domingo, 13 de dezembro de 2009

antes de beber - leia o rótulo!


Vê-se que é um vinho de pipa lavada. Se bem que hoje se usem cubas. E sabe-se – porque se prova – que é um vinho antigo, de bioquímicas sem electricidade, feito com a preocupação de ser vinho e não um produto de prateleira. A plain wine. Que digo eu: preocupação? Devo estar doido ou não dormi bem! Feito com um amor, assim é que é, entranhado pelo chão, pelas plantas, pelas cores das videiras, pelo calor que dão as vides quando se queimam na lareira. Que tudo é vinho: o lavrar e sachar, o podar e tratar, o espoldrar, o colher e esmagar, saber aguardar pela alquimia do mosto, pela alquimia da cuba, pela alquimia da cor que se vê contra a luz num copo facetado, até pela alquimia da evolução do sabor. Que só se sabe se é vinho se for bebido!


Lembro-me bem de que em nossa casa a pipa abria-se sob o lema de “in vino…Baco!”, escrito, aliás, desenhado a giz na porta da adega pela Guida e festejada com uma festarola para a qual se tinham cozinhado almendrados e amarantinos que um grupo de amigos do pai consumia animadamente, juntamente com fatias finas de presunto, pão torrado e salpicões de azeite (haveria mais coisas, decerto, mas são estas as que guardo comigo). E o vinho que se bebia, dessa pipa que se abria, a pipa do canto, mais comprida e respeitada, era parecido com este, um vinho de sabor especial como o é sempre o vinho do dono da casa. Una anos era mais tinto, outros era mais claro, “está mesmo um clarete!” diziam estalando a língua. “Palhete”, chamava-se-lhe por Macedo. E ainda se chama, essência de tons difíceis, amadurecida nestas vinhas de altitude e clima caprichoso (será por isso caprichoso, o nosso vinho?). Um vinho antigo. Bom para beber no Verão, “fresquinho vindo da pipa”, que apesar do tom ou da cor, nada impede que não escorra divinamente do frigorífico para apaziguar a canícula (o nosso Avô Amadeu era dado a astros, sabia as constelações todas e, contava o meu Pai, ele empregava esta palavra na sua verdadeira acepção: canícula era o período de conjunção do Sol com a constelação de Cão, um período do Verão quente e abafado). Deste vinho se fazia o melhor vinagre, num pipo pequeno de tampa aberta, em que o líquido nunca se acabava. E com este vinagre se temperava a água dos cântaros mais retardada, para que não fizesse febres, e se regavam as saladas no prato abundantemente, de certeza pelo mesmo motivo. Mas voltando ao vinho que aqui nos traz, é, por isto tudo, um vinho antigo cujo sabor eu já suspeitava. É que também o nosso tinha uvas de vinho e uvas de mesa. No dia da vindima era preocupação colher aparte os cachos sem defeito dos dedos de dama, da uva de rei, das sem grainha e das outras das cepas da ponta (impossível a Mãe deixar que alguém dissesse que eram as quilhões de galo…). Feita a escolha dos que se penduravam nos pregos da despensa para ir comendo e fazer passas, que não tivessem bagos chochos nem suspeitas de bolores, as outras iam directas para o esmagador de volante e cremalheira e misturavam-se na dorna, mexida diariamente com um trado de madeira, vigiada diariamente com um pesa-mosto. Depois de metido na pipa passava-se o Inverno como se não existisse – a menos que lhe saltasse a tampa, sinal que iríamos ter um vinho turvo – até se lhe meter a torneira a maço, dia de gáudio, “in vino… Baco!”, e se trasvasar para as garrafas. O preparar das garrafas tinha sido uma trabalheira: passadas por água, lavadas com escovilhão de arames, destroços de rolha retirados de dentro delas com utensílios engenhosos, chocalhadas com chumbos de espingarda para lhe destacar das paredes o sarro, as concreções, depósitos esquecidos. Iam-se alinhando. Num caldeiro ferviam as rolhas novas de cortiça, boiando e rebolando na água, rescendendo como se fossem uma infusão de magia (e não o era, tudo aquilo?), apanhadas num ápice para a goela do arrolhador que, com um gemido, as enfiava pelo gargalo da garrafa.

