domingo, 20 de junho de 2010

Externato Trindade Coelho - Memórias e Outras Histórias

Os livros de memórias são dos géneros mais interessantes de literatura.


Na realidade, em todos os livros está sempre algo da memória do seu autor mas nos que são de memórias, mais ainda do que num diário, está a perspectiva de quem escreve, focada precisamente num tempo que a passagem dos anos não apaga, flashs esclarecidos de episódios e vivências, a que a posteridade vem dar uma coesão especial. De outro modo ficaria deturpada na informação que o autor quer deixar.

Nos livros de memórias não há só a intenção de registar factos, emoções, datas: há o sabor de os recordar e o saber de os transmitir.

O interesse dos livros de memórias é diferente para quem os escreve e para quem os lê. Quem os escreve tem a preocupação de neles verter a sua intenção; quem os lê rebusca neles com a sua curiosidade. E muitas vezes ambos misturam a visão de quem escreve, a visão e a memória do autor e do leitor, surpreendido pela perspectiva alheia sobre acontecimentos de conhecimento comum. E esta diferença de paralaxe, este autêntico jogo dos possíveis, tem o surpreendente de dar uma dimensão diferente, uma dimensão fecunda que torna atraente de forma invulgar este tipo de literatura. Aliás, reside no desfocar da nossa perspectiva face às realidades vividas por outros, o âmago do atractivo desta literatura, como num perfume reside no ressoar de uma molécula de benzeno a capacidade de impressionar o olfacto. Este palpitar, fruto da dinâmica que se forma por causa de uma mesma memória ser evocada de pontos de vista diferentes, este desfasamento entre o outro e nós, é que cria o lado tão emotivo desta literatura. E quando acabamos um capítulo, um parágrafo ou uma simples passagem em que se nos descobre uma outra forma de ver ou de recordar um facto, logo no nosso espírito surge uma dinâmica de pensamento que nos solta um inspirado suspiro, um vislumbre inédito sobre o tema, uma novidade que, de alguma forma, nos traz felicidade.

São sempre felizes, os livros de memórias, em preencherem o que nos vai cá dentro, mesmo os mais tristes que nos suscitem tristezas, os mais dramáticos que nos ponham contritos, os mais violentos que nos obriguem a fechar algumas páginas ilegíveis ou medonhas. São uma superior forma de felicidade porque à partida não são uma felicidade solitária: à partida são uma forma de felicidade partilhada. Mesmo os que se desfaçam – e nos desfaçam – em lágrimas, essas formas tão líquidas que temos para exprimir momentos extremos.

Este livro do Dr. Garcia, em que são recordados momentos marcantes da sua vida – e em que está muito de uma faceta militante de um homem que soube dosear o seu conformismo e inconformismo ao longo da vida, é um livro com passagens notáveis duma simplicidade literária pura, densamente preenchida por testemunhos cheios de significado. Mas é, também, um livro que, em muitas passagens, é um testamento moral. Não tem frases inúteis. Cada uma delas tem um propósito subjacente: o de ficar para a posteridade como uma marca tão indelével quanto possível. Para quem o quiser ler? Sim e, sobretudo, para os netos, que o autor sente manifestamente capazes de, combinando genes e a interpretação do seu testemunho escrito, se libertarem daquilo que o meu amigo Dr. Garcia não fez ao longo da vida: fugir ao destino. Se se atrevesse a um recomeço, o autor forjá-lo-ia…

Das páginas do livro fica um remorso que se lê mais na luz dos momentos do que na letra das frases: o remorso de não ter querido, ou podido, ou ambas as coisas, fugir ao destino, obrigá-lo a um outro modo de diferença do que foi a sua vida vivida (vida vivida, é mesmo isto).

O Dr. Garcia foi meu professor em 72/73 e 73/74. Aprendi muito com ele, então. Não apenas a matéria das disciplinas, de que ainda faço uma vaga ideia, mas um testemunho de presença, de que ainda tenho a imagem nítida. Estou a vê-lo entrar na sala de aula, sempre de blazer com botões (às vezes o blazer tinha cotoveleiras) segurando uma pasta preta, uma vasta pasta preta, pousá-la na secretária, abri-la, tirar livros e folhas. Depois de nos cumprimentar, olhava pela janela que dava para a rua (a rua Almeida Pessanha, a “rua dos talhos” como então se dizia). Ficava um breve instante sério e pensativo após o que, fitando-nos com um ar vivo, nos dizia:

- Então, que tal?

