho em pertencer a este lugar, onde as brincadeiras ao ar livre, no meio da rua, com paus e pedras como brinquedos, as aventuras eram reais e todos eram heróis e heroínas.”

Trata-se de um livro de histórias evocadoras de momentos e vivências da infância da autora, passada na companhia do avô - o Ti Manel Xeringa - nos períodos de férias. Histórias reais que celebram uma infância à qual a autora se agarra como elemento basilar da sua concepção do mundo. Em todas elas há uma dinâmica própria que gira na órbita da vida de ambos e uma preocupação de respeito pelos valores da família forjadores de um carácter, não no sentido piegas nem balofo mas no sentido mais puro do que as palavras querem dizer, no seu sentido mais arcaico e perto das raízes - Nozelos é um lugar arcaico e enraizado nos primórdios, na volta de um rio, encaixado num vale em que os nossos avós pré-históricos acharam a facilidade da água e a bondade da terra. Estando-se em Nozelos, o horizonte à volta corre muitos metros por cima e só se vê um entorno de montes e o céu, um curto céu. Se a vista não chega, há a imaginação. E nesse mundo entre a casa, as hortas e olivais, a rua e a igrejinha, cresceu a sólida relação entre avô e neta cujo atravessar do tempo nos conduziu a estas páginas.

Não é preciso dizer quem era o Ti Manel Xeringa: foi um fazedor, um fazedor de encantos, um descobridor da beleza, o pedagogo da noção de estética, de belo e de maravilhoso a uma criança. É o personagem cerne deste que também é um livro de memórias. Memórias não só da infância como de um velho ciclo, tão antigo como a civilização, em que o homem vive nos seus ritmos à medida dos dias, do sol, da lua, do tempo que leva o milho a crescer e a azeitona a ficar preta.

Comecei por dizer que se trata de um livro de ternura. Termino a dizer que o livro em si termina também com ternura. Não só a do presépio, que nos aparece nessa última história como uma inesperada novidade num tema em que a novidade é difícil, não só a dos presentes dados pelo Menino Jesus em dia de Natal. Mas porque o Ti Manel Xeringa, ao dizer que “Deus seja louvado por tudo isto!” queria dizer, cheio de ternura, que esse “tudo isto” era a família unida e feliz. Síntese tão bem feita, do tamanho do mundo, só é possível a uma pessoa, neste caso a Carla Ferreira, capaz de ter em si “todos os sonhos do mundo”…

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Rio Azibo

O Azibo em dia de cheia em Vale da Porca. Foto de Adérito Choupina.
Temos vindo a percorrer, desde há uma dezena de artigos, o rio Azibo, desde a sua nascente, em Rebordainhos, até à sua foz, no Sabor. Mas ainda não chegámos lá. Nem chegaremos hoje. Tínhamos ficado, na nossa última etapa, pelas imediações da Ponte de Balsamão, também chamada de Ponte da Paradinha de Besteiros, por onde se pode alcançar a Sobreda. É um bom momento e um bom sítio para pararmos e fazermos alguma reflexão, antes de continuarmos. É que se o passeio por um rio é uma boa maneira de passar o tempo, de distrair e de descontrair, de espairecer por outros sons, aromas e paisagens que não os da rotina do nosso dia a dia, também é uma boa oportunidade para pensarmos. E hoje venho propor que se pense na confrangedora ignorância que temos acerca da nossa terra. À força de todos os dias pisarmos os mesmos passeios, dizermos o nome das mesmas aldeias e olharmos o mesmo recorte do horizonte, acabamos por já não ver, na sua variedade, interesse e beleza, a terra onde vivemos. Prendemo-nos a conversar e a discutir pormenores batidos e perdemos com isso o tempo de passear, de conhecer, de ficar a amar mais ainda este torrão onde se passa a nossa vida.


Porque não há só o Azibo, com Podence e Azibeiro, Santa Combinha e Vale da Porca, sempre as mais faladas. Nem há só o Monte de Morais. Nem tão-pouco a Serra de Bornes com o Monte do Vilar – o lendário Montemé. Se bem que estes só por si mereçam mais do que uma excursão, mais do que muitos fins de semana de visita e deslumbramento, desde Chacim a Malta e aos Olmos, a Grijó, Vale Benfeito, Bornes e Burga – onde nasce um rio, a Ribeira da Vilariça! Há a Serra do Cubo com Vale de Prados e Arrifana como ponto de partida, a medir a distância. Há a Serra de Bousende, com os seus mistérios, lendas de pedra e lumes velhos em Soutelo, Vilar de Ouro, Cabanas, Espadanedo e Valongo, a sua paisagem e a sua vista fantástica sobre uma boa parte do Norte de Portugal, sobre Espanha, sobre o nosso próprio encantamento de a poder desfrutar. Há Edroso e o seu Santo António, a velha Moimentinha, com um caminho histórico para Comunhas. Há o rio de Macedo, com as suas margens de uma inacessibilidade de descoberta e sensação de se estar num destino turístico digno de uma reportagem do National Geographic Magazine, salpicado por escavações à procura de fortunas de que as Minas de Murçós são a eminência mais visível. Há a ribeira de Carvalhais, com as suas histórias desde Castelãos, os seus fundões misteriosos e todo o vale encravado entre a Cernadela, os Cortiços, Carrapatas e os termos de Bornes e Vale Benfeito. Há a Serra de Ala, espreguiçada desde o Morgadio e o Cabo dos Cortiços, a passar pelo Monte do Facho, montes de Pinhovelo e Vale Pradinhos, estendendo-se à Santa Madalena da Amendoeira, à Senhora do Campo de Lamas, a Gradíssimo e à Senhora da Guia de Nogueirinha, às Alturas de Latães, às encostas para a Carrapatinha e Chorence, para Corujas e para a Ribeira de Codes, todos os dias percorrida por javalis, corços e veados que se descobrem nos amanheceres e nos pores-do-sol que aqui adquirem umas tonalidades de filme de ficção. Pelo meio fica o planalto de Sesulfe com o Convento das Flores, do Brinço com o São Roque.

Para Norte, esses vales silenciosos mas cheios de vida que cercam os serros de Ferreira e Mogrão, de Meles, que cavam vistas abruptas entre as Arcas, os Vilarinhos do Monte e de Agrochão, que se dirigem a Nozelos e ao Tuela onde Argana, Vila Nova da Rainha, Fornos de Ledra e Lamalonga testemunham os velhos itinerários de que a história, a História, também passou por aqui, a falar latim e a falar idiomas arcaicos.

É um crime que se desconheça o nosso concelho! É um crime cultural conhecer Peredo só pela estrada nacional, ir ao Lombo e não sair da aldeia, passar em Castro Roupal, em Vinhas, em Salselas ou em Valdrez e nem perguntar ao menos porque é que aquelas terras terão tal nome, de que é que viviam os que dantes nelas fizeram as suas primeiras paredes. Que é que lhes fica à volta? E se então os nossos dias nos levarem a Talhas, a Lagoa, a Gralhós, a Bagueixe, a Talhinhas, aí temos um mundo a descobrir que nada deixa a desejar de tantos sítios bem longe que vemos na televisão. Os velhos caminhos entre as povoações não nos levam só a destinos desconhecidos: levam-nos até ao destino certo de uma aventura.

E se nos vendassem os olhos e só no-los destapassem nalguns pontos da Ribeira de Vilalva (ou ribeira de Vale de Moinhos) ou nas encostas sobre o Sabor, então diríamos que fora mágico o tempo decorrido no breve espaço em que nos tinham levado até ao cenário de capítulos de um livro de cortar a respiração! Quem não tiver ido aos Castelos, a Talhas ou em Lagoa, e não tiver estado um bocado em silêncio e respeito, a olhar a água lá em baixo, não sabe de todo de que a nossa terra também é feita de algo arrebatador e que nos cala.


Para o próximo mês continuaremos a descer o Azibo. Mas pensemos desde já em conhecer o resto – e o resto é muito mais! E para os que passam a sua vida na cidade, entre Macedo e Travanca ou nas aldeias mais perto, todos estes destinos a minutos de casa valem por muitos a horas de voo! Podem crer.