A garrafa verde que ontem me vieram oferecer a casa e tirei de uma caixa, aliás, de umas caixas onde estavam muitas mais, trazia rótulo. Tal como o vinho, não era nem é um rótulo qualquer, pretensiosice paga para captar clientes, cheio de anotações numéricas de normas, atestados e classificações e um paleio mole e piroso a elogiar o vinho… nada disso! É um rótulo elegante e feminino, como se fosse uma garrafa pronta e vestida assim, de vestido curto dos de dançar o Charleston nos anos vinte, colar largueirão de contas vermelhas até à cintura usado para as letras, muito simples e por isso requintada sedução de “que venha a festa que eu estou aqui, sou como sou!”. O Amendoeira 2008 é um vinho histórico. Pelo seu passado e pelo seu significado, bem expresso no rótulo, tão simples e significativo, da CASA DOS SERRAS: diz tudo o que é, como numa declaração de amor feita de coração na mão.

Antes de beber o vinho, comece a saboreá-lo lendo o rótulo, todas as palavras do rótulo, as escritas e as que foram sonhadas para que, vinho e rótulo, se possam ler e beber.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

cafés, pastelarias e casas de chá

Toda a vida gostei de cafés, pastelarias e casas de chá. As mais antigas lembranças da minha vida (lembranças, que as recordações são outras…), estão-lhes ligadas, ao seu som e ruído, ao seu cheiro inesquecível, ao seu conforto resguardado. Lembro-me de imensos sítios, de muito longe, ao colo ou pela mão do meu pai, aroma tão doce de cariocas que já não existem, à mesa com a minha mãe, diante de um prato de bolos sortidos, ou a servir de chaperon nos namoros das minhas irmãs, a olhar para as bolhas a subir num copo de canada-dry. Há episódios de cada um que se sobrepõem como centenas de flashes, que me vêm do Marzim, do Palace, do Guarda-sol, da velha Estalagem do Caçador, do Central, do Gelo, do Nicola, da Brasileira, da Suiça, da estação da Régua, da Helena Tirone, da Poveirinha, do Poças, do 140, da Aurora, do Texas, do Monumental, do Paladium, da Imperium, da Colombo, da Caravela, da Mexicana, da Flor da Granja, da Bénard, de tantos e tantos outros. De todos esses pedaços do meu tempo (já que foram pedaços de tempo, um bem tão precioso, que neles fui deixando) guardo uma especial memória de alguns. A intensidade desses momentos passados foi tal que ainda hoje – e, estou certo, até que um dia feche os olhos – deles cintila comigo a sua luz inesquecível e saborosa.
Tenho pena de serem impossíveis de revisitar com a mesma atmosfera. A começar pelo Diana Bar, pousado na areia da praia da Póvoa, em que se entrava com a sensação de tomar lugar numa nave prestes a partir e com gente sempre a chegar, ruído de cadeiras de madeira e de metal, sabor de yogurts amargos, dos verdadeiros, dos de se lhes por açúcar às colheradas tiradas de açucareiros também verdadeiros, cromados, de tampa com entalhe para a colher. Luz por todos os lados, do céu, do lado do mar, das vidraças, vento a ver-se lá fora no drapejar incessante das riscas das barracas e toldos de lona da praia. Da galeria redonda avistava-se a sala de baixo como quem assiste a um programa de variedades, toillettes e passos estudados, homens mais graves de chapéu escuro e fatos de importância, pose de leitura dos diários, óculos polidos para não macular a visão dos penteados e dos passos das senhoras e raparigas. Tantas saudades do Diana Bar! Do cheirinho do café de saco que vinha das máquinas do bar de baixo e subia como que empurrado pelos tabuleiros que os criados erguiam acima das cabeças de toda a gente, para não chocarem, repletos de chávenas e pires, e os levavam voando como se executassem um número de ballet. Bem sei que era poiso do José Régio e precisamente porque era poiso do José Régio, tenho a certeza que ninguém mais do que ele se teria oposto ao que é hoje: uma biblioteca, espaço cultural. Cultura, cultura, era o Diana Bar com toda aquela gente a fervilhar, a viver o seu tempo, a utilizar o seu espaço, tertúlia feita de quem a vive. Que mania esta de hoje, de querer viver a cultura como quem a exuma, em espaços cenografados de que se varreu a vida!
