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terça-feira, 30 de outubro de 2007

O VINHO DAS ARCAS

© Manuel Cardoso

Nas noites de inverno nas aldeias da Terra Fria de Trás-os-Montes, desde tempos imemoriais que se afugenta o gelo com um copo de um vinho excelente que acalenta a mais necessitada das almas. É um vinho que surpreende. Um forasteiro desprevenido, dado o primeiro golo e sentido o sabor forte e aromático, imediatamente é assaltado por uma dúvida evidente: se nestas aldeias altas e frias as vinhas não passam de pequeníssimas manchas nalguma encosta mais soalheira e mal dão uns cachos de uva miúda e agridoce na maioria dos anos, como é possível um vinho destes, graduado, rescendente? “Comprado!”. Mas o dono da casa exprime, orgulhoso:
- Esse foi pisado na nossa casa!
- Ah, tem vinhas...
- Não, não. Compramos as uvas.
Ainda hoje, nas aldeias da Serra de Nogueira se mantém este costume de comprar as uvas lá em baixo, em zonas da Terra Quente, e trazê-las para cima para fazer o vinho.

Ora, conta uma lenda antiga que, certa vez, levado um pipo com as primícias desse ano para Braga, ao Arcebispo, então senhor destas terras do leste do seu território, este terá perguntado:
- De onde são as uvas que tão bom vinho dão?
- De Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!

Esta história é curiosa não só por enaltecer as qualidades das uvas de que falamos mas porque delimita uma área geográfica que corresponde ao que foi o extinto e velhíssimo concelho de Nozelos e que hoje está repartido pelas três freguesias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão. Os terrenos destas três evoluem em encostas abruptas sobre o rio de Macedo e a ribeira de Ferreira, sendo que ambos confluem no vale de Nozelos e que constituem um microclima onde amadurecem as uvas que tão bom vinho dão.

São antiquíssimas as referências ao néctar deste lugar. Já o foral de Agrochão, dado por D.Dinis em 5 de Julho de 1288, manda cobrar como imposto a quarta parte do vinho, medido pela medida de Nozelos. Mais tarde, D.João II, doa a João Teixeira de Macedo, alcaide mor de Montalegre, a 30 de Maio de 1484, as rendas de pão, vinho e aves da terra de Macedo e Nozelos com as aldeias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão.

Ora, no centro da área deste antigo concelho de Nozelos há um planalto breve que tem a extensão necessária para nele se esticar uma aldeia ao sol, a meio da qual se ergue, orgulhoso, o Solar das Arcas, dos Pessanhas. Orgulhoso de quê? Se mais não tivesse de quê, bastar-lhe-ia o vinho, o tal bom vinho que as uvas dão!

O microclima das Arcas fica entre duas regiões vinícolas célebres: o Douro e Vinhais. Se da primeira é supérfluo qualquer comentário, da segunda há que dizer algo. O nome já diz ser terra de vinhedos, vinhal, vinhais. Tradicionalmente, desde o Império Romano segundo alguns autores, foi essa a sua riqueza e, durante séculos, forneceu a zona interior e meridional da Galiza de vinho acabado e mandava aguardente para o Douro e para o Porto. Um geógrafo espanhol, Mendez da Silva, escrevia no tempo da União Ibérica: “es un valle de muchas viñas, donde se origina el nombre”. Um outro doutor coevo, Francisco de Monçon, que, sendo madrileno, viveu na corte de Portugal durante o século XVI, dizia que os portugueses se podiam gabar de ter vinhos que competiam com Alemães e Flamengos e cuja qualidade os suplantava mesmo, nomeadamente os de “Vinhais e outros”.

As crises do oídio e da filoxera arruinaram as vinhas desta região e, ao contrário das do Douro, nunca mais se recompuseram totalmente e perderam as posições de mercado. Estes vinhedos eram paredes-meias com os das Arcas e hoje, debruçados sobre o mapa, não sabemos bem se estas eram uma continuação daqueles e uma sua sobrevivência ou um prenúncio do Douro a cuja sorte viriam a estar ligados.

O solar das Arcas teve uma garrafeira fabulosa. Foi constituída e apurada ao longo do século XIX por Manuel de Almeida Pessanha, grande lavrador, viajado em França e introdutor de inovações, Governador Civil de Bragança e Par do Reino, e mais tarde continuada pelo seu genro, Francisco de Assis Pereira do Lago, Visconde das Arcas. Sucessivas partilhas e outros descaminhos foram-na minguando à formiga. Restam hoje algumas raras garrafas, das anteriores às crises do oídio e da filoxera que dizimaram as antigas cepas. O autor destas linhas pode orgulhar-se de, numa tarde, há uma trintena de anos, no jardim solarengo dos Cortiços, ter provado, apreciado e ouvido uma explicação com devoção sentida, de um vinho seco, decantado e arejado de uma garrafa fosca, colada com um rótulo de uma cercadura azul e manchado, muito manchado e bolorento mas onde se distinguia perfeitamente numa caligrafia castanha escrita à pena: ARCAS 1832 !

A crise do oídio que começou em meados do século XIX deu uma machadada grave nos vetustos vinhedos nacionais mas não fez esmorecer a energia empreendedora da casa das Arcas que leva a fama dos seus produtos até Lisboa a tal ponto que Garcia de Lima, na sessão da Câmara de Deputados de 8 de Junho de 1863, afirma que os vinhos brancos das Arcas são tão bons como os do Douro. Nas Cortes bebia-se vinho das Arcas. Na década seguinte esta fama é justamente reconhecida além fronteiras e, mesmo para lá do Atlântico, os vinhos são premiados nos Estados Unidos da América no concurso internacional de Filadélfia em 1876.

A filoxera devastou todo o país a partir da década de oitenta mas foi num ápice que o Visconde, perspicaz a prever a situação e conhecedor dos métodos modernos de cultivo, fez reconverter as vinhas, possibilitando mesmo que, durante anos, todo o termo das Arcas estivesse integrado na região produtora de mostos de vinho do Porto. Replantou e soube manter os adagues ao abrigo das pragas. Não houve mortórios desolados no termo das Arcas!

E hoje, ao percorrer-se este canto de Trás-os-Montes em que a paisagem apresenta extensões de abandono recente, de incêndios revoltantes ou de matos silvestres onde crescem a preguiça e a crise económica, deparamos com um pequeno microclima de vistas insólitas, matas ordenadas ao pé de vinhedos lavrados, encostas abruptas trabalhadas com teimosia, gentes cavando um chão avaro mas que lhes dá, não o sustento porque agora já se não vive disso, mas um orgulho especial, orgulho que ali foi plantado imemorialmente, apurado pelos Pessanhas e que se materializa no tal vinho surpreendente, de aroma forte e agradável e que inevitavelmente coloca na boca de quem o beba:

- De onde são as uvas que tão bons vinhos dão?
- Das Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!


Bibliografia:
1.Alves, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança.
2.Pires, Armando Valfredo, O Concelho de Macedo de Cavaleiros.
3.Oliveira, Artur Águedo de, O surpreendente testemunho do Doctor Francisco de Monçon 1544
4.Costa, António Luís Pinto da, A questão do Alto Douro e a exportação de Vinhos do Porto (1865-1909) in Brigantia vol.X nº3
5.Ilustração Portuguesa
6.Gazeta das Aldeias