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domingo, 1 de outubro de 2017

Eng.º Menéres Manso

ANTÓNIO CLEMENTE MENÉRES MANSO

Morreu hoje no Porto, onde se encontrava internado no Hospital da CUF, o nosso excelente Amigo Eng.º António Clemente Menéres Manso. Homem dotado duma visão perspectiva e prospectiva sobre a agricultura e o desenvolvimento regional, na esteira do que foi o pensamento e a acção do Eng.º Camilo de Mendonça, a sua opinião fundamentada era ouvida, partilhada e considerada por muitos dos que com ele tivemos o privilégio de conviver.
Nasceu em Vila Nova de Gaia em 16 de Março de 1934, filho de Alberto António Martins Manso e de sua mulher D. Josefina Pinto dos Santos da Fonseca Menéres, em casa de seus avós maternos.
A sua aldeia de referência era Valpereiro, concelho de Alfândega da Fé, onde até aos dez anos de idade frequentou a escola primária e onde geria a sua casa agrícola, permanentemente preocupado com a criação de animais em modo de produção biológico e com a produção dum azeite de excepcional qualidade que lhe tem vindo a  grangear prémios e reconhecimento nacional e internacional.
Estudou em Lisboa, onde se licenciou em Engenharia Agronómica pelo Instituto Superior de Agronomia. Trabalhou para a Federação dos Grémios da Lavoura do Nordeste Trasmontano, a partir de 1954, e no Complexo Agro-Industrial do Cachão onde exerceu as funções, sucessivamente, de Director do ramo Produção Pecuária, Director de Produção Industrial, Administrador Delegado (1978) e Presidente do Conselho de Administração. Entre 22 de Fevereiro de 1985 e 16 de Março de 1987 exerceu as funções de Director Regional de Agricultura de Trás-os-Montes e Alto Douro. Foi dirigente associativo e fundador de diversas organizações da lavoura. Só para citar algumas, a AOTAD, a APITAD e o Centro de Gestão do Vale do Tua.
Foi autarca pelo CDS, tendo sido vereador da Câmara Municipal de Alfândega da Fé entre 1989 e 1993. Já tinha sido também Vice-Presidente da Câmara Municipal de Mirandela entre 1969 e 1972.
Deixou obra escrita, nomeadamente sobre ovinicultura, comercialização de azeite e produção de leite. Mais recentemente dedicava-se a investigação sobre a vida e a obra do Eng.º Camilo de Mendonça, tendo publicado este ano “Eng.º Camilo de Mendonça e o desenvolvimento do Nordeste de Portugal”. http://mdb.pt/opiniao/camilo-de-mendonca .
A agricultura do Nordeste e em especial a de Alfândega da Fé fica a dever-lhe uma paciente e persistente acção a seu favor, de que destacamos o seu papel inspirador e motivador para a manutenção, renovação e ampliação das redes de rega.
Ultimamente repartia o seu tempo entre Mirandela e Valpereiro, mantendo-se actualizado e informado em termos científicos e técnicos nos seus temas de interesse. Recordaremos sempre o seu fino sentido de humor e ficam-nos, inesquecíveis, muitos momentos que partilhámos, inclusive na véspera da sua morte.

Latães, 01.10.2017 

domingo, 23 de janeiro de 2011

O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA

Quando foi apresentado em Lisboa, no dia 26 de Março de 2009, esteve ausente da sessão o apresentador! Mas enviou um texto que foi lido aos presentes. Esse texto é o post que hoje aqui colocamos, na íntegra. Do qual fiquei muito grato ao seu autor, o Professor Doutor Vítor Serrão.




LANÇAMENTO DE O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA,


ÚLTIMO ROMANCE DE MANUEL CARDOSO

Em jeitos de prolegómeno informal, apenas duas palavras introdutórias. A primeira é de justificação para uma ausência forçada, que é devida ao facto de ter tido de arguir, hoje mesmo, uma tese de Doutoramento na Universidade de Évora, alvo de um agendamento de última hora, com o subsequente serviço académico que me impede de estar de corpo presente neste lançamento; a segunda palavra, e porque estou (ao menos) de espírito presente, é de reconhecimento público, tanto à editora Sopa de Letras e ao seu responsável, o Dr. Henrique Mota, pela forte aposta editorial, como muito em especial ao autor do romance O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA, o novo livro do muito estimado Dr. Manuel Cardoso.