E começava uma conversa mais ou menos informal, mais ou menos divertida, com histórias e opiniões, com mensagens mais explícitas ou mais implícitas. O tempo ia passando. A certa altura entrava-se na matéria. Pegava no giz e fazia-nos uma demonstração de uma fórmula ou explicava, tracejando números e letras, uma resolução de uma equação.

Durante muitos anos o meu rasto não mais se cruzou com ele, embrulhados ambos em vidas diferentes, entrevistando-o esporadicamente num passeio ou num atravessar de ruas, sempre muito fugaz. Mas eu sabia, mera intuição, que me reservaria, nos reservaria, mais esta lição. Uma lição de vida.

Bem sei que este livro de memórias e outras histórias está, também, eivado de passagens de proclamação marxista, ideologia muito diferente do meu modo de pensar, e eu não venho aqui questionar esse marxismo professo pelo autor. Mas tenho a perplexidade de reler essas proclamações marxistas de um modo estranho: é que não estão ali nas frases ao serviço do mesmo marxismo que as terá inspirado mas de uma forma muito antiga de humanismo. De um humanismo não católico, segundo o autor, mas de um humanismo de quem tem fé em Deus, tem horror à injustiça e à iniquidade deste mundo, das pessoas deste mundo, um respeito escrupuloso pela dignidade das pessoas, sensibilidade perante o belo, a música, a arte. Indignação profunda perante a pusilaminidade e mediocridade de carácter, a falta de companheirismo, a falta de solidariedade social. E quer que todos partilhemos desse seu humanismo. E mesmo se há passagens em que coloca nas palavras uma mais veemente intenção subversiva, a da via armada de uma revolução, a de querer correr a tiro uma certa clique, tal não é um imperativo bélico de um atirador a querer liquidar pessoas: é mais uma vontade (um remorso?) de que não haja mais uma oportunidade desperdiçada, como terá sido outra ou outras, das de mudar o mundo. Há sempre uma idade para se querer mudar o mundo. Felizmente o Dr. Garcia não a perdeu: deixa um incitamento a que outros o façam e de tal sejam capazes.

Todo o tom do livro é o de um homem tranquilo que se indigna perante o lado negativo das pessoas. Todo o tom do livro é o de um homem que agora, ao fim destes anos, sente um sobressalto de intranquilidade pelas mesmíssimas razões. Só que estas razões são as mesmas que levam qualquer homem de boa vontade a sentir-se intranquilo e indignado. Não só aos marxistas e, até, sobretudo aos não-marxistas. Aliás, apesar das proclamações marxistas, a história demonstra que em matéria de sensibilidade social não é o marxismo o bom exemplo a seguir.

De certo modo, este livro é uma declaração de guerra e um pedido de armistício. Com quem? O autor sabe-o e diz-no-lo: com todos aqueles de quem não guarda ressentimentos. Coisa elevada e de uma profundidade que só raros conseguem. Tal como só raros escrevem um livro assim.

Defeito do livro: curto.

sábado, 15 de maio de 2010

As Pedras de Orense





Piedras de las calles de Ourense,

Piedras, viento e lluvia:

Viento que sopla,

Como um fluido de tiempo;

Lluvia que es agua,

Interminable hilo de vida e mistério;

Piedras de quartzo, feldspato e mica.



Piedras de las calles de Ourense,

Pisadas por sandalias, botas, tacones lejanos,

Por pies que se mojam en las aguas de Ourense,

Que pisan el granito.



Piedras de las calles de Ourense

Hechas de agua,

De la alma de Ourense,

Que se mira en los ojos,

Ojos de la gente,

De la gente que pasa en las calles de Ourense.



Ojos de colores de aguas profondas,

Colores antiguos que se escurren del cielo,

Que suben del suelo.

Calientes como la agua,

Del fondo de la tierra

- Donde un dios secreto

Os acalentura en su corazón.

Las piedras de las calles de Ourense.

terça-feira, 4 de maio de 2010

A Paula e o António

Há uns tempos, depois de mais um Câmara Clara, escrevi um artigo sobre um tema tratado. Apetece sempre escrever qualquer coisa depois de se ver o Câmara Clara...