Manuel Cardoso



(artigo número 10 da série sobre o rio Azibo que foi publicada em 2010-2011 no jornal O Comércio de Macedo).





sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

PERSPECTIVA TURÍSTICA DA CAÇA

Perspectiva turística da caça


Seminário TURISMO: A OPORTUNIDADE EM TRÁS-OS-MONTES

XV FEIRA DE CAÇA E TURISMO

MACEDO DE CAVALEIROS

28 de Janeiro de 2011



Manuel Cardoso

A caça e o turismo, em Trás-os-Montes, andaram ligados no passado e estarão ligados no futuro. Mais do que ser a caça uma forma de turismo, é o turismo que tem na caça um dos seus produtos principais. Saber encarar, estudar e desenvolver esta forma de turismo, é importante para que este recurso continue a ser – e o seja cada vez mais – uma fonte de rendimento e de criação de riqueza. Mas para isso há que mudar alguns paradigmas…

1. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Os caçadores vinham da cidade: do Porto, de Guimarães, de Braga, tendo como destino Trás-os-Montes e, especialmente, Macedo de Cavaleiros. Alugavam quartos na Estalagem, em Pensões e em casas de amigos e compadres. A vinda dos caçadores significava dinheiro, que se veria trocado pelas dormidas, pelas refeições e tainadas, pelos aprestos de caça. Só casas a vender cartuchos legalmente havia, nos anos cinquenta e sessenta, oito. E haveria que gratificar, nas aldeias, o conhecimento dos poios da bicharada, a cedência dos cães, o serviço dos batedores e estafetas, até o trabalho das mulheres que tratavam da indispensável e genuína retaguarda gastronómica. Os caçadores apareciam primeiro para as rolas, mas eram raros, Verão ainda. Depois faziam-se mais numerosos para a perdiz e para os coelhos e lebres, orgulhosos cintos de fartos números em que não era raro aparecer uma raposa. E, Inverno entrado, havia os tordos, abibes e aves frias, nuns anos mais permitidos e noutros menos, caça de espera com rotinas marcadas, campeonatos de número, por olivais reconhecidos de ano para ano. “Vêm aí os caçadores!” era uma frase que marcava uma época, um sintoma da vida social que, economicamente, tinha expressão. Não se lhe chamava turismo mas era-o na sua essência e tomáramos nós que ainda hoje tivesse o significado que tinha. Centenas de noites vendidas em época baixa, elevadas taxas de ocupação num período que hoje é difícil de conseguir.
Edroso, Igreja Matriz, cena de caça ao javali, sécs. XIII-
XIV

2. Não era por acaso que os caçadores demandavam Macedo. A fama antiga de ser fértil em caça reconhece-se nos documentos que estão aí, pelo menos desde a Idade Média, de que as referências nos forais não são raras nem são raros os testemunhos. Por isso há uma caçada ao javali gravada na pedra em Edroso, com mais de seiscentos anos, e há os relatos deixados pelo século XVIII, que nos descrevem uma região, a nossa, abundante de caça, abundante de javalis e de corços, já nesse tempo. Multiplicam-se por aí, na nossa toponímia, as alusões aos cervos. Há livros que nos falam do Monte de Morais como “o mar da caça” e a Serra de Bornes, num tempo em que era cultivada de alto a baixo, foi alvo de várias tentativas para se transformar, na perspectiva desses tempos, em couto venatório. Numa fase de transição, a da transição da caça como forma de abastecimento de proteínas, de sustento de famílias, para a fase mais lúdica, mais desportiva, como então se dizia.

3. E não havendo cartazes, nem jornais que o propalassem, nem notícias de rádio e televisão, como surgiu esse interesse dos homens do litoral por este destino de caça? Quem nos revelou?

Caçadores pioneiros, a que não esteve estranho o facto de para aqui vir, combóio acima, durante anos seguidos, um caçador em particular, seguido do seu séquito, e que aliou à sua paixão pelos nossos montes e vales, o lado utilitário do negócio. Foi ele Manuel Pinto de Azevedo. Começou por vir até cá a convite e hospedado em casa de amigos, os Falcões, mas rapidamente toda a sua entourage ocupava o hotel Saldanha e as outras pensões que havia na vila. Do gosto de caçar pelos planaltos da serra de Ala e nas encostas para os Cortiços lhe veio a ideia de um dia comprar um casal de terra. Daí nasceu, há quase um século, a sua raiz em Vale Pradinhos. Progredindo no mundo dos negócios e relacionando-se com gente cada vez mais elevada no ranking dos empresários do Porto, nacionais e estrangeiros, que desafiava para este seu recanto de Portugal, nasceu a necessidade de ter um sítio onde instalar, com as comodidades que o século XX vinha proporcionando, todos esses seus amigos, de cada vez mais requintada exigência. Olho de caçador, de negociante de grosso trato e industrial, carteira de investimentos com capital bastante para necessidades e para caprichos, manda fazer uma Estalagem. Moderna, confortável, de um luxo fino. E com um grande nome: Estalagem do Caçador. Pensada no pós-guerra, construiu-se e inaugurou-se no início dos anos cinquenta. E teve um condão: identificou-se com Macedo. Em Portugal inteiro e até no estrangeiro, Macedo era a Estalagem. Toda a gente reconhecia este ponto no mapa, um importante cruzamento de estradas, como o sítio onde havia a Estalagem do Caçador. E fez mais pelo turismo pelo simples facto de ter existido aqui do que qualquer campanha para captação de visitantes. Quem quer que viesse a Trás-os-Montes, em negócio, em política, em trabalho, em veraneio, ficava ou passava pela Estalagem do Caçador. Que teve durante anos seguidos, nesses idos de cinquenta, sessenta e ainda setenta, períodos de contínua lotação esgotada. Com clientes habituais, que reservavam de ano a ano o seu quarto para a época venatória. E podiam trazer cão: a estalagem também tinha acomodações para o fiel amigo do caçador. Na esteira da fama da estalagem foram abrindo outras casas. Ainda bem. A caça dava para tudo.

4. O que fez esmorecer esse momento tão bom em que a caça era turismo? A diminuição do poder de compra? A alteração de hábitos sociais? As modificações e melhorias nas vias de comunicação? A democratização deste “desporto”?

Cremos que de tudo um pouco. Mas não há dúvida que as alterações das vias de comunicação, que vieram permitir a ida-e-volta sem esforço a partir do litoral, foi determinante para mudar a maneira de caçar e, sobretudo, o tempo de caçar. Deixou de ser preciso gastar cinco horas, cães a reboque, para vir e cinco horas para ir. Pela metade do tempo vem-se e regressa-se. E este facto foi determinante para transformar em meros visitantes, de um dia escasso, aqueles que até então vinham de véspera ou de antevéspera e eram autênticos turistas de pernoita certa. Com isso perdeu-se o tempo para mais. E a caça, hoje, na maioria dos casos, não é mais do que uma fuga de um dia à rotina, alterando-se definitivamente toda a atmosfera que envolvia a actividade e o modo de gastar o tempo que se lhe dedicava. Mas uma coisa é certa. Ainda há interesse pela caça, ainda somos um destino de caça e ainda não morreu a chama acesa da lareira a que nos aquecemos depois de um dia de caça. Então…

5. …então há que repensar a perspectiva da caça e em vez de equacionarmos o turismo por termos cá caçadores, equacionemos a caça para termos por cá turistas. O produto “caça” é um produto turístico muito mais importante do que o simples acto de caçar um coelho, uma perdiz ou um javali. O pressuposto de que “caça” implica uma arma, um homem e um animal para ser abatido, é apenas um detalhe do nosso produto. “Caça”, em si, é o animal e a sua paisagem. Por aí andam por esses montes e pelas nossas serras. À espera de ser observados, estudados, caçados e comidos. A caça em si é uma experiência que deve ser proporcionada ao turista. Com a presença e a emoção de caçar, de ir pelo campo, de ouvir os cães e sentir o frio e o cheiro. Mas que pode e deve ser complementada com cultura, com arte, com gastronomia. Com ciência! Não é por acaso que o canal Discovery ou o National Geographic Magazine têm elevadas audiências nos programas sobre vida natural: colocam o homem face a face com o jogo mais antigo da humanidade, o da observação dos animais. Algo que um caçador faz, e muito bem. E que tanto pode fazer com uma arma como com uma máquina de filmar ou fotográfica, como com um binóculo ou telescópio. Neste ponto de vista todos somos um caçador potencial. Está-nos nos genes. Saberemos indicar aos nossos potenciais caçadores-turistas onde podem ir caçar coelhos? E perdizes? Sabemos onde está a nossa caça? Como se multiplica? Organizamos workshops sobre a perdiz gastronómica? Organizamos workshops sobre os modos de caçar? Temos algo para dizer ou para mostrar sobre caça a quem nos escolhe como destino turístico? Estamos simplesmente à espera que venham os caçadores e que encontrem caça por aí?... Hm…