Antes de mais, devo dizer que se trata de um livro fascinante, que cruza tempos e sugere interpenetrações histórico-culturais e afectivas, ao tomar como pretexto de narração a figura do famoso «Dr. Mirandela», médico na corte de D. João V, autor do Aquilégio Medicinal, livro de 1726 sobre as propriedades das águas de Portugal, de que um exemplar cheio de sortilégios reaparece dois séculos volvidos na biblioteca de um velho capitão, aristocrata depauperado, bibliófilo triste com estatuto de desmazelo, a morrer aos poucos entre o quarto arrendado no segundo andar do nº 93 da Rua do Diário de Notícias e as cervejarias do Bairro Alto e das Portas de Santo Antão. O que une ambos os personagens – o do século XVIII e o do século XX – é precisamente a ligação íntima ao tal livro sobre os segredos curativos e propedêuticos das águas de Portugal, «livro com classe», escrito pelo primeiro como se de um projecto de vida se tratasse, relido amorosamente pelo capitão perante auditórios de café onde explicava «os humores, o desopilar das obstruções ou o desinchar dos hidrópicos» a partir das propriedades das águas… Isto, na Lisboa do tempo de Almada Negreiros e em plena ditadura de Salazar – num sugestivo reencontro de tempos, de diálogos sem tempo.

É preciso lembrar que o verdadeiro herói deste livro é uma figura de carne e osso, uma personagem real. Real e, ainda por cima, ilustre. O Dr. Francisco da Fonseca Henriques, vulgarmente chamado «Dr. Mirandela», foi um ilustre médico, escritor e pedagogo da ‘entourage’ de D. João V, ligado a personalidades como o escritor Rafael Bluteau, o mecenas D. Rodrigo de Sá Almeida e Meneses, Marquês de Abrantes, o escultor Claude de Laprade e alguns outros nomes ilustres da sociedade lisboeta de antes do Terramoto. Para que conste – e melhor o situemos neste pré-circunlóquio –, ele nasceu em Mirandela em 1665 e morreu em Lisboa em 1731. Formado em Coimbra, foi médico privativo do Magnânimo, e autor de vários tratados científicos, de que o mais famoso é justamente o (citemos o título na sua integralidade) Aquilegio medicinal, em que se dá noticia das aguas de caldas, de fontes, rios, poços, lagoas, e cisternas do reino de Portugal e dos Algarves [...] dignos de particular memoria, lançado pela Officina da Musica em 1726. É este celebrado livro, várias vezes reeditado em Portugal e no Brasil, que constitui o leit-motiv da narrativa de Manuel Cardoso. É um tratado onde são descritas as qualidades (e impropriedades) das águas de todas as fontes de Portugal, desde os mais formosos chafarizes citadinos às modestas fontes de mergulho das aldeias. O Dr. Fonseca Henriques era filho de um abastado lavrador brigantino, morador em Carvalhais, e teve oportunidade de estudar na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1688, numa época em que o Reino saía a custo da crise provocada pelas terríveis guerras do Portugal Restaurado contra as tropas de Castela. Muito jovem, foi médico em Chaves, abre consultório em Mirandela. O facto de ter um tio que era feitor dos Távoras, permite que cedo vá poder fixar-se na capital, onde conquista a clientela de mais alto estatuto social e ingressa na Academia das Ciências. Em 1706, ascende a médico privativo do novo rei D. João V, ganhando reputação, ainda que nem sempre livre de invejas, caso das rivalidades que manteve com outro famoso médico, o Dr. João Curvo Semedo. O tratado que dedicou às qualidades das águas, e que terá começado pela descrição das propriedades da Fonte de Golfeiras, na sua bem familiar aldeia junto à vila de Mirandela, conquista os públicos e será uma espécie de best-seller da época; nos séculos seguintes, é obra de referência, presente nas melhores bibliotecas e disputada pelos mercados.