É impossível ficar indiferente à voz e ao olhar da Paula Moura Pinheiro. Captam-nos a atenção desde o primeiro instante como se nos perseguissem. De tal modo que agora, ao ler seja o que for de PMP, nas linhas parecem estar, escritos como marca de água sub liminar, os símbolos do som de toda a força desse seu olhar e dessa sua voz. Digamos que dão mais força aos seus argumentos!

Tal como era impossível, no século XVII, ficar indiferente ao que pregava o Padre António Vieira. Não conhecemos dele a voz, nem o olhar, nem o gesto. Mas conhecemos a força do seu testemunho, o valor dos seus argumentos, a importância de tanta persistência na “perseguição do seu objectivo celeste” (para usar uma expressão de PMP). Há uns anos, em Lisboa, no Cinema Roma, numa concorrida sessão de homenagem da Casa de Trás-os-Montes ao Professor Doutor Adriano Moreira, um actor emprestou a voz, uma belíssima voz, para o Sermão de Santo António aos Peixes. Foi magnífico poder ouvi-lo à beira do palco como se o fosse da balaustrada de um púlpito. A voz de Vieira poderia ser diferente mas ali, entoadas daquela maneira, as frases que nos fazem humilhar a ponto de reconhecermos não prestar para sermos o sal da terra e que ao mesmo tempo nos fazem crescer para querermos mesmo e muito ser esse mesmo sal da terra, foi como se Vieira, ele próprio, nos interpelasse com força e determinação.

O ponto de vista feminino, sempre para lá da lógica da análise e muito melhor do que a lógica da análise, vê até onde esta não chega: o fundo dos corações, o valor emocional de um argumento. Para descobrir facetas de um homem, não há, pois, como uma mulher. Daí que tenha sido com uma enorme curiosidade e surpresa que li o artigo de PMP sobre o Padre António Vieira escrito na Brotéria, uma síntese no âmbito do Encontro Fé e Justiça, realizado em Lisboa em Fevereiro, sob o tema “Padre António Vieira: os mesmos desafios quatro séculos depois”.

Tal como Vieira “nunca vacilou na perseguição do seu objectivo celeste”, também PMP se mostrou convicta na incansável militância de S.Paulo em afirmar que “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher…”.

Espero sinceramente que PMP nunca deixe de nos perseguir nesta descoberta da verdade pela voz – que digo eu? – pelos sermões e pela vida do nosso Padre António Vieira.

sábado, 10 de abril de 2010

impressões dos que estiveram por aqui - 1

"Bragança, 11 de Novembro de 1973"

"Vou ao correio. Mas é domingo. Portas fechadas. Só nos cafés a gente aperaltada discute temas de ocasião. Fala-se de gasolina, do fim do mundo, das grandes carestias. Procuro, na farmácia de serviço, o tal remédio infalível e lusitano, importado da América, meio milagre, meio droga, que me cure a filharada, febril e doente de serra e frio.
Isto é um poço, diz-me o boticário. E vai aviando, com presteza, uma medicina obscura que mata todas as lombrigas. Assim garante a uma brigantina de oito ou nove anos, enfezada, anilada, pobre flor que me emociona todo o ser eu, apenas e afinal, um Portugal de bolso. Adeus".

in Diário, vol II, João Palma-Ferreira

Tenho vindo a coleccionar, sem objectivo declarado mas com intenção de vir a ser qualquer coisa, textos publicados de gente que andou por aqui, por estas nossas terras. Tenho descoberto coisas inauditas! Exactamente: inauditas! Inauditas entre nós, bem entendido, e muito curiosas de se ler...
Fantástico, vermo-nos no espelho dos outros ou, verdade seja, surpreendermos os outros a verem-se ao nosso espelho!
Este mini-texto de hoje é uma mini amostra. Muito legível. Sobretudo nos subentendidos de um diário...

domingo, 13 de dezembro de 2009

antes de beber - leia o rótulo!


Vê-se que é um vinho de pipa lavada. Se bem que hoje se usem cubas. E sabe-se – porque se prova – que é um vinho antigo, de bioquímicas sem electricidade, feito com a preocupação de ser vinho e não um produto de prateleira. A plain wine. Que digo eu: preocupação? Devo estar doido ou não dormi bem! Feito com um amor, assim é que é, entranhado pelo chão, pelas plantas, pelas cores das videiras, pelo calor que dão as vides quando se queimam na lareira. Que tudo é vinho: o lavrar e sachar, o podar e tratar, o espoldrar, o colher e esmagar, saber aguardar pela alquimia do mosto, pela alquimia da cuba, pela alquimia da cor que se vê contra a luz num copo facetado, até pela alquimia da evolução do sabor. Que só se sabe se é vinho se for bebido!