Em Lisboa voltei a encontrar o mesmo cheiro do café de saco no mais imperdível dos meus recantos: na Versailles. Descrever a Versailles e o que vivi na Versailles daria um livro para várias edições, todas revistas e comentadas mais ainda. E ainda me custa falar da Versailles. Ainda vou lá. Não tenho o à-vontade da distância e, sem isso, não tenho a liberdade de construir frases sem que sobre elas pese demasiado comedimento. Ora, ser comedido no que se escreve é o contrário do que seria autêntico sobre o que foram os meus anos mais intensos da Versailles: exuberantes. Descrever, por isso, a exuberância com comedimento seria falsear em absoluto o espírito com que dia a dia cruzei as portas de vaivém e vidro gravado que separavam e separam a Avenida da República daquele microcosmos de todos os regimes. O melhor sítio para se beber chocolate - à Versailles e à espanhola.
Toda a gente me dizia sempre que o café de Espanha era intragável. Horrível. De se não beber. Mas devo dizer que o café que bebi há imensos anos no Novelty, em Salamanca, me valeu por quase todos da vida. Tinha ficado embasbacado com a Plaza. Trovejava como num livro de tragédia e aproveitei uma aberta para me por no centro, ainda havia carros por ali nesses anos, mas raros, esplanadas à volta, fachadas de pedra à volta, um turbilhão de história a toda a volta que, num rodopio, me fez sentir uma vertigem daquelas que sabem bem, que nos arrebatam. Depois andámos pelas arcadas, surpreendendo o exótico, passos leves, querer tudo inspirar como uma possibilidade. Entrámos, então, no Novelty. Foi como quem muda as rotações de um gira-discos, de repente um 33 ou mesmo um 78 dos antigos, de ponta de aço e boca de gramophone, espelhos em que se via erudição e requinte mas tudo ao alcance de quem se deixa apenas ficar ali, passar a vista nas letras dos periódicos, ouvir cada frase sonora (sempre sonoras, as frases dos espanhóis) dita de forma decisiva e a misturar arte, paixão e estilo (até para matar um touro, os espanhóis o fazem com arte, paixão e estilo). Confesso que não me apercebi logo de que café era aquele. Apenas captei tudo o que o inesperado pode deixar captar de uma vez só, em que somos confrontados com a sensação de que era mesmo aqui que eu queria poder vir todos os dias. Ali o deslocado era eu, nas bluejeans, na mochila, no ar de visita. Mas fui encarado como da casa, como se fosse um cliente de sempre – deu-me ideia que ali os clientes não eram clientes, eram mais como se fossem membros de um clube, um clube de sempre, a cheirar a puros – e foi-me servido um café espanhol, com travo de café espanhol, numa chávena onde cabia uma colherona espanhola. Bebi-o concentrado, como se estivesse bebendo uma poção, tentando corresponder a que estava num local de arte, desde logo sentindo pelo sítio uma paixão e esforçando-me por fazê-lo com o meu melhor estilo. Estava mesmo bom, aquele café. Era daquele mesmo que tinham bebido tantos antes de mim, que o tinham cheirado, saboreado, sentido mais ou menos acre, mais ou menos forte. No fundo, aquele travo e aquele aroma era a forma mais próxima que eu tinha de me sentir chegado a todos os que tinham frequentado o Novelty antes de mim. Tinham-se visto nos mesmos espelhos, sentado nas mesmas poltronas e bancos, usado o mesmo balcão, as mesmas mesas. Quando hoje leio Torrente Ballester, por exemplo, imagino-o ali sentado ou em pé, discorrendo de forma sonora, observando as pessoas sob as arcadas, vendo Espanha e todo o mundo na Plaza, idealizando com arte, paixão e estilo cada uma das frases com que nos encanta ao lermos cada uma delas.
E por falar em encantamento, não posso deixar de dizer para memória futura que se houve granitados, sorvetes e batidos que o tenham tido, eram, sem qualquer dúvida, os da Ferrari. Começavam pelo colorido. Iam mudando de tom, conforme o tempo passava e os sorvíamos pelas palhinhas. Morangos com chantilly. A Ferrari era colorida também por toda a gente. O primeiro sítio de Lisboa em que eu, mais habituado a que as cores estivessem nas árvores e em tudo mas menos nas pessoas, monocromáticas e em frios tons de escuro, me senti como se estivesse num arco-íris. Estava também nos meus anos de arco-íris, Portugal estava de repente a ficar um país pequeno, eu a multiplicar horizontes para lá de parentes e primos. Tão boas as tardes na Ferrari, os fins de tarde na Ferrari! Foi numa mesa da Ferrari que tive as minhas mais inocentes conversas de flirt e também a minha mais séria conversa de namoro. A minha maior perda com o incêndio do Chiado foi a Ferrari. Alguém terá por aí uma fotografia tirada dentro da Ferrari?