Veado em Latães, na Serra de Ala, 12 de Outubro de 2009
6. Para conseguirmos que, no futuro, continuemos a desenvolver a caça na perspectiva do turismo, não basta que haja o monte, a perdiz e a espingarda. Tem de haver algo mais, muito mais. O caçador tem de se sentir acolhido como um turista e não apenas como um cliente de uma associativa. Tem de se sentir bem e tem de sentir que os que traz consigo se estão a sentir bem. Tem de sentir que quando vem à pressa para regressar no mesmo dia, perde algo mais, muito mais, se não ficar cá a dormir. Tal como tem de sentir que o facto de ter vindo sozinho é um desperdício por não ter trazido a mulher e os filhos para que, entretanto, se dediquem a fazer algo que seria impensável e impossível se tivessem ficado na cidade. Um dia de caça entre nós tem de ser uma experiência inesquecível mas repetível, como o era para os caçadores que cá vinham há décadas atrás e passavam a palavra dos dias inesquecíveis nos nossos campos, na nossa estalagem, nas nossas lareiras. Temos de ser capazes de demonstrar que vale a pena não só vir caçar como vale a pena vir passar o dia entre nós. E a noite. E, mesmo que não se cace nada, fazer com que no espírito do nosso turista fique a sensação grata de um dia preenchido e não o desagradável vazio de um dia desperdiçado sem nenhuma perdiz ou coelho para por à cinta.

7. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Mas temos de fazer com que volte um tempo em que os caçadores que cá vêm, com voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, digam “vem aí o nosso fim-de-semana em Macedo de Cavaleiros”. No dia em que isto acontecer, tal significa que a caça deixou de ser uma forma de turismo e o caçador passou a ser um verdadeiro turista. Não se pense que isto é um mero jogo de palavras. Nada disso. Isto é a demonstração de que há uma forma de ver a caça e o turismo como actividades com futuro na nossa terra. Tudo evolui. E o que não evolui, definha e morre. Ora, nós saberemos evoluir.

Albufeira do Azibo, Dezembro de 2007. Foto de Nuno Oliveira Martins

Vivemos um momento difícil, numa conjuntura difícil em que o país foi colocado. Mas os momentos difíceis são sempre momentos de oportunidade. Na perspectiva da caça, o turismo terá um futuro cada vez mais difícil. Mas na perspectiva do turismo, a caça terá um futuro promissor. É esta a maneira correcta de colocar hoje este nosso assunto. Somos um destino turístico de Verão que ultrapassou os 100 000 visitantes. Podemos ser um destino turístico de todo o ano desde que passemos a tratar a Caça na perspectiva do Turismo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA

Quando foi apresentado em Lisboa, no dia 26 de Março de 2009, esteve ausente da sessão o apresentador! Mas enviou um texto que foi lido aos presentes. Esse texto é o post que hoje aqui colocamos, na íntegra. Do qual fiquei muito grato ao seu autor, o Professor Doutor Vítor Serrão.




LANÇAMENTO DE O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA,


ÚLTIMO ROMANCE DE MANUEL CARDOSO

Em jeitos de prolegómeno informal, apenas duas palavras introdutórias. A primeira é de justificação para uma ausência forçada, que é devida ao facto de ter tido de arguir, hoje mesmo, uma tese de Doutoramento na Universidade de Évora, alvo de um agendamento de última hora, com o subsequente serviço académico que me impede de estar de corpo presente neste lançamento; a segunda palavra, e porque estou (ao menos) de espírito presente, é de reconhecimento público, tanto à editora Sopa de Letras e ao seu responsável, o Dr. Henrique Mota, pela forte aposta editorial, como muito em especial ao autor do romance O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA, o novo livro do muito estimado Dr. Manuel Cardoso.

Antes de mais, devo dizer que se trata de um livro fascinante, que cruza tempos e sugere interpenetrações histórico-culturais e afectivas, ao tomar como pretexto de narração a figura do famoso «Dr. Mirandela», médico na corte de D. João V, autor do Aquilégio Medicinal, livro de 1726 sobre as propriedades das águas de Portugal, de que um exemplar cheio de sortilégios reaparece dois séculos volvidos na biblioteca de um velho capitão, aristocrata depauperado, bibliófilo triste com estatuto de desmazelo, a morrer aos poucos entre o quarto arrendado no segundo andar do nº 93 da Rua do Diário de Notícias e as cervejarias do Bairro Alto e das Portas de Santo Antão. O que une ambos os personagens – o do século XVIII e o do século XX – é precisamente a ligação íntima ao tal livro sobre os segredos curativos e propedêuticos das águas de Portugal, «livro com classe», escrito pelo primeiro como se de um projecto de vida se tratasse, relido amorosamente pelo capitão perante auditórios de café onde explicava «os humores, o desopilar das obstruções ou o desinchar dos hidrópicos» a partir das propriedades das águas… Isto, na Lisboa do tempo de Almada Negreiros e em plena ditadura de Salazar – num sugestivo reencontro de tempos, de diálogos sem tempo.

É preciso lembrar que o verdadeiro herói deste livro é uma figura de carne e osso, uma personagem real. Real e, ainda por cima, ilustre. O Dr. Francisco da Fonseca Henriques, vulgarmente chamado «Dr. Mirandela», foi um ilustre médico, escritor e pedagogo da ‘entourage’ de D. João V, ligado a personalidades como o escritor Rafael Bluteau, o mecenas D. Rodrigo de Sá Almeida e Meneses, Marquês de Abrantes, o escultor Claude de Laprade e alguns outros nomes ilustres da sociedade lisboeta de antes do Terramoto. Para que conste – e melhor o situemos neste pré-circunlóquio –, ele nasceu em Mirandela em 1665 e morreu em Lisboa em 1731. Formado em Coimbra, foi médico privativo do Magnânimo, e autor de vários tratados científicos, de que o mais famoso é justamente o (citemos o título na sua integralidade) Aquilegio medicinal, em que se dá noticia das aguas de caldas, de fontes, rios, poços, lagoas, e cisternas do reino de Portugal e dos Algarves [...] dignos de particular memoria, lançado pela Officina da Musica em 1726. É este celebrado livro, várias vezes reeditado em Portugal e no Brasil, que constitui o leit-motiv da narrativa de Manuel Cardoso. É um tratado onde são descritas as qualidades (e impropriedades) das águas de todas as fontes de Portugal, desde os mais formosos chafarizes citadinos às modestas fontes de mergulho das aldeias. O Dr. Fonseca Henriques era filho de um abastado lavrador brigantino, morador em Carvalhais, e teve oportunidade de estudar na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1688, numa época em que o Reino saía a custo da crise provocada pelas terríveis guerras do Portugal Restaurado contra as tropas de Castela. Muito jovem, foi médico em Chaves, abre consultório em Mirandela. O facto de ter um tio que era feitor dos Távoras, permite que cedo vá poder fixar-se na capital, onde conquista a clientela de mais alto estatuto social e ingressa na Academia das Ciências. Em 1706, ascende a médico privativo do novo rei D. João V, ganhando reputação, ainda que nem sempre livre de invejas, caso das rivalidades que manteve com outro famoso médico, o Dr. João Curvo Semedo. O tratado que dedicou às qualidades das águas, e que terá começado pela descrição das propriedades da Fonte de Golfeiras, na sua bem familiar aldeia junto à vila de Mirandela, conquista os públicos e será uma espécie de best-seller da época; nos séculos seguintes, é obra de referência, presente nas melhores bibliotecas e disputada pelos mercados.

