sexta-feira, 22 de agosto de 2008

FRAGA DOS CORVOS

Fraga dos Corvos, Verão de 2008



Depois de percorrido o caminho de Montemé sempre a subir desde o Vilar do Monte, chega-se entre os castanheiros e para-se. Um silêncio de mundo antigo envolve-nos no verde religioso da serra. Naquela encosta da Serra de Bornes, voltada a Norte, há um conforto especial de quem se sente em casa, mesmo não sendo dali. O sol está forte mas é manso entre as folhas. E, ao voltarmos a nossa vista para o esplêndido vale onde fica Macedo de Cavaleiros, com as outras serras, a de Ala, da Nogueira e do Cubo a emoldurá-lo e a servir de horizonte próximo – que ao longe estão o Marão e o Alvão, o Gerês e o Castro Laboreiro, a Galiza, os Montes de León e La Culebra – começa a ouvir-se um murmúrio ao pé, de entre as ramagens, um scratch, scratch, scratch que é inconfundível. Aproximamo-nos, calcando ervas rasteiras e afastando um ramo de castanheiro bravo. Uma plataforma de rochas em aconchego na vertente, uma turma da Faculdade de Letras de Lisboa de olhos no chão, esgaravata a colher e destapa suavemente com brocha de cerda, não a ver o que está ali mas a saber o que ali estava há três milénios antes de agora, a mexer no que ali era há mais de três mil anos antes de agora. É um momento raro. Estar em comunhão com dez pessoas e todos embarcarmos numa viagem no tempo até à Primeira Idade do Bronze. Nada como nos livros, imaginada. Toda real, ali. Um dia destes descreverei como é. Obrigado ao Bruno, à Joana, à Raquel, à Débora, à Elsa, ao Francisco, à Helena, à Liliana, ao João e ao grande amigo João Senna-Martinez!






Para verem mais fotos podem pesquisar os álbuns do blogue ou irem para http://picasaweb.google.com/mcardoso.mmacedo/Arqueologia2008 Até já!



quarta-feira, 6 de agosto de 2008

summertime !

Quanto a estas quatro telas, ainda estou à procura de local adequado para as expor. Talvez ainda em Agosto ou em Setembro. Preciso de tempo para terminar definitivamente um trabalho que me tem ocupado desde há uns meses e para iniciar dois temas que já têm uma deadline. Opiniões e críticas, precisam-se!



terça-feira, 5 de agosto de 2008

Expor em Bragança



O concerto www.youtube.com/watch?v=aOocxj4bEO4 em Lá Maior para cravo, de Carlos Seixas, é uma das mais notáveis peças de música clássica portuguesa, é quase redundante dizê-lo. E as sonatas para cravo são qualquer coisa de apetecível, até para dançar. Parecem ter gás, como o champagne. Carlos Seixas (1704-1742), aliás José António Carlos Seixas, foi um dos mais talentosos compositores e executantes portugueses e que viveu no período de ouro da nossa história, na primeira metade do século XVIII. A sua música é ainda real e extremamente actual no ritmo, na sonoridade e na inspiração que provoca. Os dois trabalhos a óleo presentes nesta exposição pretendem misturar a sua sugestão com o Verão. Alguém tem um cravo? E água?

Fui colocar os quadros em Bragança, no Hospital, num fim de tarde quente de Verão, depois de um dia cheio de peripécias e de trabalho. Ainda por cima tivemos de ir de vidros abertos, o Manuel, eu e uma amiga e colega dele, porque o ar condicionado da Primera que comprámos aos primos está com uma avaria e aquece por duas das saídas enquanto arrefece por outra! O rádio também não funciona pelo que levei o MP3 ligado e fiz todo o trajecto do IP4 com música (alguém de hé vinte e cinco anos não perceberia patavina deste parágrafo!).