Lembro-me bem de que em nossa casa a pipa abria-se sob o lema de “in vino…Baco!”, escrito, aliás, desenhado a giz na porta da adega pela Guida e festejada com uma festarola para a qual se tinham cozinhado almendrados e amarantinos que um grupo de amigos do pai consumia animadamente, juntamente com fatias finas de presunto, pão torrado e salpicões de azeite (haveria mais coisas, decerto, mas são estas as que guardo comigo). E o vinho que se bebia, dessa pipa que se abria, a pipa do canto, mais comprida e respeitada, era parecido com este, um vinho de sabor especial como o é sempre o vinho do dono da casa. Una anos era mais tinto, outros era mais claro, “está mesmo um clarete!” diziam estalando a língua. “Palhete”, chamava-se-lhe por Macedo. E ainda se chama, essência de tons difíceis, amadurecida nestas vinhas de altitude e clima caprichoso (será por isso caprichoso, o nosso vinho?). Um vinho antigo. Bom para beber no Verão, “fresquinho vindo da pipa”, que apesar do tom ou da cor, nada impede que não escorra divinamente do frigorífico para apaziguar a canícula (o nosso Avô Amadeu era dado a astros, sabia as constelações todas e, contava o meu Pai, ele empregava esta palavra na sua verdadeira acepção: canícula era o período de conjunção do Sol com a constelação de Cão, um período do Verão quente e abafado). Deste vinho se fazia o melhor vinagre, num pipo pequeno de tampa aberta, em que o líquido nunca se acabava. E com este vinagre se temperava a água dos cântaros mais retardada, para que não fizesse febres, e se regavam as saladas no prato abundantemente, de certeza pelo mesmo motivo. Mas voltando ao vinho que aqui nos traz, é, por isto tudo, um vinho antigo cujo sabor eu já suspeitava. É que também o nosso tinha uvas de vinho e uvas de mesa. No dia da vindima era preocupação colher aparte os cachos sem defeito dos dedos de dama, da uva de rei, das sem grainha e das outras das cepas da ponta (impossível a Mãe deixar que alguém dissesse que eram as quilhões de galo…). Feita a escolha dos que se penduravam nos pregos da despensa para ir comendo e fazer passas, que não tivessem bagos chochos nem suspeitas de bolores, as outras iam directas para o esmagador de volante e cremalheira e misturavam-se na dorna, mexida diariamente com um trado de madeira, vigiada diariamente com um pesa-mosto. Depois de metido na pipa passava-se o Inverno como se não existisse – a menos que lhe saltasse a tampa, sinal que iríamos ter um vinho turvo – até se lhe meter a torneira a maço, dia de gáudio, “in vino… Baco!”, e se trasvasar para as garrafas. O preparar das garrafas tinha sido uma trabalheira: passadas por água, lavadas com escovilhão de arames, destroços de rolha retirados de dentro delas com utensílios engenhosos, chocalhadas com chumbos de espingarda para lhe destacar das paredes o sarro, as concreções, depósitos esquecidos. Iam-se alinhando. Num caldeiro ferviam as rolhas novas de cortiça, boiando e rebolando na água, rescendendo como se fossem uma infusão de magia (e não o era, tudo aquilo?), apanhadas num ápice para a goela do arrolhador que, com um gemido, as enfiava pelo gargalo da garrafa.

A garrafa verde que ontem me vieram oferecer a casa e tirei de uma caixa, aliás, de umas caixas onde estavam muitas mais, trazia rótulo. Tal como o vinho, não era nem é um rótulo qualquer, pretensiosice paga para captar clientes, cheio de anotações numéricas de normas, atestados e classificações e um paleio mole e piroso a elogiar o vinho… nada disso! É um rótulo elegante e feminino, como se fosse uma garrafa pronta e vestida assim, de vestido curto dos de dançar o Charleston nos anos vinte, colar largueirão de contas vermelhas até à cintura usado para as letras, muito simples e por isso requintada sedução de “que venha a festa que eu estou aqui, sou como sou!”. O Amendoeira 2008 é um vinho histórico. Pelo seu passado e pelo seu significado, bem expresso no rótulo, tão simples e significativo, da CASA DOS SERRAS: diz tudo o que é, como numa declaração de amor feita de coração na mão.