O resumo diz assim: «Na biblioteca de um velho capitão solitário figura um livro raro escrito por um médico de D. João V. Que segredos encerrará esse Aquilegio Medicinal sobre as fontes e águas de Portugal? E que águas e fontes serão verdadeiramente aquelas a que se refere o seu autor? É o que nos propõe descobrir nesta aliciante viagem no tempo até ao Portugal do século XVIII».

Eu li este livro, O Segredo da Fonte Queimada (que é a segunda incursão do autor na área do romance, depois do interessante Um Tiro na Bruma) com um crescendo de prazer. Um muito grande prazer. E até devo confessar que tenho uma postura de reserva militante perante a «novelística de História», género em expansão de mercado nos dias de hoje e que permite muitas vezes (a maioria das vezes!) uma deriva contra-factual sem sentido, aliada a um elementar desconhecimento histórico, ou a extrapolações demagógicas. Só excepcionalmente surge, por exemplo, um livro integrado nesse «género» com a qualidade do Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez (1962, recém-editado entre nós pela Sextante), onde de tal modo se recria o ambiente da Itália do século XVI que a obra mereceu ao exigente Jorge Luís Borges um rasgado elogio. Trata-se de tomar a História como o suporte artístico de uma literatura original, envolvente, criativa. Ora são estas valências que observo no romance de Manuel Cardoso: as «três histórias cruzadas» seguem o discurso cotejado de uma meta-narração em que Vicente, o herdeiro, o capitão Eduardo, tio daquele, e o médico-escritor da corte de D. João V, se irmanam para criar uma intriga veraz, poderosa e que, ademais, nos ilumina poderosamente sobre a Lisboa do século XVIII, essa Lisboa a dois andamentos que tão bem nos descreve: luxuosa e miserável ao mesmo tempo, pólo científico e de crendice supersticiosa ao mesmo tempo, urbe de palácios europeizados e de conventos de hábitos medievais ao mesmo tempo, centro de arte barroco-romana e de gostos anacrónicos ao mesmo tempo, capital de Império e urbe tradicionalista ao mesmo tempo, tempo de novos humanismos e de feroz esclavagismo e intolerância ao mesmo tempo… Ainda não há muito me deliciara ao ler o relato desta mesma Lisboa de antes do terramoto descrita com o rigor e a sensibilidade que permitem a extrapolação, na obra de José-Augusto França Lisboa – História Física e Moral (Livros Horizonte). A descrição que o Prof. França faz da Lisboa joanina, por exemplo no espaço de encosta entre a zona do Torel e a Calçada de Santana, incluindo a importantíssima igreja da Pena, igreja que era padroeira dos homens de artes e letras e ainda hoje nos oferece a beleza da sua talha dourada, da autoria de Claude de Laprade, e das pinturas de Jerónimo da Silva e André Gonçalves, faz jus ao ambiente criado no livro O Segredo da Fonte Queimada.

Creio que este livro de Manuel Cardoso se insere nesta mesma linha de reflexão criativa que legitima a contra-factualidade e o «probabilismo de evocação histórica»: basta ver-se a descrição muito credível da figura de D. Ana de Sá Sarmento, espécie de mecenas do Dr. Fonseca Henriques, entre a aldeia de Sesulfe, o cosmopolitismo de Lisboa e o sossego bucólico das terras quentes de Macedo. Dir-se-ia que as hipóteses que a liberdade criativa legitima ganham contornos de veracidade, lendo-se as páginas de Manuel Cardoso em que essa figura dessa amiga-protectora do Dr. Mirandela é parte envolvida. Tinha esboçado um «power-point» com imagens para acompanhar esta apresentação: o frontispício da primeira edição do Aquilegio, alguns retratos da sociedade quinto-joanina, uma possível efígie do Dr. Fonseca Henriques, imagens da igreja de Nossa Senhora da Pena e das artes na Lisboa barroca, etc, etc. Outros sortilégios impediram que tal complemento imagético pudesse ser apresentado. Outra vez será, quero crer, quando o livro chegar desejavelmente a uma 2ª edição.

Igreja de Nossa Senhora da Pena - Calçada de Santana
Resta dizer uma última palavra menos ‘técnica’ e mais pessoal. O Dr. Manuel Cardoso é um distinto médico veterinário estabelecido em Macedo de Cavaleiros, em cuja periferia reside. É, ademais, um empenhado militante na causa da defesa do Património cultural, fazendo parte da direcção da Associação de Defesa do Património ‘Terrras Quentes’, presidida pelo Dr Carlos Mendes. O facto de eu estar ligado, de há alguns anos a esta parte, ao inventário do Património artístico sacro dessa muito desconhecida região, permitiu-me conhecer bem Manuel Cardoso e apreciar as suas altas qualidades humanas, literárias e científicas. A sua probidade de escritor que se liberta de peias amadorísticas e vai afirmando um talento mais solto e amadurecido, levou-o a todo este trabalho de reconstituição de uma adequada «mentalidade de época» a fim de perscrutar os gostos, anseios, crenças e angústias dos lisboetas do primeiro terço do século de Setecentos; assim, o autor reenfocou essa sociedade, e fê-lo com acerto, a fim de enquadrar a intriga – de que não vou obviamente falar, para não privar os leitores do segredo. Apenas direi que existia, e existe ainda, uma certa fonte algures em terras fragosas de Sintra, entre brumas de mistério, que na edição de 1726 foi omitida por exigência régia…

Mas isso fica para o gosto prazenteiro desta vossa leitura.



Vítor Serrão

Historiador de Arte

Universidade de Lisboa

domingo, 20 de junho de 2010

Externato Trindade Coelho - Memórias e Outras Histórias

Os livros de memórias são dos géneros mais interessantes de literatura.


Na realidade, em todos os livros está sempre algo da memória do seu autor mas nos que são de memórias, mais ainda do que num diário, está a perspectiva de quem escreve, focada precisamente num tempo que a passagem dos anos não apaga, flashs esclarecidos de episódios e vivências, a que a posteridade vem dar uma coesão especial. De outro modo ficaria deturpada na informação que o autor quer deixar.

Nos livros de memórias não há só a intenção de registar factos, emoções, datas: há o sabor de os recordar e o saber de os transmitir.

O interesse dos livros de memórias é diferente para quem os escreve e para quem os lê. Quem os escreve tem a preocupação de neles verter a sua intenção; quem os lê rebusca neles com a sua curiosidade. E muitas vezes ambos misturam a visão de quem escreve, a visão e a memória do autor e do leitor, surpreendido pela perspectiva alheia sobre acontecimentos de conhecimento comum. E esta diferença de paralaxe, este autêntico jogo dos possíveis, tem o surpreendente de dar uma dimensão diferente, uma dimensão fecunda que torna atraente de forma invulgar este tipo de literatura. Aliás, reside no desfocar da nossa perspectiva face às realidades vividas por outros, o âmago do atractivo desta literatura, como num perfume reside no ressoar de uma molécula de benzeno a capacidade de impressionar o olfacto. Este palpitar, fruto da dinâmica que se forma por causa de uma mesma memória ser evocada de pontos de vista diferentes, este desfasamento entre o outro e nós, é que cria o lado tão emotivo desta literatura. E quando acabamos um capítulo, um parágrafo ou uma simples passagem em que se nos descobre uma outra forma de ver ou de recordar um facto, logo no nosso espírito surge uma dinâmica de pensamento que nos solta um inspirado suspiro, um vislumbre inédito sobre o tema, uma novidade que, de alguma forma, nos traz felicidade.

São sempre felizes, os livros de memórias, em preencherem o que nos vai cá dentro, mesmo os mais tristes que nos suscitem tristezas, os mais dramáticos que nos ponham contritos, os mais violentos que nos obriguem a fechar algumas páginas ilegíveis ou medonhas. São uma superior forma de felicidade porque à partida não são uma felicidade solitária: à partida são uma forma de felicidade partilhada. Mesmo os que se desfaçam – e nos desfaçam – em lágrimas, essas formas tão líquidas que temos para exprimir momentos extremos.