Esta exposição (assim como a visão de qualquer destes quadros, em casa ou em qualquer lugar) é impossível de ser compreendida sem música, excepto quando se está perante os três estudos que restam do The Doctor. Para esses recomendo silêncio. Silêncio mesmo. De certeza que ouviremos vozes dentro de nós. Quanto aos três que sobram da série de música de cantochão, é como se quiser. Posso revelar que os pintei a ouvir Rachmaninov, o concerto número 2 para piano com o segundo andamento em repeat. Enquanto preparei os tons ou resolvi as inevitáveis dificuldades, Fly, de Sarah Brightman, o álbum todo, muitas vezes. E todos os dias, sol nascido, só no sótão de Latães, luz a aumentar e a lembrar-me que a essa hora a Mariana e os filhotes estarão a acordar, em Macedo e em Lisboa, Faith Hill, imensas dela. Não se riam. Mesmo quando já ninguém ouvir Faith Hill, it will be me!

terça-feira, 15 de julho de 2008

primeira exposição individual






A partir de 15 de Julho de 2008 e até ao último dia do mês, uma pequena exposição de telas a óleo estará patente no Hospital de Macedo de Cavaleiros. Para os que não possam ir vê-la in loco, aqui se deixam algumas anotações. São oito trabalhos em duas séries de quatro.



The Doctor, emoções I, II, III, IIII





Sir Henry Tate encomendou a Luke Fildes, em 1887, um quadro de grande realismo e intensidade emocional, grande também nas medidas (166,4 cm * 241,9 cm) e no preço (3000£). A obra ficou terminada em 1891, foi apresentada por Sir Henry Tate em 1894 e, desde então, tem sido reproduzida milhões de vezes em litografias, gravuras, selos, postais, posters, etc.
Apesar de omnipresente e vulgarizada nos estabelecimentos médicos um pouco por toda a Europa e por todo o Mundo, nem por isso perdeu a sua força. É que cada pincelada estava embebida, mais do que em óleo e pigmentos, na saudade de um filho do pintor, morto de doença uma década antes. Na tela está também, com um vigor impressionante, um preocupado reconhecimento à devoção médica do Doutor Gustav Murray, que o assistiu até à morte.
Os quatro estudos agora presentes e inspirados nesta obra de Luke Fildes, The Doctor ©Tate Gallery, não são mais do que uma expressão de emoções e propostas de perguntas. Sendo a cena original o resultado de um memory sketch de 1877, presenciado e vivido pelo pintor, qual o papel do médico nesse momento e, depois, na tela? A curar a doença, aliviar a dor, a confortar o doente e os pais? Que mais? E será que hoje…


Depois de concluir o quadro e de receber o pagamento, Luke Fildes terá comentado que teria ganho mais se entretanto tivesse estado a pintar retratos de gente rica. Ainda bem que não esteve.




Neuma est Veritas



Esta série de quadros, genericamente intitulada Neuma est Veritas (se bem que já não sejam neumas primitivos a neles figurarem mas sim a notação perene da escrita de cantochão), é um conjunto de instrumentos como se as próprias telas emitissem sons. E não emitem? Não os ouvimos mesmo tapando os ouvidos? Atravessar o tempo e o espaço. Deixar de ter os pés no chão. Perceber a verdade. Ultrapassar a mortalidade. Música!




quarta-feira, 25 de junho de 2008

coincidências...




Bem, no mínimo terei que fazer uma proposta: ler Alma e os Mistérios da Vida, o novo livro da Luísa Castel-Branco, se ela tiver lido ou prometer ler o meu, Um Tiro Na Bruma!

Claro que só posso acrescentar que ambas as capas estão muito giras! Adequadas!

