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domingo, 25 de novembro de 2007

O Kaladrium

© Manuel Cardoso


Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.