Este livro do Dr. Garcia, em que são recordados momentos marcantes da sua vida – e em que está muito de uma faceta militante de um homem que soube dosear o seu conformismo e inconformismo ao longo da vida, é um livro com passagens notáveis duma simplicidade literária pura, densamente preenchida por testemunhos cheios de significado. Mas é, também, um livro que, em muitas passagens, é um testamento moral. Não tem frases inúteis. Cada uma delas tem um propósito subjacente: o de ficar para a posteridade como uma marca tão indelével quanto possível. Para quem o quiser ler? Sim e, sobretudo, para os netos, que o autor sente manifestamente capazes de, combinando genes e a interpretação do seu testemunho escrito, se libertarem daquilo que o meu amigo Dr. Garcia não fez ao longo da vida: fugir ao destino. Se se atrevesse a um recomeço, o autor forjá-lo-ia…

Das páginas do livro fica um remorso que se lê mais na luz dos momentos do que na letra das frases: o remorso de não ter querido, ou podido, ou ambas as coisas, fugir ao destino, obrigá-lo a um outro modo de diferença do que foi a sua vida vivida (vida vivida, é mesmo isto).

O Dr. Garcia foi meu professor em 72/73 e 73/74. Aprendi muito com ele, então. Não apenas a matéria das disciplinas, de que ainda faço uma vaga ideia, mas um testemunho de presença, de que ainda tenho a imagem nítida. Estou a vê-lo entrar na sala de aula, sempre de blazer com botões (às vezes o blazer tinha cotoveleiras) segurando uma pasta preta, uma vasta pasta preta, pousá-la na secretária, abri-la, tirar livros e folhas. Depois de nos cumprimentar, olhava pela janela que dava para a rua (a rua Almeida Pessanha, a “rua dos talhos” como então se dizia). Ficava um breve instante sério e pensativo após o que, fitando-nos com um ar vivo, nos dizia:

- Então, que tal?

E começava uma conversa mais ou menos informal, mais ou menos divertida, com histórias e opiniões, com mensagens mais explícitas ou mais implícitas. O tempo ia passando. A certa altura entrava-se na matéria. Pegava no giz e fazia-nos uma demonstração de uma fórmula ou explicava, tracejando números e letras, uma resolução de uma equação.

Durante muitos anos o meu rasto não mais se cruzou com ele, embrulhados ambos em vidas diferentes, entrevistando-o esporadicamente num passeio ou num atravessar de ruas, sempre muito fugaz. Mas eu sabia, mera intuição, que me reservaria, nos reservaria, mais esta lição. Uma lição de vida.

Bem sei que este livro de memórias e outras histórias está, também, eivado de passagens de proclamação marxista, ideologia muito diferente do meu modo de pensar, e eu não venho aqui questionar esse marxismo professo pelo autor. Mas tenho a perplexidade de reler essas proclamações marxistas de um modo estranho: é que não estão ali nas frases ao serviço do mesmo marxismo que as terá inspirado mas de uma forma muito antiga de humanismo. De um humanismo não católico, segundo o autor, mas de um humanismo de quem tem fé em Deus, tem horror à injustiça e à iniquidade deste mundo, das pessoas deste mundo, um respeito escrupuloso pela dignidade das pessoas, sensibilidade perante o belo, a música, a arte. Indignação profunda perante a pusilaminidade e mediocridade de carácter, a falta de companheirismo, a falta de solidariedade social. E quer que todos partilhemos desse seu humanismo. E mesmo se há passagens em que coloca nas palavras uma mais veemente intenção subversiva, a da via armada de uma revolução, a de querer correr a tiro uma certa clique, tal não é um imperativo bélico de um atirador a querer liquidar pessoas: é mais uma vontade (um remorso?) de que não haja mais uma oportunidade desperdiçada, como terá sido outra ou outras, das de mudar o mundo. Há sempre uma idade para se querer mudar o mundo. Felizmente o Dr. Garcia não a perdeu: deixa um incitamento a que outros o façam e de tal sejam capazes.

Todo o tom do livro é o de um homem tranquilo que se indigna perante o lado negativo das pessoas. Todo o tom do livro é o de um homem que agora, ao fim destes anos, sente um sobressalto de intranquilidade pelas mesmíssimas razões. Só que estas razões são as mesmas que levam qualquer homem de boa vontade a sentir-se intranquilo e indignado. Não só aos marxistas e, até, sobretudo aos não-marxistas. Aliás, apesar das proclamações marxistas, a história demonstra que em matéria de sensibilidade social não é o marxismo o bom exemplo a seguir.

De certo modo, este livro é uma declaração de guerra e um pedido de armistício. Com quem? O autor sabe-o e diz-no-lo: com todos aqueles de quem não guarda ressentimentos. Coisa elevada e de uma profundidade que só raros conseguem. Tal como só raros escrevem um livro assim.

Defeito do livro: curto.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O primeiro avião nos céus de Bragança

O PRIMEIRO AVIÃO Que veio ao Distrito de Bragança, aterrou em Macedo de Cavaleiros © Manuel Cardoso e Brigantia[i] O primeiro avião que veio ao Distrito de Bragança, em 26 de Julho de 1922, foi um biplano Breguet, aterrou em Macedo de Cavaleiros e foi pilotado por Sarmento de Beires. O pretexto da sua vinda foi o da festa de Santa Bárbara, desta vila, a ser celebrada a 28, 29 e 30 de Julho, mas a sua repercussão ultrapassou em muito quer o âmbito geográfico quer religioso das festividades.
As viagens e peripécias aéreas dos nossos aviadores, então ainda pioneiros e impregnados de espírito de aventura, estavam no auge. Nesse ano e nos meses que antecederam esta incursão pelos céus trasmontanos, os jornais tinham-se enchido com a saga da Travessia do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Patrocínios, subscrições públicas e procura de propaganda, a que a venda e disputa de público leitor pelos principais jornais não estava alheia, tornavam efervescentes todas as iniciativas que pusessem a voar aquelas máquinas extraordinárias, quais brinquedos de entreter de forma séria um povo inteiro que queria, a todo custo, um escape para os tempos sombrios, conturbados e infelizes da Primeira República. Macedo não fugia à regra geral. Os grupos que remexiam na baixa política de campanário e que estagnavam o progresso ao estar envolvidos em intermináveis discussões bizantinas e em conspiratas menores de farmácia e barbearia, precisavam urgentemente de um facto que saísse do ramerrame e galvanizasse o povo. Se não o povo, pelo menos a sua esperança. Foi daí que um dos sectores, numa inspiração elevada na completa acepção da palavra, se lembrou de fazer vir um avião até Trás-os-Montes. Esta viagem implicou contactos, negociações e recolha de fundos. Já o jornal “O Século” de 13 de Julho de 1922 trazia uma antecipação do que estavam a ser os preparativos, anunciando quem iria ser o piloto, qual o avião e que já havia a necessária licença do senhor Ministro da Guerra. Noticiava-se mesmo que o senhor Venâncio de Carvalho Morais, industrial, representava a comissão de festas em Lisboa e tinha, junto do governo, assumido o compromisso de providenciar o campo para a “aterrissage”.

Um campo no alto dos Merouços foi nivelado com uma lavra por juntas de bois, gradado, compactado a cilindro e despedregado dos maiores calhaus, numa extensão de mais de três centenas de metros, para que a máquina voadora pudesse pousar e levantar. Fez-se uma edição de postais ilustrados para angariar algum dinheiro e propagandear o acontecimento. O Cartaz do programa, impresso em Lisboa, é eloquente. Terá havido um certo secretismo na preparação deste importante acontecimento, divulgado pràticamente em cima da hora, a menos dum mês da sua realização, para que a ideia não fosse "roubada" por alguma das outras potenciais rivais em querer disputar este evento inédito, nomeadamente Bragança ou Mirandela. 