quinta-feira, 29 de maio de 2008

EMÍLIA

Em 11 de Dezembro de 1917 nasceu em Coimbra, primeira filha de um militar de carreira cujo casamento seria em rotura com toda a família dele e que o isolou. Nasceu quase escondida, na Messe de Oficiais do Convento de Santa Clara. Os isolou: a si e a todos os filhos que vieram a ser os irmãos da Emília. Estudou nessa cidade e em Lisboa, onde frequentou o liceu e teve uma formação republicana, do tipo bandeirinha na mão aquando da inauguração da estátua do Marquês, tendo sido companheira e amiga das filhas do Afonso Costa. Indo à Versailles e ao Jardim da Estrela, passeando na Baixa. Educação laica que lhe dizia que os seres vivos, como as pessoas, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Imortalidade, só a da escala humana, a dos nomes nas lombadas dos livros, nas letras das canções e nas placas das ruas. Os anos trinta foram o seu turning-point: essas amigas de infância e juventude abandonaram Portugal, morreu a sua mãe, teve de sair de casa (onde tomava conta dos irmãos) para ir para o Sanatório da Guarda com a sua irmã Aida, ambas em tratamento de tuberculose, onde se apaixona por um homem onze anos mais velho e clinicamente considerado um caso sem retorno. Respirou liberdade de obrigações e medos, brevemente, mas com a sensação de que o mundo ia acabar ali e agora, que tudo valia e que seria o fim de dificuldades e pontos negros - é talvez o melhor resumo desta sua fase, com o pano de fundo da guerra, das restrições impostas, do cenário sombrio na casa paterna, da desesperança instalada. Que é também o momento em que, com surpresa e graças a um tratamento inovador vindo de Itália, se cura o homem que ama, com quem casa, e que lhe sorri, por breves momentos, o bem-estar material. Religião? Até ali nem por isso, só com lógica, muitos argumentos ouvidos, estudados e vezes sem conta desmontados, teimosia de repelir e não aceitar o diferente, o incompreendido por natureza. Primeiro vieram os ritos e a necessidade aflita, contra a parede que aparece à frente, sempre a dúvida de que seja só a parede e nada mais para além dela. Depois vieram aquelas coincidências e partidas da vida aqui e ali, a paz de Fátima, sinais a que prestou atenção e que submeteu à mesma lógica aprendida no liceu, com o pai, com as amigas. A fé só veio depois, uma fé violenta, algo intolerante, de obrigações sentidas, sacrifícios desejados e de imposição aos outros – recuperar tempo perdido? A partir de então, aceitou o seu futuro como uma aventura, viveu-o como numa ficção, um passeio em que se misturou o pão de cada dia com a desilusão do inatingível, o quase desespero de ver uma dificuldade que um demónio lhe fazia surgir de cada vez que um anjo lhe retirava da frente uma outra dificuldade resolvida, sempre com espaço para o misticismo, cada vez com mais espaço para o misticismo. Teve os filhos com as alegrias e as tristezas que os filhos dão mas como se, estranha coisa!, os mesmos filhos o fossem mais do pai do que seus. Conforme os anos foram passando, a vida foi-a privando de tudo o que, só na aparência, lhe fora dado então. Até a privou da realização dos seus sonhos. Foi deixando ficar pedaços dos sentimentos vividos, como testemunho ou como militância, em versos e contos escritos, alguns verdadeiros sobressaltos amargos ou em fases mais serenas, quase todos publicados, escritora quase ignorada mas nem por isso menor. Muitos foram escritos como se de orações se tratasse, olhos nas frases, coração em Deus. Todos os dias a persistência de procurar na Fé o conforto e esperança dos problemas e dificuldades. Anos seguidos. Começou a morrer com a morte súbita do seu companheiro de quatro décadas, trinta e um anos antes de si. Desde esse dia, nos anos setenta, que a vi estender as mãos a agarrar-se à velha parede mas a deixar-se escorregar para o fundo, a querer não ser uma sobrevivência anacrónica. Nunca mais deixou de se colocar à beira do precipício – não a querer saltar mas a querer que o precipício a puxasse, qual abissus abissum, a levasse para onde um dia tivera a certeza de que tudo era um nada e agora tinha a certeza de que afinal era tudo. Mesmo tudo, que nada valia o resto. Demorou, como se a essa demora fosse obrigada como expiação ou um preço a pagar para se chegar lá. Mas porque não vem a morte e me leva, porque estou aqui onde o meu interesse não mora? Porque não era só da morte de que estava à espera mas dessa outra vida, a que rezara, a que pedira, aquela em nome da qual suportara esta vida – vida? : o amargo fardo da vida, que não há coisa mais amarga do que suportar anos sem fim a desilusão e a tristeza! Morreu no dia 17. Foi a última dos irmãos a morrer. Está, neste momento, finalmente, do lado de lá da parede, na imortalidade que a Fé lhe deu. E que ela viu. Foi por isso que, apesar do sofrimento dos seus últimos tempos, fez um sorriso ao fechar os olhos. Um sorriso que já não era para nós mas o primeiro de quem quer que chega a qualquer lado. Adeus Emília, adeus Mãe! Até que Deus nos queira juntar outra vez!

