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sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!