O resumo diz assim: «Na biblioteca de um velho capitão solitário figura um livro raro escrito por um médico de D. João V. Que segredos encerrará esse Aquilegio Medicinal sobre as fontes e águas de Portugal? E que águas e fontes serão verdadeiramente aquelas a que se refere o seu autor? É o que nos propõe descobrir nesta aliciante viagem no tempo até ao Portugal do século XVIII».

Eu li este livro, O Segredo da Fonte Queimada (que é a segunda incursão do autor na área do romance, depois do interessante Um Tiro na Bruma) com um crescendo de prazer. Um muito grande prazer. E até devo confessar que tenho uma postura de reserva militante perante a «novelística de História», género em expansão de mercado nos dias de hoje e que permite muitas vezes (a maioria das vezes!) uma deriva contra-factual sem sentido, aliada a um elementar desconhecimento histórico, ou a extrapolações demagógicas. Só excepcionalmente surge, por exemplo, um livro integrado nesse «género» com a qualidade do Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez (1962, recém-editado entre nós pela Sextante), onde de tal modo se recria o ambiente da Itália do século XVI que a obra mereceu ao exigente Jorge Luís Borges um rasgado elogio. Trata-se de tomar a História como o suporte artístico de uma literatura original, envolvente, criativa. Ora são estas valências que observo no romance de Manuel Cardoso: as «três histórias cruzadas» seguem o discurso cotejado de uma meta-narração em que Vicente, o herdeiro, o capitão Eduardo, tio daquele, e o médico-escritor da corte de D. João V, se irmanam para criar uma intriga veraz, poderosa e que, ademais, nos ilumina poderosamente sobre a Lisboa do século XVIII, essa Lisboa a dois andamentos que tão bem nos descreve: luxuosa e miserável ao mesmo tempo, pólo científico e de crendice supersticiosa ao mesmo tempo, urbe de palácios europeizados e de conventos de hábitos medievais ao mesmo tempo, centro de arte barroco-romana e de gostos anacrónicos ao mesmo tempo, capital de Império e urbe tradicionalista ao mesmo tempo, tempo de novos humanismos e de feroz esclavagismo e intolerância ao mesmo tempo… Ainda não há muito me deliciara ao ler o relato desta mesma Lisboa de antes do terramoto descrita com o rigor e a sensibilidade que permitem a extrapolação, na obra de José-Augusto França Lisboa – História Física e Moral (Livros Horizonte). A descrição que o Prof. França faz da Lisboa joanina, por exemplo no espaço de encosta entre a zona do Torel e a Calçada de Santana, incluindo a importantíssima igreja da Pena, igreja que era padroeira dos homens de artes e letras e ainda hoje nos oferece a beleza da sua talha dourada, da autoria de Claude de Laprade, e das pinturas de Jerónimo da Silva e André Gonçalves, faz jus ao ambiente criado no livro O Segredo da Fonte Queimada.

Creio que este livro de Manuel Cardoso se insere nesta mesma linha de reflexão criativa que legitima a contra-factualidade e o «probabilismo de evocação histórica»: basta ver-se a descrição muito credível da figura de D. Ana de Sá Sarmento, espécie de mecenas do Dr. Fonseca Henriques, entre a aldeia de Sesulfe, o cosmopolitismo de Lisboa e o sossego bucólico das terras quentes de Macedo. Dir-se-ia que as hipóteses que a liberdade criativa legitima ganham contornos de veracidade, lendo-se as páginas de Manuel Cardoso em que essa figura dessa amiga-protectora do Dr. Mirandela é parte envolvida. Tinha esboçado um «power-point» com imagens para acompanhar esta apresentação: o frontispício da primeira edição do Aquilegio, alguns retratos da sociedade quinto-joanina, uma possível efígie do Dr. Fonseca Henriques, imagens da igreja de Nossa Senhora da Pena e das artes na Lisboa barroca, etc, etc. Outros sortilégios impediram que tal complemento imagético pudesse ser apresentado. Outra vez será, quero crer, quando o livro chegar desejavelmente a uma 2ª edição.