Antes de beber o vinho, comece a saboreá-lo lendo o rótulo, todas as palavras do rótulo, as escritas e as que foram sonhadas para que, vinho e rótulo, se possam ler e beber.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

cafés, pastelarias e casas de chá

Toda a vida gostei de cafés, pastelarias e casas de chá. As mais antigas lembranças da minha vida (lembranças, que as recordações são outras…), estão-lhes ligadas, ao seu som e ruído, ao seu cheiro inesquecível, ao seu conforto resguardado. Lembro-me de imensos sítios, de muito longe, ao colo ou pela mão do meu pai, aroma tão doce de cariocas que já não existem, à mesa com a minha mãe, diante de um prato de bolos sortidos, ou a servir de chaperon nos namoros das minhas irmãs, a olhar para as bolhas a subir num copo de canada-dry. Há episódios de cada um que se sobrepõem como centenas de flashes, que me vêm do Marzim, do Palace, do Guarda-sol, da velha Estalagem do Caçador, do Central, do Gelo, do Nicola, da Brasileira, da Suiça, da estação da Régua, da Helena Tirone, da Poveirinha, do Poças, do 140, da Aurora, do Texas, do Monumental, do Paladium, da Imperium, da Colombo, da Caravela, da Mexicana, da Flor da Granja, da Bénard, de tantos e tantos outros. De todos esses pedaços do meu tempo (já que foram pedaços de tempo, um bem tão precioso, que neles fui deixando) guardo uma especial memória de alguns. A intensidade desses momentos passados foi tal que ainda hoje – e, estou certo, até que um dia feche os olhos – deles cintila comigo a sua luz inesquecível e saborosa.
Tenho pena de serem impossíveis de revisitar com a mesma atmosfera. A começar pelo Diana Bar, pousado na areia da praia da Póvoa, em que se entrava com a sensação de tomar lugar numa nave prestes a partir e com gente sempre a chegar, ruído de cadeiras de madeira e de metal, sabor de yogurts amargos, dos verdadeiros, dos de se lhes por açúcar às colheradas tiradas de açucareiros também verdadeiros, cromados, de tampa com entalhe para a colher. Luz por todos os lados, do céu, do lado do mar, das vidraças, vento a ver-se lá fora no drapejar incessante das riscas das barracas e toldos de lona da praia. Da galeria redonda avistava-se a sala de baixo como quem assiste a um programa de variedades, toillettes e passos estudados, homens mais graves de chapéu escuro e fatos de importância, pose de leitura dos diários, óculos polidos para não macular a visão dos penteados e dos passos das senhoras e raparigas. Tantas saudades do Diana Bar! Do cheirinho do café de saco que vinha das máquinas do bar de baixo e subia como que empurrado pelos tabuleiros que os criados erguiam acima das cabeças de toda a gente, para não chocarem, repletos de chávenas e pires, e os levavam voando como se executassem um número de ballet. Bem sei que era poiso do José Régio e precisamente porque era poiso do José Régio, tenho a certeza que ninguém mais do que ele se teria oposto ao que é hoje: uma biblioteca, espaço cultural. Cultura, cultura, era o Diana Bar com toda aquela gente a fervilhar, a viver o seu tempo, a utilizar o seu espaço, tertúlia feita de quem a vive. Que mania esta de hoje, de querer viver a cultura como quem a exuma, em espaços cenografados de que se varreu a vida!
Em Lisboa voltei a encontrar o mesmo cheiro do café de saco no mais imperdível dos meus recantos: na Versailles. Descrever a Versailles e o que vivi na Versailles daria um livro para várias edições, todas revistas e comentadas mais ainda. E ainda me custa falar da Versailles. Ainda vou lá. Não tenho o à-vontade da distância e, sem isso, não tenho a liberdade de construir frases sem que sobre elas pese demasiado comedimento. Ora, ser comedido no que se escreve é o contrário do que seria autêntico sobre o que foram os meus anos mais intensos da Versailles: exuberantes. Descrever, por isso, a exuberância com comedimento seria falsear em absoluto o espírito com que dia a dia cruzei as portas de vaivém e vidro gravado que separavam e separam a Avenida da República daquele microcosmos de todos os regimes. O melhor sítio para se beber chocolate - à Versailles e à espanhola.