Contactaram-se os jornais para patrocínio, vindo a ser o “Diário de Notícias” o eleito. Se bem que o contagiante rodopio de preparativos das festas, de cuja comissão fazia parte o senhor Francisco Parente, chegasse a todos os outros órgãos de informação e tenha sido novamente “O Século” que, a 22 de Julho, noticiasse que iria ser um deslumbramento para quem se deslocasse a Macedo: quatro bandas de música, iluminações à moda do Minho, barraca de kermesse artisticamente ornamentada na qual venderiam sortes as mais gentis damas macedenses. Da parte religiosa constava missa a grande instrumental, procissão de penitência e missa campal. A coluna do jornal não termina sem que se refira: “Um dos grandes atractivos das festas será a vinda de um aeroplano pilotado pelo capitão-aviador sr. Sarmento Beires, o qual deverá aterrar no campo que está preparado para esse fim, no dia 28 às 9 horas[1], fazendo antes algumas evoluções sobre a vila, mostrando assim, ao povo trasmontano, os progressos da nossa aviação. O interesse regional procura atractivos de forma a tornar a vila de Macedo de Cavaleiros, que é já a mais bonita do distrito, a mais conhecida e a que mais distracções e comodidades oferece aos forasteiros. Espera-se por isso que as festas sejam grandemente concorridas.”[2]
 Dias antes, sob instruções técnicas do piloto e da esquadrilha a que pertencia o aparelho, a da Amadora, tinha vindo por caminho de ferro o combustível necessário, óleo e apetrechos. Combinara-se mesmo haver uma fogueira fumarenta à hora da aterragem, para que se pudesse aperceber do alto de que lado estava o vento. No dia 26 de Julho de 1922, às seis horas e trinta e cinco minutos da manhã, um biplano “Breguet 2” levantou voo da Amadora. Pilotava-o o Capitão Sarmento de Beires e vinham mais dois tripulantes, o Tenente José Carlos Piçarra como observador e o Sargento Ajudante Pinto de Gouveia como mecânico.
Percorreu os 350 Km até ao destino, sem escala. A sua aventura foi sendo seguida de terra pelas povoações sobrevoadas como Salgueiros (Casal Jusão), em que chegou a haver pânico nalgumas pessoas e onde o senhor João de Figueiredo Agostinho, comerciante em Benguela, fez subir alguns morteiros de saudação; Vila Moreira, às 8 horas, Sernancelhe, às 9; transportando a bordo centenas de Diários de Notícias, foram sendo despejados sobre Mangualde, Lamego, Moimenta da Beira e, no meio de uma euforia geral, sobre Macedo de Cavaleiros. Estes jornais, pela primeira vez recebidos no Distrito de Bragança a escassas quatro horas de terem sido impressos, foram disputadíssimos entre a população, tendo havido coleccionadores que chegaram a pagá-los a 10 escudos quando o seu preço de número era de 10 centavos (100 réis)! Os macedenses e forasteiros tinham madrugado para assistir ao voo de chegada e aguardavam com nervosismo a ansiedade as horas que passaram desde que o telégrafo tinha avisado que a aeronave levantara voo da Amadora.
Por fim, um ronco contínuo foi sentido a vir dos lados de Bornes. Aterrissagem às nove horas e trinta minutos. Três horas, da Amadora a Macedo de Cavaleiros! Foguetório e banda de música, numa manhã de sol em que as senhoras se tinham munido de sombrinhas, os vivas e as saudações aos aviadores foram efusivas! A comissão tinha um brinde para esta iniciativa e os seus elementos, o senhor Venâncio Morais, Manuel Serra, Lázaro Rodrigues e Francisco Parente, em sintonia com a Câmara Municipal, comunicaram que esta última tinha decidido oferecer ao estado por intermédio do senhor Capitão Sarmento de Beires, o campo de aterrissagem. Era a primeira tentativa séria, feita da parte da sociedade civil, para que o Nordeste, “esta região do extremo do país”, como se lhe refere o Diário de Notícias nos telegramas recebidos de Macedo de Cavaleiros, tivesse ligações aéreas com o resto do mundo! Milhares de pessoas aguardavam e observaram a aterragem.
Foguetes, sinos a rebate, correrias, foi um dia de entusiasmo e espanto. Aliás, uns dias. Porque o avião ficou por estas bandas uma semana.
No dia 30[3] o aeroplano levantou voo para fazer um tour pelo distrito, tendo sobrevoado Bragança, facto que ocorria pela primeira vez na história! Foi às seis horas e dez minutos da manhã! Houve foguetes e correrias e o assunto foi acaloradamente discutido pelos cafés e botequins, tendo sido esse facto decisivo para que a opinião pública bragançana despertasse para o progresso que representava a viação aérea!
O regresso à Amadora deu-se no dia 3 de Agosto. A viagem iniciou-se com a descolagem às 5,30 h, passou por Mangualde pouco depois das 6 e por Carregal do Sal às sete menos um quarto, tendo aqui sido saudado por uma morteirada. Passou sobre a Serra da Estrela e Coimbra, causando a sensação da novidade por todo o lado. Aterrou na Amadora às oito e vinte. Foi um record nacional de velocidade! 350 Km em duas horas e cinquenta minutos!
Durante anos perdurou na memória de quantos assistiram esta primeira vinda de um aeroplano ao Distrito e este testemunho documental e fotográfico aqui fica para a história de Macedo de Cavaleiros e para a história regional.
Bibliografia e fontes Diário de Notícias O Século Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Vol.IX, pg.233 Manuel Cardoso, Macedo Rua a Rua, ed. Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros Fotografias da família Sousa Cardoso Postal ilustrado s/d, possivelmente da Casa Parente, Macedo de Cavaleiros; arquivo familiar de Luís Miranda Pereira, no Solar Morgado de Oliveira.
Na primeira página do Diário de Notícias de 27 de Julho de 1922 há uma fantástica notícia desta aventura, com uma fotografia em que aparecem os três aviadores da façanha, aqui reproduzida.
A Ilustração Portuguesa, n.º 862, de 26 de Agosto de 1922, reproduz uma fotografia, "cliché Serra Ribeiro", na sua última página, intitulada Raid a Macedo de Cavaleiros, tomada antes do aparelho levantar vôo com o capitão Sarmento de Beires, o tenente Piçarra e o mecânico Gouveia.
[1] Acabou por ser a 26, como se pode ver neste artigo. [2] In O Século de 5ª feira, 22 de Julho de 1922. Devo ao Dr. Lécio Leal e ao Dr. Carlos Mendes, da Associação Terras Quentes, a paciente busca deste jornal na Biblioteca Nacional. [3] Não pudemos confirmar ou desmentir esta data ou outra indicada para este facto. O Abade, nas Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, vol.IX, pg 233, escreve que terá sido a 31 de Julho. De acordo com a redacção dada no jornal, terá sido a 30 mas pode tratar-se de uma interpretação do correspondente pelo que continuamos com a dúvida de 30 ou 31! Talvez algum leitor tenha uma prova irrefutável!!!! Uma foto datada!!! Uma carta que refira o acontecimento!!! Qualquer documento!!!
[i] Uma versão deste artigo foi publicada na revista Brigantia, do Arquivo Distrital de Bragança, em 2007.
Este artigo está em revisão, em 2022, com vista à sua actualização com documentos entretanto descobertos ou fornecidos e com novos elementos sobre o acontecimento que relata. Algumas das fotos exibidas na sua publicação original, que ainda estamos a tentar datar e enquadrar com precisão, referem-se a um acontecimento posterior, de 1927. A essência do que se pretende assinalar está correcta: o primeiro avião a vir ao Nordeste de Portugal aterrou em Macedo de Cavaleiros e tal aconteceu em 1922.  Manuel Cardoso, 7.01.2022. 

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Exposição de Pintura

Mais uma vez no Hospital de Macedo de Cavaleiros
de 15 de Dezembro de 2008 a 3 de Janeiro de 2009



Summertime http://adriveinmycountry.blogspot.com/2008/08/summertime.html é muito mais difícil de entender no Inverno. Mas é quando sabe melhor. Olhar para trás, para dezenas de anos atrás e sentir o que é ter uma folha em branco no dia em que se começa a escrever.