Igreja de Nossa Senhora da Pena - Calçada de Santana
Resta dizer uma última palavra menos ‘técnica’ e mais pessoal. O Dr. Manuel Cardoso é um distinto médico veterinário estabelecido em Macedo de Cavaleiros, em cuja periferia reside. É, ademais, um empenhado militante na causa da defesa do Património cultural, fazendo parte da direcção da Associação de Defesa do Património ‘Terrras Quentes’, presidida pelo Dr Carlos Mendes. O facto de eu estar ligado, de há alguns anos a esta parte, ao inventário do Património artístico sacro dessa muito desconhecida região, permitiu-me conhecer bem Manuel Cardoso e apreciar as suas altas qualidades humanas, literárias e científicas. A sua probidade de escritor que se liberta de peias amadorísticas e vai afirmando um talento mais solto e amadurecido, levou-o a todo este trabalho de reconstituição de uma adequada «mentalidade de época» a fim de perscrutar os gostos, anseios, crenças e angústias dos lisboetas do primeiro terço do século de Setecentos; assim, o autor reenfocou essa sociedade, e fê-lo com acerto, a fim de enquadrar a intriga – de que não vou obviamente falar, para não privar os leitores do segredo. Apenas direi que existia, e existe ainda, uma certa fonte algures em terras fragosas de Sintra, entre brumas de mistério, que na edição de 1726 foi omitida por exigência régia…

Mas isso fica para o gosto prazenteiro desta vossa leitura.



Vítor Serrão

Historiador de Arte

Universidade de Lisboa

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Portugal Republicano e Portugal Monárquico: o transe de um povo aflito

Texto resumido de uma comunicação feita no Arquivo Distrital de Bragança em Novembro, no âmbito das comemorações da Implantação da República, nas palestras “ A República no Distrito de Bragança”. O tema da comunicação foi o da razão de ser do romance Um Tiro na Bruma.



Fragmento de granada incendiária
disparada contra Mirandela
no combate de 9 de Fevereiro de 1919,
pelas tropas realistas.

Sempre desconfiei da história quando ela é contada pelos vencedores: esquecem-se os argumentos dos vencidos e demoniza-se o inimigo, continuando-se a fazer cair sobre ele todas as famas de todos os males, mesmo depois de derrotado. Há disto imensos exemplos, de que nem vale a pena estarmos agora a citar casos ilustrativos porque de todos são conhecidos, quer se refiram a conflitos recentes quer a conflitos antigos.



Nesse tipo de história, são sempre heróicos os gestos dos vencedores e desprezíveis os actos dos vencidos quando, na realidade, pode ter havido heroicidade de ambos os lados tal como pode ter havido – houve, certamente – actos reprováveis de ambos, também.


Normalmente “quem se trama” sempre é o povo, entendido “o povo” como toda a massa que é arrastada pelos acontecimentos e não como classe social. Apesar de sempre muito elogiado e usado como motivo, como argumento ou como cortina de fumo, o povo não só “paga as favas”, para usar uma expressão eloquente por si, como se vê obrigado a engolir em seco os silêncios politicamente correctos e a acenar de assentimento – quando não a ter de cantar a vitória – às palavras e actos dos novos vencedores, também numa lógica do politicamente correcto, entenda-se, do jogo pela sobrevivência do mesmo povo...



Acontece isto também com as famílias e com a sua crónica, depois de terem passado por períodos de prevalência de uma perspectiva a partir de um dos seus ramos ou após algum sobressalto fracturante que as tenha desestruturado ou colocado em dificuldades. Nas famílias também se enaltecem ou se depreciam caracteres e percursos, ao sabor do critério dos que contam essas crónicas. Também há os santos e os pecadores. E os demónios. Na vida das famílias, tal como na história, aparece, à mão ou na boca de quem conta, um bode expiatório para fazer o papel. Quero dizer, não aparece, é lá colocado, tal como fazem os vencedores na política e nas tragédias de um povo. Se, para estes, esse papel é fácil para dele serem investidos os vencidos, para os dramas familiares mais ligeiros está sempre uma sogra à vista, para os mais pesados há sempre um ex-cônjuge que terá traído os votos do compromisso matrimonial, ou da sua união sentimental, e que terá dissipado o seu capital de bens e de bom nome. As famílias e a história estão cheias de exemplos destes, de anjos exemplares e de filhos pródigos de quem se conta a parte rebelde mas de quem se esquece, propositadamente, já se vê, de contar antecedentes, condicionantes ou de revelar o verdadeiro final. No exemplo do Evangelho, porque se trata de uma parábola contada por um autor que dispensa adjectivos, o drama é-nos contado completo e substantivo mas na nossa vida já não é o caso…