Texto escrito dias após o dia em que a minha Mãe morreu, 17 de Maio de 2008. 

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

há mundo lá fora

Há mundo lá fora
(um conto de Natal para quem não gosta do Natal)

©Manuel Cardoso

A Maria João alinhou melhor um dos talheres de sobremesa, passou a ponta do algodão a limpar uma dedada que tinha ficado no Christofle. Suspirou. Olhou lá para fora pela janela, a cúpula da Basílica a brilhar ao sol frio desta manhã de Novembro, por outra o vermelho e amarelo das árvores do jardim da Estrela, o trânsito menos intenso de um sábado. Os filhos tinham saído e deviam estar a regressar para o almoço, o António também, tinha ido só comprar o Expresso, e depois seria a vez dos convidados, uns amigos e colegas da empresa. Era o último sábado com compromissos atrasados, depois viria a lufa-lufa do Natal, começara mesmo a fazer uma lista de que desistira com um sentimento de “hoje ainda não, terei tempo, não vale a pena já”. Acumulava-se à sua frente um montão de tempo. De tempo aflito de pressas e vazio de vontade. Seria preciso algo mais para o desalento? Na semana passada, na missa, encerrara-se o ano litúrgico, dissera o prior, estava-se na semana de início de um novo. Para si, de início de tudo outra vez, do fastio de existir, vontade de fugir sem querer ser covarde, mas presa a tanta coisa de que queria desistir. Esta coisa dos miúdos – quais miúdos? Na idade deles já estava casada! – não lhe saírem de casa nem assumirem um compromisso para a vida, a sua sensação de solidão permanente já desabafada com o António “Isso é da meia-idade, vais ver que logo passa!”, o ter de estar pronta para tudo e sempre, para toda a família, para os primos, para as tias, para os… farta, farta, farta! E não sentir vontade de nada, nem prazer em nada. Sobretudo isto, perder a alegria de ter prazer. Seja em quê. Fosse no que fosse. Aquela sensação de leveza ao dar um presente que alegrasse alguém, a euforia suave que lhe ficava depois de uma noite de amor, a excitação de dar uma boa notícia a esta a àquela, tudo isso se apagava nos dias solitários – ela achava solitários –, nas manhãs lentas de despertar para uma monotonia que a vinha corroendo, a desfazia para lá das lágrimas que disfarçava com make-up e para lá de todo o cinzento com que via toda a casa, os móveis, as pessoas e a sua alma.
Olhou outra vez pelas janelas.
Devem estar quase a chegar.
“O meu casaco? A minha carteira?”
Abriu a porta, desceu as escadas, saiu para a rua. Pôs-se a andar olhando só para o empedrado. E andou, andou, andou até se cansar, era já meio da tarde quando parou. Braços caídos.
Levantou o queixo, sentia fome e frio. Olhou à volta, entrou na primeira pastelaria que viu cheia de pressa.
A Maria João saiu da casa de banho com a resignação decidida de que iria enfrentar qualquer adversidade. A começar pelo cheiro da lixívia forte que se exalava naquele aposento escuro. Não que fosse um mundo novo mas que era uma situação de muitas com as quais queria aprender a lidar. O papel era asperíssimo, tinha tido que usar uma folha para conseguir segurar com menos nojo na pega de acccionar o autoclismo. A torneira da água (só havia de água fria) estava longe de reluzir limpeza num cromado que já há muito deixava ver o metal amarelo com verdetes. Não usara a toalha, nem lhe tocara, havia ao lado um dispensador de toalhetes de papel mas estava vazio. Sacudira as mãos, agitava-as ainda quando se sentou a uma mesa de canto. Notou perfeitamente que as quatro ou cinco pessoas que estavam ali, dois homens de idade que jogavam ao dominó e três mulheres que momentaneamente desviaram a cabeça da televisão, convergiam os olhares na sua direcção. Um homem que estava ao balcão dirigiu-se-lhe “ora boa tarde, se faz favor” e ela pediu um galão e uma torrada.