sábado, 5 de setembro de 2009

Senhora da Serra - a surpresa da Eternidade

No IP4, acabara a subida de Vale de Nogueira, como tantas vezes, manhã luminosa a caminho de Bragança. Luminosa mas já com um arzinho de Outono, penacho a ser empurrado para fora da Senhora da Serra, semana da novena. Cliquei na 2 para ouvir o que dava. Nem de propósito: o coro final da Paixão Segundo São Mateus, de Bach, orquestra de Chicago dirigida pelo saudoso Georg Solti. Estava a passar depressa na descida de Rossas, Serra da Nogueira à frente, curva do ribeiro de Rebordainhos. Se a manhã, fora do carro, estava de se encher o peito de ar, via-se o recorte da Serra da Nogueira, ao fundo a do Montesinho e a da Cabrera, a paisagem de cá e de Espanha com uma nitidez em que se adivinhavam os campos, as eólicas e as árvores, dentro do carro, estava de querer voar, braços abertos, música a fluir, Bach a soprar eternidade. É que na véspera – ontem – eu tinha tido um choque. Um choque agradável.
Há já anos, não sei quantos, que eu tinha ido pela última vez à Senhora da Serra. Todo o Trás-os-Montes já foi à Senhora da Serra. Mas eu só ontem, só ontem é que entrei na igreja pela primeira vez! Das outras vezes eu fugira de lá ir, multidão à pinha em dia de festa, apenas tentara balbuciar qualquer coisa do lado de fora do templo. Algumas vezes nem saíra do carro, sítio desabrigado dado a ventos cortantes. Mas ontem – só ontem! – eu estacionei perto da entrada do adro, saí da carrinha apertando um colete almofadado que me deixou sentir o vento forte de forma agradável, com o seu quê de amigável, amigo velho. Abeirei-me do muro a Noroeste, luz do Poente de onde corria o ar, logo ali o morro do Pagus Celae, a Sudeste o morro quase gémeo de Alvelia. Fiquei preso do Sol, que esmorecia sobre um horizonte fantástico, mais baixo que eu, feito de milénios, de promessas e de intenções, de choros e de reconhecimentos, Lua redonda a subir de Nordeste, também mais baixa, ali tão perto, de face ao vento que soprava sobre as minhas costas, capaz de me tombar, um vento a ir e a vir daquele horizonte de eternidade, empurrando-me para a porta do templo. Entrei. Primeiro, um vazio. Nada de gente, abalada da missa da tarde, ainda não chegada para a prédica da noite. Hora sublime. Uma luz de cinema, vidraças a deixá-la entrar para o silêncio de igreja, uma ou outra de vidro partido a fazer esvoaçar cortinas de renda, como se alguém o quisesse. O assobio esfarrapado do vento, volume ondulante pelas frinchas de portadas e das tábuas do tecto, de todos os lados, o mesmo som que tanto me fazia ali, na Senhora da Serra, como há anos na Senhora do Cabo, batido do mar. O mesmo vento, o mesmo Sol, a mesma Lua, uma porta oscilando numa dobradiça rangente, marca repetida como um metrónomo a contar o tempo (o da nossa alma?). Um homem de joelhos, solitário, rapaz mais novo que eu, rezava lá à frente, calado. E eu fui andando pela nave numa surpresa de me ver mergulhado e a respirar a atmosfera carregada de sagrado, colunas de granito a suportar o céu e o tempo em vez de um telhado, imagens com a Senhora ao centro resplandecendo num diadema de estrelas de prata. Que o não precisava para resplandecer por si só! Como se não precisava também da imagem da Senhora para se perceber bem que Ela está ali, que Ele está ali com Ela. Seria do vento? Ajoelhei-me também, fechei os olhos numa reverência, deixei-me arrebatar de mim próprio, decidido a pegar nos pedaços soltos de mim próprio – quem de nós não tem pedaços soltos? Eu não fora ali para peregrinar. Fora para um jantar de carne assada, vitela e rodeão, batatas fritas e vinho, nos restaurantes, a convite. Não levava na ideia nenhuma pedinchice, nem ideia de promessa, nem gratidão estampada num ex-voto. Vim de lá jantado, pedido feito, promessa incerta e gratidão por lá ter estado. Segredos à vista da eternidade, naquela hora sublime de inesperado encontro.
E agora aqui ainda a pele se me põe de galinha, ao lembrar o instante, recordado no dia seguinte ao descer de Rossas pelo IP4, escrito mais tarde na agenda numa sala do IPB enquanto umas alunas tentavam acertar respostas de um exame, aqui transcrito para o computador no preciso dia em que fui interpelado por descurar o blog. Em qualquer sítio e em qualquer caso a reler e a escrever por causa de uma Senhora que, no alto de uma serra ou num penhasco de mar ou nas notas de um autorádio vibrando Bach, nos surpreende como se fosse um flash disparado da eternidade.

