Mostrar mensagens com a etiqueta veneno. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta veneno. Mostrar todas as mensagens

domingo, 25 de novembro de 2007

O frasco azul

© Manuel Cardoso


Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?

A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!


No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?

O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.

A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.



Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!