“One of these mornings

You're going to rise up singing

Then you'll spread your wings

And you'll take to the sky”


Com Gershwin é muito mais fácil de entender, mesmo no Inverno. E é quando sabe melhor. Voltar atrás, ouvir a faixa desde o princípio e sentir o prazer de recomeçar, não importa a idade, recomeçar com o sabor e o saber de já o ter feito um dia.
As quatro telas Summertime aqui expostas são quatro reinícios de um mesmo tema. Que não pararam ainda.
O Vislumbre de Aleph é ainda uma primeira versão e só uma primeira versão do Aleph. O de Borges (não ponho a imagem em post).

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Uma ida para os Açores



Excerto de uma carta escrita pelo Tio Abel a contar a sua ida para Vila Franca do Campo. É natural que a grafia de alguns termos vá sendo alterada neste post ao longo dos próximos dias, conforme lhe fizer a revisão. Vou fazer com que fique tal e qual ele a escreveu.

DE LISBOA A S.MIGUEL

- No mar –

A hora de embarque estava marcada para as 10 horas da manhã. O “Açor” estava atracado à muralha do cais, em frente à Rocha do Conde de Óbidos, um pouco abaixo de Santos. Às 10 menos um quarto cheguei a bordo; estavam já quasi todos os passageiros; procedia-se ao embarque de bagagens. Soube-se que a hora de partida fora mudada para o meio dia por causa das malas do correio. Encontrei a bordo o delegado que ia para as Flores e um advogado de Ponta Delgada. Entabolamos conversa, como se fôssemos conhecidos velhos e passeámos no cais para nos despedirmos da terra que com muito custo íamos brevemente deixar.
O meu colega das Flores, formado 6 anos antes, de 30 anos de idade, dizia, mas parecendo ter mais 3 ou 4, estava inconsolável, porque deixava em Verride, próximo a Coimbra, mulher e dois filhitos. Conversando, foi-me dizendo que levava tantos com quantos pares de meias, etc. 5 ou 6 fatos, não sei quantos chapeus, etc.etc. e até quanto dinheiro (que só levava 200:000 £); insistia muito em que não receava as dificuldades no exercício do cargo, porque tinha advogado seis anos, tinha servido de delegado, que apesar disso tudo e do bom concurso que fez apanhou dois EE, isto é, passou pela tangente. Esta insistência na sua prática, etc., mais me fazia desconfiar da sua ciência. Enfim deu-me uma maçada bem razoável com minúcias e coisas que nada me interessavam e deixou-me de si uma fraca ideia relativamente a fósforo. Depois durante a viagem serviu-nos um pouco de bobo, saindo-se às vezes com uns ditos a tempo. As senhoras também se riam. Uma disse-me – este seu colega é duma ingenuidade... – Próximo ao meio-dia chegou o alferes Rosa e senhora (Rica, d’aí). Pouco depois dava-se o 1º sinal; os que tinham vindo despedir-se retiravam para o cais, enxugando os olhos; e não eram só eles; os que ficavam a bordo faziam o mesmo, até os que não tinham ninguém a despedir-se...
Enfim largou, era meio dia em ponto. De terra acenavam com lenços e chapéus, de bordo todos correspondiam. Aí vamos Tejo abaixo. O dia nublado não nos deixou disfrutar bem aquele belo panorama que se desenrola à vista de quem desce o rio até S.Julião da Barra. D’ali a pouco, Lisboa ficava envolta em vapores aquosos que mal deixavam desenhar os contornos e ver muito confusamente a casaria. Triste despedida! Esta vista de Lisboa deve ter muitos mais encantos quando, entrando a barra, se subir o Tejo. Oxalá eu o experimente brevemente. – A carga do navio era enorme; os passageiros cento e tantos. Em terceira, e creio que em 2ª vinham à cunha. Em 1ª éramos vinte e tal. Todos estavam no convés. O tal delegado das Flores, o advogado, já velhote, que vinha de Lourdes, onde, dizia, tinha deixado de ser neurasténico; alferes Rosa com uma criança e mulher; outro e filha de 11 ou 12 anos; um major, um fagulha que não estava quieto e metia o nariz em toda a parte, e filho, estudante de preparatórios, outro tal como o pai; um estudante de medicina, mulher e filhito; um negociante de Ponta Delgada; outro ilhéu; o meu companheiro de camarote, rapaz de 18 anos, pouco mais ou menos, que fazia muito bem o papel de mudo; uma velhota, toda amável, e uma neta dos seus 18 a 20, nada desagradável, que viveu em ponta Delgada e têm casa e muitas propriedades aqui, em Vila franca; e não sei se mais alguém. – Passámos a Barra à 1 hora e 10 minutos; nesta altura desapareceram alguns, isto é, foram recolhendo ao beliche. O mar fora estava um pouco picado; começava o balanço. Às duas passávamos o Cabo da Roca; foi lançada a barquinha para medir o espaço que íamos percorrendo. Comecei a não me sentir bem. Às duas e meia, pior e dirigi-me para o camarote, seguindo o exemplo de outros; o tal meu companheiro já lá estava encafuado no beliche: mal ali cheguei lancei os restos do almoço que ainda tinha no estômago e deitei-me. D’ali a pedaço lá senti ir alguns, poucos, para a mesa. Eu continuei enjoado, com vómitos muito frequentes, sem nada no estômago, lançando apenas água, outras vezes nada. Assim passámos a noite eu e o meu companheiro, um em frente do outro a vomitar ao desafio. O vapor dava balanços enormes, quase que se tombava; as ondas varriam o convés; nós como que navegávamos por baixo de água. D’aquele ruído contínuo sobressaía, de vez em quando e depois mais frequente, um estrondo que algumas vezes se me semelhava a um trovão; era o hélice que muitas vezes trabalhava em vão. Passei uma noite horrível e, mais que uma vez, pensei em que por aquele preço não valia aceitar o despacho. No dia seguinte, Domingo, o tempo e o mar não estavam melhores, no entanto o meu estômago, já um tanto habituado aqueles movimentos, estava um pouco mais sossegado, e aí pelo meio-dia piude beber talvez decilitro e meio de água de um caldo de galinha, que conservei. Era o primeiro alimento que tomava desde o almoço às 9 do dia anterior, nem água tonha bebido. Às 4 da tarde deste dia (17) bebi outra água de caldo que pouco depois vomitei. Na segunda-feira (18), apesar de ter passado a noite de domingo mal, porque o balanço foi medonho, já tomei dois caldos e à noite chá, tendo-me levantado um pouco à tarde. Até este dia (18) ao meio dia atrazámo-nos um dia na viagem. Desde as 2 da tarde de sábado até às 12 de domingo andamos 170 milhas,; até ao meio-dia de segunda (2º dia) 136 milhas. (cada três milhas regulam por uma légua). Nesses dois dias o mar foi tão forte que algumas ondas passavam por cima do cano da chaminé do vapor, entrando água para dentro. Na segunda à tarde tornou-se muito melhor, mas não bom, e assim se conservou sempre até à ponta da ilha. Até ao mei-dia de terça (19) andamos 230 milhas. Era neste dia que devíamos chegar a S.Miguel se não fosse o atraso que sofremos. Levantei-me logo de manhã bem disposto, tendo passado uma noite razoável, e fui para cima; já se podia sair para o convés sem perigo de tomar banho. Apareceu muita gente essa manhã. O almoço foi a refeição mais concorrida de toda a viagem. Eu comi, não muito, mas com apetite e sentia-me bem, só as calças me andavam a cair; efeitos daquele jejum de três dias. Tudo foi para a sala do convés. A velhota apresentou-me à sua neta. Houve cavaqueira animada até ao jantar, sem deixarmos de ir sempre razoavelmente embanados, o que fez com que as senhoras se retirassem um pouco antes do jantar, a que só assistiu a velhota. Vimos um vapor não muito longe, que devia dirigir-se talvez para o Estreito de Gibraltar. Não se chegou à fala. Eu jantei bem, à noite tomei chá e só fui para o beliche depois das dez horas. Enfim, se não fosse o ver-me só e a ideia de que cada vez mais me afastava dos meus, tinha sido um dia bom e eu considerava-me apto a andar assim embalado muitos dias. Demais tinha a consolar-me que, indo passageiros que tinham feito muitas viagens, todos enjoaram; até uns marinheiros da armada que vinham na 3ª classe; dos próprios criados e empregados de bordo, poucos escaparam; e mesmo o capitão confessou que tinha tido o seu incomodozito de cabeça. – Alguns passageiros diziam ter sofrido grandes tempestades e temporais mais violentos e não enjoarem; mas desta vez encontramos a mar assim picado logo à saída da barra, quando o estômago não estava ainda habituado ao balanço, e conservou-se assim constantemente quase três dias. Que nós não tivemos o que se chama tempestade, nem estivemos em muito grave perigo; foi o vento que levantou assim o mar, e que soprava contrário ao nosso rumo. Neste dia 19 ao meio dia tínhamos, desde o Cabo da Roca, 536 milhas andadas, faltando-nos 214 até à ponta da ilha. Sabíamos por isso que na manhã seguinte teríamos terra à vista. Efectivamente na quarta-feira todos se levantaram cedo para ver a tão desejada terra, que lá estava em frente coroada de nuvens. Para o Sul víamos também a Ilha de Santa Maria, uns picozinhos que se desenhavam vagamente e muito distantes. S.Miguel fez-me lembrar um pouco a nossa Serra de Bornes, vista de longe. Apresentou-se-nos pela extremidade leste e por isso com pouca extensão, pois que o seu maior comprimento (18 léguas) é de leste a oeste, podendo apreciar-se pelos lados norte ou sul. – Mesmo á nossa frente estava uma povoaçãozita a meio da encosta com as casinhas muito brancas, que subindo pelo monte pareciam os degraus de uma escada. Tomamos pelo sul da ilha, eram 10 horas e meia, para nos dirigirmos para Ponta Delgada, que fica na cista sul a 25 milhas por mar, e aí a 12 léguas por terra, da Ponta de Nordeste, que primeiro se encontra, indo de Lisboa. No centro da ilha picos bastante elevados, depois vêm outros mais baixos, depois outros até à costa que em parte é muito alta. Assim é a copsta leste e a do sul até próximo a Vila Franca; apenas onde há ribeiras é acostável e aí em geral há uma povoação. A aparência geral é agradável; muita vegetação e as casas todas a branquejarem, nas mais pequenas aldeias.
Fomos passando em frente da costa sul. Além de outras povoações, lá estava o Faial da Terra, aldeia com a aparência de uma vilazita, e bonita, com a sua igreja com torre, muito bem situada num valezito ao pé duma ribeira. A vila de povoação, não tem tão boa aparência e dizem-me mesmo que é feia; fica situada numa poça muito apertada, cercada de montanhas que nela despejam as suas águas, com uma única saída para o mar; por isso está sujeita a perigosas inundações. Depois d’outras aldeias pertencentes à comarca de povoação, aparece-nos a Ponta Garça que parece um interminável carreirão de formigas brancas. È uma rua só, mas com uma boa légua de comprida; está situada num campo ao correr das montanhas, compreendido entre o sopé destas e a costa que é alta. Adiante abaixa mais e forma uma baía ao princípio da qual temos a Ribeira das Tainhas e Ribeira Seca, povoações que já pertencem à freguesia de S. Miguel de Vila Franca. Esta ocupa o resto da baía e apresenta do mar uma vista lindíssima, com a casaria branca, as igrejas, torres e outros edifícios maiores a sobressaírem; estufas dentro, em volta, por toda a parte, (são de lá os melhores ananazes da ilha). Aqui o campo até ao sopé dos montes é muito mais largo. A vila ocupa bastante extensão tanto em comprimento como em largura. Ao fim (poente) da vila a terra faz uma pequena ponta que termina a baía, e que parece ser continuada pelo ilhéu, que fica um pouco desviado da costa. Este ilhéu parece ter estado unido á ilha e que talvez os tremores de terra e erupções vulcânicas, que ela muito sofreu, o fizessem separar. Para além da ponta temos outra baía; mas esta, das suas três léguas, e vai tyerminar a Ponta Delgada. Antes, porém, fica Água de Pau, com a sua serra de muita e boa água que abastece a cidade; Vila de lagoa, povoação importante, cabeça de concelho, pertencente à comarca de Vila Franca, é tão grande como esta e tem uma boa fábrica de destilação de batata doce que aqui se cultiva em grande escala. Depois Rosto do Cão, etc., e por fim a cidade que é bastante grande e que do mar tem uma linda vista. Para lá da Serra d’Água de Pau a ilha é muito menos montanhosa, elevando-se mesmo o centro a muito menos altura. – Chegamos finalmente ao porto pouco depois da 1 hora deste dia 20, quarta-feira, demorando quase três horas desde a Ponta de Nordeste. O vapor apitou apitou, lançou ferro e deu um tiro de peça, como costuma fazer para anunciar a chegada. Começaram a enxamear os barcos e depois de feita a visita médica houve um extraordinário movimento a bordo: os que vinham esperar os seus parentes e amigos, entravam, abraçavam, beijavam, cercavam os recém-chegados que tinham a alegria no rosto; outros iam desembarcando e seguindo nos escaleres para terra. Que animação!... que alegria, que satisfação, especialmente nos que chegavam a suas casas, ao pé das suas famílias! Mas…, que tristeza!..., eu também chegava e… não tinha ali ninguém: nem família nem amigos; tudo estranhos! Pelo contrário, a chegada dava-me a certeza da grande distância que me separava dos que me eram caros. E em volta de mim tanta alegria!...