terça-feira, 10 de março de 2009

O Segredo da Fonte Queimada - apresentação em Lisboa


No próximo dia 26 de Março,
pelas 18,30,
na Loja Portugal Rural http://www.portugalrural.com/ ,
vai ser feita a apresentação d'
"O Segredo da Fonte Queimada"
pelo Professor Doutor Vítor Serrão.
Conto com a vossa presença!

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA

já existe!
quando for o lançamento, aviso.
"Na biblioteca de um velho capitão solitário figura um livro raro escrito por
um médico de D. João V. Que segredos encerrará esse Aquilegio Medicinal sobre as fontes e águas de Portugal? E que águas e fontes serão verdadeiramente aquelas a que se refere o seu autor? É o que nos propõe descobrir Manuel Cardoso nesta aliciante viagem no tempo até ao Portugal do século XVIII."

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O primeiro avião nos céus de Bragança

O PRIMEIRO AVIÃO Que veio ao Distrito de Bragança, aterrou em Macedo de Cavaleiros © Manuel Cardoso e Brigantia[i] O primeiro avião que veio ao Distrito de Bragança, em 26 de Julho de 1922, foi um biplano Breguet, aterrou em Macedo de Cavaleiros e foi pilotado por Sarmento de Beires. O pretexto da sua vinda foi o da festa de Santa Bárbara, desta vila, a ser celebrada a 28, 29 e 30 de Julho, mas a sua repercussão ultrapassou em muito quer o âmbito geográfico quer religioso das festividades.
As viagens e peripécias aéreas dos nossos aviadores, então ainda pioneiros e impregnados de espírito de aventura, estavam no auge. Nesse ano e nos meses que antecederam esta incursão pelos céus trasmontanos, os jornais tinham-se enchido com a saga da Travessia do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Patrocínios, subscrições públicas e procura de propaganda, a que a venda e disputa de público leitor pelos principais jornais não estava alheia, tornavam efervescentes todas as iniciativas que pusessem a voar aquelas máquinas extraordinárias, quais brinquedos de entreter de forma séria um povo inteiro que queria, a todo custo, um escape para os tempos sombrios, conturbados e infelizes da Primeira República. Macedo não fugia à regra geral. Os grupos que remexiam na baixa política de campanário e que estagnavam o progresso ao estar envolvidos em intermináveis discussões bizantinas e em conspiratas menores de farmácia e barbearia, precisavam urgentemente de um facto que saísse do ramerrame e galvanizasse o povo. Se não o povo, pelo menos a sua esperança. Foi daí que um dos sectores, numa inspiração elevada na completa acepção da palavra, se lembrou de fazer vir um avião até Trás-os-Montes. Esta viagem implicou contactos, negociações e recolha de fundos. Já o jornal “O Século” de 13 de Julho de 1922 trazia uma antecipação do que estavam a ser os preparativos, anunciando quem iria ser o piloto, qual o avião e que já havia a necessária licença do senhor Ministro da Guerra. Noticiava-se mesmo que o senhor Venâncio de Carvalho Morais, industrial, representava a comissão de festas em Lisboa e tinha, junto do governo, assumido o compromisso de providenciar o campo para a “aterrissage”.