Lá fora passavam carros numa rua de empedrado irregular e começava o escurecer de fim de tarde. Pessoas cruzavam-se no passeio estreito diante da porta, todas encasacadas, todas desconhecidas. Do lado direito da porta havia uma máquina de cigarros com uma cena colorida de um amolador a arranjar o salto alto de uma bota de uma rapariga que esperava. “Também está sozinha, aquela ali da bota, apesar de vamp”, pensou. Levantou-se e foi buscar um maço. Voltou a sentar-se, abriu-o e acendeu um cigarro. Nesse momento o homem pousou-lhe o galão na mesa “a torrada vem já!”. Ela agarrou no copo com as duas mãos, aquecendo os dedos e a palma no calor do copo. Pôs-lhe o açúcar. Mexeu. O homem pousou a torrada mas ela preferiu acabar o cigarro, primeiro. Deu uns golos no galão. Estava agradável, muito agradável. Sentiu-se melhor. Mudou de posição na cadeira metálica, esticou a perna esquerda, cruzou a direita por cima, respirou fundo e apoiou o queixo na mão, cotovelo na mesa. Deu uma última passa. Apagou o morrão num cinzeiro de alumínio amolgado.
A parede ao lado era toda ela um espelho, um espelho acastanhado que fazia a pequena pastelaria parecer muito maior. Aqui e ali havia autocolantes, uns inteiros e outros rasgados, já antigos. Viu-se no espelho. Estava com ar cansado, lá isso estava, talvez com ar de frio, de certeza com ar de frio. Mas tinha uma expressão de desafio. Desafio de si própria. Um olhar exultante – como podia ter aquele olhar exultante?!
O homem pousava agora o estojo dos guardanapos de papel.
- Como se chama, esta pastelaria?
- A Flor das Natas.
- E esta rua? Que bairro é este?
- A senhora está perdida?
- Perdida, eu?! – sorriu, sorriu por dentro e por fora, diante daquela ideia de estar perdida.
- Não, que ideia! Tenho andado a passear, só isso.
O homem disse-lhe o nome da rua e o do bairro. Ela não fazia a menor ideia de onde era nem uma coisa nem outra. “Ora”, pensou, “também na vida não fazemos a menor ideia dos momentos que nos esperam”. Comeu a torrada, acabou o galão, ao pagar viu que tinha quase cem euros na carteira. Deu as boas tardes, saiu com um obrigado.
Tinha andado meia dúzia de metros quando reparou numa montra num papel “precisa-se de empregada”. Parou e leu outra vez. Espreitou para dentro pelo vidro embaciado.
Hesitou um instante. Voltou atrás, entrou de novo na Flor das Natas – estranho, parecer-lhe familiar tão imediatamente aquela luz, aquele espelho, aquelas pessoas – e pediu um café ao balcão. Voltou a fumar outro cigarro. Depois saiu, desviou-se de algumas pessoas que circulavam na mesma nesga de passeio, andou a meia dúzia de metros até à porta de vidro embaciado, empurrou-a e entrou.
Estava quente, abafado, ruidoso, cheio de luz e de vozes, todas elas se voltaram para si e mediram-na de alto a baixo. Uma aproximou-se e perguntou “tem marcação?”. Com uma curiosidade e um atrevimento que lhe saiu com um prazer inédito, respondeu-lhe:
- Não, não tenho. Também não vim cá para isso. É que vi ali o papel a pedirem uma empregada e estou aqui eu, pensei…
A outra olhava para ela sem desfitar o olhar, incrédula, mais ainda, embasbacada.
- Dona Dina! – chamou na direcção de uma mulher ainda nova que estava de secador na mão apontado a uma das clientes – Está aqui esta… senhora, a perguntar… é melhor a dona Dina vir aqui…
- Sim, faz favor? – aproximou-se a dona Dina, direita, despachada, bata com uma pinça de dentes largos presa no bolso, aproveitando para puxar para trás uma madeixa ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Eu venho aqui por causa do pedido ali na montra de uma empregada…
- Como?!
- Sim, é que ia a passar e li o papel…
Ouviam-se os secadores, o som de uma televisão ao fundo, todas elas estavam mudas e a observar a cena.
- Bem, se é por isso… - a dona Dina não se conteve de a examinar outra vez da cabeça aos pés, não lhe escapava aquele casaco, toda a toillette, os sapatos que valiam um ordenado, a carteira que valia dois – Mas, desculpe, acho que deve haver aqui um enga…
- Não há, acredite-me. Queria muito que me deixasse trabalhar aqui. Não discuto o ordenado que me pague e não estou a brincar. Ponha-me a fazer qualquer coisa! A dona Dina fixou-lhe o olhar por momentos, uns olhos onde lia imenso, ela sabia ler aqueles olhares todos nas clientes e este não lhe escapava.
- Alzira! – chamou uma das ajudantes. Traz aí uma bata para esta… nossa colega…
- Maria João.