Toda a gente me dizia sempre que o café de Espanha era intragável. Horrível. De se não beber. Mas devo dizer que o café que bebi há imensos anos no Novelty, em Salamanca, me valeu por quase todos da vida. Tinha ficado embasbacado com a Plaza. Trovejava como num livro de tragédia e aproveitei uma aberta para me por no centro, ainda havia carros por ali nesses anos, mas raros, esplanadas à volta, fachadas de pedra à volta, um turbilhão de história a toda a volta que, num rodopio, me fez sentir uma vertigem daquelas que sabem bem, que nos arrebatam. Depois andámos pelas arcadas, surpreendendo o exótico, passos leves, querer tudo inspirar como uma possibilidade. Entrámos, então, no Novelty. Foi como quem muda as rotações de um gira-discos, de repente um 33 ou mesmo um 78 dos antigos, de ponta de aço e boca de gramophone, espelhos em que se via erudição e requinte mas tudo ao alcance de quem se deixa apenas ficar ali, passar a vista nas letras dos periódicos, ouvir cada frase sonora (sempre sonoras, as frases dos espanhóis) dita de forma decisiva e a misturar arte, paixão e estilo (até para matar um touro, os espanhóis o fazem com arte, paixão e estilo). Confesso que não me apercebi logo de que café era aquele. Apenas captei tudo o que o inesperado pode deixar captar de uma vez só, em que somos confrontados com a sensação de que era mesmo aqui que eu queria poder vir todos os dias. Ali o deslocado era eu, nas bluejeans, na mochila, no ar de visita. Mas fui encarado como da casa, como se fosse um cliente de sempre – deu-me ideia que ali os clientes não eram clientes, eram mais como se fossem membros de um clube, um clube de sempre, a cheirar a puros – e foi-me servido um café espanhol, com travo de café espanhol, numa chávena onde cabia uma colherona espanhola. Bebi-o concentrado, como se estivesse bebendo uma poção, tentando corresponder a que estava num local de arte, desde logo sentindo pelo sítio uma paixão e esforçando-me por fazê-lo com o meu melhor estilo. Estava mesmo bom, aquele café. Era daquele mesmo que tinham bebido tantos antes de mim, que o tinham cheirado, saboreado, sentido mais ou menos acre, mais ou menos forte. No fundo, aquele travo e aquele aroma era a forma mais próxima que eu tinha de me sentir chegado a todos os que tinham frequentado o Novelty antes de mim. Tinham-se visto nos mesmos espelhos, sentado nas mesmas poltronas e bancos, usado o mesmo balcão, as mesmas mesas. Quando hoje leio Torrente Ballester, por exemplo, imagino-o ali sentado ou em pé, discorrendo de forma sonora, observando as pessoas sob as arcadas, vendo Espanha e todo o mundo na Plaza, idealizando com arte, paixão e estilo cada uma das frases com que nos encanta ao lermos cada uma delas.
E por falar em encantamento, não posso deixar de dizer para memória futura que se houve granitados, sorvetes e batidos que o tenham tido, eram, sem qualquer dúvida, os da Ferrari. Começavam pelo colorido. Iam mudando de tom, conforme o tempo passava e os sorvíamos pelas palhinhas. Morangos com chantilly. A Ferrari era colorida também por toda a gente. O primeiro sítio de Lisboa em que eu, mais habituado a que as cores estivessem nas árvores e em tudo mas menos nas pessoas, monocromáticas e em frios tons de escuro, me senti como se estivesse num arco-íris. Estava também nos meus anos de arco-íris, Portugal estava de repente a ficar um país pequeno, eu a multiplicar horizontes para lá de parentes e primos. Tão boas as tardes na Ferrari, os fins de tarde na Ferrari! Foi numa mesa da Ferrari que tive as minhas mais inocentes conversas de flirt e também a minha mais séria conversa de namoro. A minha maior perda com o incêndio do Chiado foi a Ferrari. Alguém terá por aí uma fotografia tirada dentro da Ferrari?