Um campo no alto dos Merouços foi nivelado com uma lavra por juntas de bois, gradado, compactado a cilindro e despedregado dos maiores calhaus, numa extensão de mais de três centenas de metros, para que a máquina voadora pudesse pousar e levantar. Fez-se uma edição de postais ilustrados para angariar algum dinheiro e propagandear o acontecimento. O Cartaz do programa, impresso em Lisboa, é eloquente. Terá havido um certo secretismo na preparação deste importante acontecimento, divulgado pràticamente em cima da hora, a menos dum mês da sua realização, para que a ideia não fosse "roubada" por alguma das outras potenciais rivais em querer disputar este evento inédito, nomeadamente Bragança ou Mirandela. 



Contactaram-se os jornais para patrocínio, vindo a ser o “Diário de Notícias” o eleito. Se bem que o contagiante rodopio de preparativos das festas, de cuja comissão fazia parte o senhor Francisco Parente, chegasse a todos os outros órgãos de informação e tenha sido novamente “O Século” que, a 22 de Julho, noticiasse que iria ser um deslumbramento para quem se deslocasse a Macedo: quatro bandas de música, iluminações à moda do Minho, barraca de kermesse artisticamente ornamentada na qual venderiam sortes as mais gentis damas macedenses. Da parte religiosa constava missa a grande instrumental, procissão de penitência e missa campal. A coluna do jornal não termina sem que se refira: “Um dos grandes atractivos das festas será a vinda de um aeroplano pilotado pelo capitão-aviador sr. Sarmento Beires, o qual deverá aterrar no campo que está preparado para esse fim, no dia 28 às 9 horas[1], fazendo antes algumas evoluções sobre a vila, mostrando assim, ao povo trasmontano, os progressos da nossa aviação. O interesse regional procura atractivos de forma a tornar a vila de Macedo de Cavaleiros, que é já a mais bonita do distrito, a mais conhecida e a que mais distracções e comodidades oferece aos forasteiros. Espera-se por isso que as festas sejam grandemente concorridas.”[2]
 Dias antes, sob instruções técnicas do piloto e da esquadrilha a que pertencia o aparelho, a da Amadora, tinha vindo por caminho de ferro o combustível necessário, óleo e apetrechos. Combinara-se mesmo haver uma fogueira fumarenta à hora da aterragem, para que se pudesse aperceber do alto de que lado estava o vento. No dia 26 de Julho de 1922, às seis horas e trinta e cinco minutos da manhã, um biplano “Breguet 2” levantou voo da Amadora. Pilotava-o o Capitão Sarmento de Beires e vinham mais dois tripulantes, o Tenente José Carlos Piçarra como observador e o Sargento Ajudante Pinto de Gouveia como mecânico.
Percorreu os 350 Km até ao destino, sem escala. A sua aventura foi sendo seguida de terra pelas povoações sobrevoadas como Salgueiros (Casal Jusão), em que chegou a haver pânico nalgumas pessoas e onde o senhor João de Figueiredo Agostinho, comerciante em Benguela, fez subir alguns morteiros de saudação; Vila Moreira, às 8 horas, Sernancelhe, às 9; transportando a bordo centenas de Diários de Notícias, foram sendo despejados sobre Mangualde, Lamego, Moimenta da Beira e, no meio de uma euforia geral, sobre Macedo de Cavaleiros. Estes jornais, pela primeira vez recebidos no Distrito de Bragança a escassas quatro horas de terem sido impressos, foram disputadíssimos entre a população, tendo havido coleccionadores que chegaram a pagá-los a 10 escudos quando o seu preço de número era de 10 centavos (100 réis)! Os macedenses e forasteiros tinham madrugado para assistir ao voo de chegada e aguardavam com nervosismo a ansiedade as horas que passaram desde que o telégrafo tinha avisado que a aeronave levantara voo da Amadora.