Abel Thomaz Aquino Oliveira e Sousa nasceu em 8 de Julho de 1876 em Vila Nova de Foz Côa e foi baptizado em Macedo de Cavaleiros em 31 de Julho, tendo por padrinhos o seu tio Abade de Macedo, Padre Thomaz Aquino de Miranda e sua avó, D.Josefa Rosa de Miranda. Era filho do Dr. José Felizardo Rodrigues de Sousa e de sua mulher Dona Cândida Augusta da Conceição Oliveira de Miranda, filha mais velha dos Morgados Oliveira, em Macedo de Cavaleiros. Morreu com tuberculose em 27 de Junho de 1904 em Macedo, solteiro e sem filhos. Estudou na Universidade de Coimbra. Estava-lhe reservada uma carreira pela magistratura, que encetou, e depois pela política, estando já acertado o seu ingresso numa futura lista de deputados quando a tuberculose o veio surpreender e vitimar aos vinte e sete anos. O desgosto que tal causou na família terá sido a causa próxima da morte de seu pai, o Juiz Sousa. A sua curta vida foi socialmente intensa e preenchida. Numerosos acontecimentos na Foz, no Porto, na Póvoa de Varzim, em Vila do Conde, em Espinho e na Figueira da Foz contaram com a sua presença animada, sendo sócio de vários Clubs e agremiações destas localidades onde aparecia com as irmãs e em que era figura conhecidíssima. Sabia música, como todos em casa, e tinha uma grande cultura geral, interessando-se sobretudo por poesia. A família sempre teve horror às doenças e, formada com as notícias das descobertas de Pasteur e de Koch, que chegavam a este recanto de Trás-os-Montes com a Lectures pour tous e o Ilustrated London News, olhou sempre com imenso receio para “as coisas do Abel”, encerradas numa arca defumadíssima com eucalipto antes de ser fechada com quilos de cânfora e naftalinas, temerosíssima de dela poderem sair micróbios e gérmenes de morte. Durante dezenas de anos ninguém lhe mexeu, objecto relegado para um sótão. Um dia foi aberta para umas partilhas mais utilitárias do que reverentes e que desprezaram “os papéis do Abel” como coisa de somenos valor, sem o brilho de uma encadernação ou o colorido das fitas de Coimbra. O conteúdo da arca ficou espalhado pela primalhada toda, sem nexo, destituído para sempre do seu sentido de unidade. E agora aparecem por aqui e por ali umas folhas soltas de correspondência e apontamentos. Estas, da famosa ida do tio Abel para os Açores, foram-me deixadas copiar pela Prima Maria Fernanda Falcão. Um muito obrigado. Espero que, difundidas agora pelo “hiperespaço”, tenham adquirido o condão de uma certa forma de eternidade e não se percam mais, para grande satisfação dos sobrinhos-netos, bisnetos e etc. que nelas encontrem motivo de interesse!