…tal como não o foi para mim quando comecei a perceber como era a história de vida do meu Avô Amadeu. Que morreu mais de uma década antes de eu nascer. Médico, arrivista (era de Alijó e veio viver e a casar em Macedo), republicano, muito culto, muito senhor das suas opiniões, muito mulherengo, mesmo muito mulherengo e gastador do pecúlio familiar. O contraponto da minha Avó, senhora de Macedo, monárquica, também culta, também senhora das suas opiniões, fiel ao seu marido e filhos, muito fiel ao seu marido e filhos apesar dos que a cortejaram mesmo depois de casada e que exploravam o tentar adoçar, junto da Micas, tal era o seu petit-nom, o lado amargo de se saber traída. Aos quais nunca cedeu. Tinha sido educada na convicção de que os prazeres proibidos não são maneira nem de curar o orgulho ferido nem, muito menos, de conservar a autoridade inatacável da posição em que o marido a colocara. Várias vezes o Avô Amadeu precipitou as finanças familiares em situações difíceis, várias vezes a Micas teve de acorrer, com jóias ou com legítimas de herança, para saldar contas e calar usurários. O Avô acabou por morrer, em meados dos anos quarenta, e a avó sobreviveu-lhe uma década e meia. Durante esses anos, passados no pós-guerra e na década de cinquenta, a Avó continuou a ser um esteio da família da maneira como são as Avós: espalhando sorrisos e contando histórias aos netos, estando sempre atenta para ser seus cúmplice nos pequenos caprichos que deixam saudades. E continuou a fazer o que sempre tinha feito ao longo da vida: a ajudar os pobres, a valer com uma palavra ou com um gesto a todos os que lhe chegavam ou de quem lhe chegavam vozes aflitas. E a ajudar, depois de o meu Avô morrer, para cúmulo, algumas daquelas que se encontravam desamparadas e o tinham tido nos braços, em vida…

Claro que, com um tão grande período de sobrevivência da minha Avó sobre o meu Avô, a história dele chegou até mim com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Neste caso, sobreviventes. Ainda por cima, pessoas que tinham tido convívio com a minha Avó e às quais, inconscientemente ou conscientemente, tinha “comprado” uma versão dos acontecimentos com o seu desvelo.

Em casa não se falava, praticamente, do Avô, a não ser para se exclamar “não te ponhas como o Avô” quando alguém discutia de uma determinada maneira ou adoptava um determinado comportamento. Quando eu perguntava a alguém pelo Avô, em Macedo, a conversa em menos de um minuto estava invariavelmente centrada na minha Avó: “uma Senhora, muito bonita, tão boa para todos, tão infeliz com o seu Avozinho…”. Sobre o Avô, nada ou quase. E quando eu, caso a caso, comecei a agarrar uma palavra a este, outra àquele, sobre o Avô, comecei então a descobrir que a realidade tinha sido outra. Não radicalmente diferente mas outra, simplesmente. O Avô tinha tido qualidades, afinal. Também defeitos inegáveis, sem dúvida. Mas não era aquele ser de quem nem se poderia falar!