Por fim, um ronco contínuo foi sentido a vir dos lados de Bornes. Aterrissagem às nove horas e trinta minutos. Três horas, da Amadora a Macedo de Cavaleiros! Foguetório e banda de música, numa manhã de sol em que as senhoras se tinham munido de sombrinhas, os vivas e as saudações aos aviadores foram efusivas! A comissão tinha um brinde para esta iniciativa e os seus elementos, o senhor Venâncio Morais, Manuel Serra, Lázaro Rodrigues e Francisco Parente, em sintonia com a Câmara Municipal, comunicaram que esta última tinha decidido oferecer ao estado por intermédio do senhor Capitão Sarmento de Beires, o campo de aterrissagem. Era a primeira tentativa séria, feita da parte da sociedade civil, para que o Nordeste, “esta região do extremo do país”, como se lhe refere o Diário de Notícias nos telegramas recebidos de Macedo de Cavaleiros, tivesse ligações aéreas com o resto do mundo! Milhares de pessoas aguardavam e observaram a aterragem.
Foguetes, sinos a rebate, correrias, foi um dia de entusiasmo e espanto. Aliás, uns dias. Porque o avião ficou por estas bandas uma semana.
No dia 30[3] o aeroplano levantou voo para fazer um tour pelo distrito, tendo sobrevoado Bragança, facto que ocorria pela primeira vez na história! Foi às seis horas e dez minutos da manhã! Houve foguetes e correrias e o assunto foi acaloradamente discutido pelos cafés e botequins, tendo sido esse facto decisivo para que a opinião pública bragançana despertasse para o progresso que representava a viação aérea!
O regresso à Amadora deu-se no dia 3 de Agosto. A viagem iniciou-se com a descolagem às 5,30 h, passou por Mangualde pouco depois das 6 e por Carregal do Sal às sete menos um quarto, tendo aqui sido saudado por uma morteirada. Passou sobre a Serra da Estrela e Coimbra, causando a sensação da novidade por todo o lado. Aterrou na Amadora às oito e vinte. Foi um record nacional de velocidade! 350 Km em duas horas e cinquenta minutos!
Durante anos perdurou na memória de quantos assistiram esta primeira vinda de um aeroplano ao Distrito e este testemunho documental e fotográfico aqui fica para a história de Macedo de Cavaleiros e para a história regional.
Bibliografia e fontes Diário de Notícias O Século Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Vol.IX, pg.233 Manuel Cardoso, Macedo Rua a Rua, ed. Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros Fotografias da família Sousa Cardoso Postal ilustrado s/d, possivelmente da Casa Parente, Macedo de Cavaleiros; arquivo familiar de Luís Miranda Pereira, no Solar Morgado de Oliveira.
Na primeira página do Diário de Notícias de 27 de Julho de 1922 há uma fantástica notícia desta aventura, com uma fotografia em que aparecem os três aviadores da façanha, aqui reproduzida.
A Ilustração Portuguesa, n.º 862, de 26 de Agosto de 1922, reproduz uma fotografia, "cliché Serra Ribeiro", na sua última página, intitulada Raid a Macedo de Cavaleiros, tomada antes do aparelho levantar vôo com o capitão Sarmento de Beires, o tenente Piçarra e o mecânico Gouveia.
[1] Acabou por ser a 26, como se pode ver neste artigo. [2] In O Século de 5ª feira, 22 de Julho de 1922. Devo ao Dr. Lécio Leal e ao Dr. Carlos Mendes, da Associação Terras Quentes, a paciente busca deste jornal na Biblioteca Nacional. [3] Não pudemos confirmar ou desmentir esta data ou outra indicada para este facto. O Abade, nas Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, vol.IX, pg 233, escreve que terá sido a 31 de Julho. De acordo com a redacção dada no jornal, terá sido a 30 mas pode tratar-se de uma interpretação do correspondente pelo que continuamos com a dúvida de 30 ou 31! Talvez algum leitor tenha uma prova irrefutável!!!! Uma foto datada!!! Uma carta que refira o acontecimento!!! Qualquer documento!!!
[i] Uma versão deste artigo foi publicada na revista Brigantia, do Arquivo Distrital de Bragança, em 2007.
Este artigo está em revisão, em 2022, com vista à sua actualização com documentos entretanto descobertos ou fornecidos e com novos elementos sobre o acontecimento que relata. Algumas das fotos exibidas na sua publicação original, que ainda estamos a tentar datar e enquadrar com precisão, referem-se a um acontecimento posterior, de 1927. A essência do que se pretende assinalar está correcta: o primeiro avião a vir ao Nordeste de Portugal aterrou em Macedo de Cavaleiros e tal aconteceu em 1922.  Manuel Cardoso, 7.01.2022.