- …Maria João. Mas, olhe, vai estragar as unhas, de certeza!
- Corto-as!
- Está bem! Está bem! Sabe lavar cabelos? Aposto que sim!
- Sei!
- Então, olhe, pode começar! – voltou-se de costas e dirigiu-se como que a um auditório: Que é que estão a olhar para mim?! Vamos a despachar, que é sábado e não há que estar paradas! – E, em voz mais baixa, para uma cliente da há anos: Está a ver isto? Não é só nas novelas da televisão! Aqui no salão Beleza também acontecem coisas, às vezes! - Pelo espelho, ambas exprimiram a concordância da sua surpresa.
Uma empregada mais nova explicava à Maria João onde estavam as toalhas e como era a sequência dos shampoos e amaciadores. Ainda lhe perguntou:
- Não quer por umas chinelas de feltro em vez de estar com esses sapatos? Daqui a bocado não se aguenta de pé!
- Agora já não me aguento de pé!
Riram-se as duas. Foi o seu primeiro riso de cumplicidade.
Ao fim de uma hora de cabeças lavadas já estava tu-cá-tu-lá com as clientes. Duas, ao sair, meteram-lhe uma moeda de euro no bolso da bata. Tudo tão diferente! Nem era desagradável, aquela sensação dos dedos nos cabelos delas, massajar, passar o shampoo, passar a água, estar sempre com atenção à temperatura, escorrer, envolver com a toalha, satisfação de mais uma tarefa cumprida!
Conversa mole de revistas baratas, apartes de antecipações de saídas nessa noite, observações picantes sobre homens reais ou imaginários. Ria-se imenso com as bocas, outro tanto com as que lhe eram directamente dirigidas:
- Olhe, sabe que mais? Se se viu livre dele, não queira outro! Arranje vários, querida!
- Sim, que ainda está boa prás curvas, filha! Olhe, homens, só se forem às paletes que é para não ter que se ficar com nenhum!
- Pois a mim bastava-me um! – suspirava uma matrona ao fundo, sentada numa poltrona ao lado de uma begónia, unhas mergulhadas na tina da manicure, arfando o peito para cima e para baixo – Nem tinha que fazer nada! Tratava-o ali nas palminhas, garanto!
- Ó dona Márcia, não venha para aqui com esse enguiço! Credo, mulher, para que os queremos? Olhe, bem, se for assim para uma noite…
Maria João ria-se daqueles argumentos delas, fazia a todas um ar de neutralidade e divertimento, espiavam-na e mediam-lhe cada olhar, cada gesto, na esperança de uma denúncia.
Tinha tido que apanhar o cabelo com um elástico atrás, estava só a cair-lhe e a perturbar-lhe os movimentos da cabeça, ficava-lhe colado ao pé dos olhos e não a deixava ver bem o que fazia e o resto da sala. Sentia-se a transpirar. Sabia-lhe bem, estar a transpirar por fazer aquele trabalho!
O salão parecia não esvaziar, entrava ainda mais uma cliente por cada uma que saía. Era sempre cumprimentada:
- Temos cá uma cara nova!... Hm… não é aqui da Ajuda, pois não?...
Um medo fugaz de ser reconhecida assaltava-a mas logo passava, hipótese recôndita que afogava com o chuveiro a fazer escorrer a espuma do amaciador.
Só depois das dez é que saiu a última das clientes. Uma rapariga varria o chão, ela aproveitava para fumar um cigarro, ofereceu outros às colegas. Foi aí que a dona Dina disse:
- Bem, meninas, venham os cafés e vamos à nossa vez!
Uma delas foi buscar um tabuleiro de bicas quentes à Flor das Natas, sentaram-se por momentos e depois, cortinas corridas, desligado o néon cor-de-rosa e azul que intermitentemente piscava Salão Beleza, arranjaram os penteados umas às outras, experimentaram maquilhagens. Uma delas, com uma pinça, deu um jeitinho a uma das sobrancelhas onde tinha um pelo rebelde.
- Sábado à noite é sempre assim! A nossa semana acaba hoje!
Juntaram e dividiram as gorjetas e depois despediram-se.
- Sabe, Maria João, se quiser volte na segunda-feira mas ainda à experiência. Isto anda mal para todo o mundo mas qualquer coisa… veremos se se arranja.
- Também ainda vou pensar mas um muito obrigado, dona Dina, por esta tarde…
- Olhe, e agora, vai para onde? Que eu não tenho nada com isso…
- Ah, não se preocupe, tenho sempre onde ficar!
Saíram, apagaram as luzes. Andou umas dezenas de metros, deixou que as colegas desaparecessem, desceu até à Junqueira, mandou parar um táxi.
- Para a Estrela, se faz favor.