sábado, 5 de setembro de 2009

Senhora da Serra - a surpresa da Eternidade

No IP4, acabara a subida de Vale de Nogueira, como tantas vezes, manhã luminosa a caminho de Bragança. Luminosa mas já com um arzinho de Outono, penacho a ser empurrado para fora da Senhora da Serra, semana da novena. Cliquei na 2 para ouvir o que dava. Nem de propósito: o coro final da Paixão Segundo São Mateus, de Bach, orquestra de Chicago dirigida pelo saudoso Georg Solti. Estava a passar depressa na descida de Rossas, Serra da Nogueira à frente, curva do ribeiro de Rebordainhos. Se a manhã, fora do carro, estava de se encher o peito de ar, via-se o recorte da Serra da Nogueira, ao fundo a do Montesinho e a da Cabrera, a paisagem de cá e de Espanha com uma nitidez em que se adivinhavam os campos, as eólicas e as árvores, dentro do carro, estava de querer voar, braços abertos, música a fluir, Bach a soprar eternidade. É que na véspera – ontem – eu tinha tido um choque. Um choque agradável.
Há já anos, não sei quantos, que eu tinha ido pela última vez à Senhora da Serra. Todo o Trás-os-Montes já foi à Senhora da Serra. Mas eu só ontem, só ontem é que entrei na igreja pela primeira vez! Das outras vezes eu fugira de lá ir, multidão à pinha em dia de festa, apenas tentara balbuciar qualquer coisa do lado de fora do templo. Algumas vezes nem saíra do carro, sítio desabrigado dado a ventos cortantes. Mas ontem – só ontem! – eu estacionei perto da entrada do adro, saí da carrinha apertando um colete almofadado que me deixou sentir o vento forte de forma agradável, com o seu quê de amigável, amigo velho. Abeirei-me do muro a Noroeste, luz do Poente de onde corria o ar, logo ali o morro do Pagus Celae, a Sudeste o morro quase gémeo de Alvelia. Fiquei preso do Sol, que esmorecia sobre um horizonte fantástico, mais baixo que eu, feito de milénios, de promessas e de intenções, de choros e de reconhecimentos, Lua redonda a subir de Nordeste, também mais baixa, ali tão perto, de face ao vento que soprava sobre as minhas costas, capaz de me tombar, um vento a ir e a vir daquele horizonte de eternidade, empurrando-me para a porta do templo. Entrei. Primeiro, um vazio. Nada de gente, abalada da missa da tarde, ainda não chegada para a prédica da noite. Hora sublime. Uma luz de cinema, vidraças a deixá-la entrar para o silêncio de igreja, uma ou outra de vidro partido a fazer esvoaçar cortinas de renda, como se alguém o quisesse. O assobio esfarrapado do vento, volume ondulante pelas frinchas de portadas e das tábuas do tecto, de todos os lados, o mesmo som que tanto me fazia ali, na Senhora da Serra, como há anos na Senhora do Cabo, batido do mar. O mesmo vento, o mesmo Sol, a mesma Lua, uma porta oscilando numa dobradiça rangente, marca repetida como um metrónomo a contar o tempo (o da nossa alma?). Um homem de joelhos, solitário, rapaz mais novo que eu, rezava lá à frente, calado. E eu fui andando pela nave numa surpresa de me ver mergulhado e a respirar a atmosfera carregada de sagrado, colunas de granito a suportar o céu e o tempo em vez de um telhado, imagens com a Senhora ao centro resplandecendo num diadema de estrelas de prata. Que o não precisava para resplandecer por si só! Como se não precisava também da imagem da Senhora para se perceber bem que Ela está ali, que Ele está ali com Ela. Seria do vento? Ajoelhei-me também, fechei os olhos numa reverência, deixei-me arrebatar de mim próprio, decidido a pegar nos pedaços soltos de mim próprio – quem de nós não tem pedaços soltos? Eu não fora ali para peregrinar. Fora para um jantar de carne assada, vitela e rodeão, batatas fritas e vinho, nos restaurantes, a convite. Não levava na ideia nenhuma pedinchice, nem ideia de promessa, nem gratidão estampada num ex-voto. Vim de lá jantado, pedido feito, promessa incerta e gratidão por lá ter estado. Segredos à vista da eternidade, naquela hora sublime de inesperado encontro.
E agora aqui ainda a pele se me põe de galinha, ao lembrar o instante, recordado no dia seguinte ao descer de Rossas pelo IP4, escrito mais tarde na agenda numa sala do IPB enquanto umas alunas tentavam acertar respostas de um exame, aqui transcrito para o computador no preciso dia em que fui interpelado por descurar o blog. Em qualquer sítio e em qualquer caso a reler e a escrever por causa de uma Senhora que, no alto de uma serra ou num penhasco de mar ou nas notas de um autorádio vibrando Bach, nos surpreende como se fosse um flash disparado da eternidade.