E comecei a perceber que muitos dos que logo me falavam da minha Avó, ao serem interpelados sobre o Avô, tinham sido, directa ou indirectamente, beneficiários da caridade da minha Avó…

Ora, quando comecei a querer contar esta história e a situá-la na sua época, no início do século XX, na transição da Monarquia para a República, comecei a investigar passo a passo todo esse período mas de uma forma autêntica e directa. Ou seja, em vez de me por a ler obras daqueles que sobre esse período escreveram com este ou aquele partis pris ideológico, pus-me a ler os jornais, as revistas, os romances e folhetins que nesse tempo se liam. Pus-me, dessa maneira, a viver na realidade da época. Foi fascinante. Segui o decurso de meses e anos lendo o Diário de Notícias e muitos outros jornais que se publicavam, folheando e vendo as fotografias da Ilustração Portuguesa e doutras revistas e almanaques, seguindo o dia-a-dia dos acontecimentos. Mas como, ao mesmo tempo, eu lia também os livros de autor escritos sobre essa época, comecei a notar uma diferença enorme entre o que era a percepção do que acontecia no dia-a-dia, que eu fazia para mim ao ler os jornais e outros documentos, e aquilo que sobre isso era contado pelos tais autores de livros sobre essa época. Comecei-me a dar conta que havia um distorcer da verdade, entendendo como verdade o desenrolar dos acontecimentos e a sua cronologia, critérios necessários para que a história possa ser objectiva. E então percebi o que estava a acontecer: a história que nós conhecemos sobre a Implantação da República, a que nos é contada desde a escola primária, não é mais do que a história contada pelos vencedores, com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Ainda por cima com uma agravante: é-nos contada para camuflar não só uma realidade diferente mas, muitas vezes, uma realidade inexistente! É incrível! O que se passou na realidade é de tal modo diferente do que tantos hoje afirmam que, para quem souber e conhecer verdadeiramente esse período, toda a nossa história subsequente sobre o século XX ganha uma nova leitura.

Fiz uma descoberta, em certo sentido, infeliz e que me tem trazido triste nesse assunto: a de que havia e há uma conspiração, de muita gente que escreve e que dá opiniões, que ainda hoje persiste, uma conspiração que não é apenas contra a monarquia ou a favor da república mas que é muito pior: é contra a verdade.

Descobri, assim, que havia um paralelismo entre o que se dizia ou não dizia sobre o Avô Amadeu, em nossa casa, e o que se diz ou não diz por todo o lado sobre o que foi o fim da nossa Monarquia e a vigência da nossa Primeira República. E decidi-me a escrever sobre isso. Escrever um ensaio, argumentar, envolver-me em discussões que não levam a lado nenhum na maioria das vezes? Não. Preferi tentar escrever um romance sobre esse período. Um romance baseado na realidade. Foi assim que nasceu Um Tiro na Bruma.

Que isto não sirva apenas para se dizer que “afinal nem o fim da monarquia foi assim tão mau nem a república assim tão boa”. Não. É muito mais do que isso. Porque há, no fim de contas, vencedores e vencidos. Nestes últimos está sempre o povo, entendido na acepção referida acima, e esteve, quase sempre, a verdade. O que me deixa com uma esperança: a de que, apesar de tudo e contra tudo, ela venha a prevalecer e, com ela, nós venhamos a poder, um dia, sair triunfantes das dificuldades do nosso dia-a-dia.

O verdadeiro sacrificado, na transição da Monarquia para a República, foi o povo. O povo viu-se mesmo aflito, depois do 5 de Outubro. Com fome, doente, obrigado a combater, a morrer, a vestir-se de luto, impedido de rezar por decreto. Ainda por cima com uma conjuntura de pavor: caíam as monarquias e os impérios, assistia-se a uma destruição sem precedentes, com máquinas e venenos sem precedentes, a batalhas e desastres antes inauditos, a epidemias de escala total que não poupavam ninguém. As greves, os tiroteios nas ruas, os saques e assaltos das lojas e casas, os meses de trabalho sem soldo, os atentados e assassinatos constantes faziam da intranquilidade e do medo uma vivência permanente. O povo pensou que o mundo ia acabar – e imediatamente. Foi uma época vivida em transe e com uma grande aflição. Uma época difícil, extremamente difícil.

Mas são precisamente essas épocas difíceis que nos devem merecer olhá-las e invocá-las com todo o respeito. Respeito pelos que a viveram e lhe souberam sobreviver. Respeito pela sua verdade. Em nome deste respeito nos propusemos deixar o nosso testemunho.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!