A Maria João respirou duas vezes antes de abrir a porta. Meteu a chave, rodou. Ao mesmo tempo que a luz do hall a atingiu, este encheu-se. O António e os filhos envolveram-na num abraço e olhavam-na com espanto e incredulidade.
- Estávamos preocupados. A tua mãe deve estar a ligar para tudo o que é hospital!
- E ligou para a polícia!
- Até os primos não param de telefonar a saber se já tinhas aparecido! Que aconteceu?
- Onde foi, mãe?
Ela fez um sorriso de que não se lembrava desde o colégio. Fitou-os um a um como se fosse uma primeira vez, sentiu que o seu brilho no olhar podia ir longe de mais para o que queria e disse logo, sem mais delongas, as frases que resumiam o estar ali:
- Estou aqui sã e salva, não estou? Olhem, estou aqui como se fosse o vosso presente de Natal! Eu quero mesmo ser o vosso presente de Natal! Deixam-me ser?
No dia seguinte, à saída da missa, multidão de cumprimentos, beijos cheios de pressupostos e naturalidade aparente. Corria um ventinho que a fez voltar-se por causa do cabelo não lhe ir para a cara. Deu de frente com as árvores do jardim, cheio de sol, folhas a atravessar as grades, a virem para o passeio e a rua. Reconheceu aquele vento e aquela luz. “Apetece-me tomar um café! Vou só ali à bica”. Foi dando alguns passos, o grupo estava ainda nos cumprimentos, foi andando pelo passeio, as vozes foram ficando para trás, o barulho do trânsito, apesar de raro, meteu-se entre si e o da porta da basílica. Olhando para o empedrado, deixou de contar os passos. Foi simplesmente andando, andando, atravessando ruas, descendo as calçadas. Será que iria conseguir que a deixassem ser um presente de Natal?