terça-feira, 17 de agosto de 2010

Um livro notável

De vez em quando aparecem obras que ficam para a posteridade como marcos na paisagem do mundo editorial. Isso é tanto mais válido quanto mais exíguo for o universo bibliográfico do assunto versado ou quanto mais elevado o nível da obra produzida. Aconteceu isso com a Ilustração Trasmontana (assim mesmo: trasmontana sem “n”, aliás como deve ser – não se escreve Trans-os-Montes mas Trás-os-Montes), para sempre uma autêntica jóia da nossa bibliografia, há cerca de cem anos, e acontece agora o mesmo com o livro Bragança Marca a História, a História Marca Bragança. Um livro notável.

Claro que houve outros, cada um deles uma obra do seu tempo, alguns de justa reputação, mas estes dois, que refiro em particular, tiveram e têm o condão de ficar como obras de referência. Daquelas que fazem boa figura na estante e que hão-de tornar-se tema de conversa e fonte de outros saberes por muito tempo.

Evidentemente que seria e é possível fazer uma leitura crítica do mesmo, tal é-o sempre nisto como em tudo, mas hoje não estou aqui para apontar pormenores ou omissões que só os não comete quem nunca nada escreve ou nunca nada faz. Estou aqui para dar um louvor. Vários louvores. Que bem podem começar pelo primeiro capítulo, o da Geografia, excelentemente explicada por Maria do Loreto e Tomás de Figueiredo, e terminar nas páginas finais de Armando Fernandes e de Luiz Filipe Pinheiro de Campos. Nunca houve sobre Bragança uma obra de síntese tão bem escrita, documentada e impressa. Praticamente, todos os aspectos em que se poderiam ter perspectivas sobre a urbe foram cobertos pelos sete capítulos em que se estrutura a obra. Recheadíssimos de ilustrações bem escolhidas, com um grafismo de Armando Alves que revela mestria na forma como soube compaginar diferentes soluções para diferentes problemas de formatação de texto, de variação de conteúdos e, até, de combinação cromática. Com o acréscimo de valor pelo facto de algumas das imagens que surgem nestas páginas serem autênticas revelações, documentos praticamente inéditos e desconhecidos para a maioria do público.

Obra de síntese que, ao mesmo tempo, não deixa de trazer a novidade no esclarecimento histórico, rigor na documentação de suporte e uma nova abordagem à ciência feita sobre a cidade, sobre as muitas cidades de Bragança que se sobrepuseram ao longo dos séculos e ao sabor das vicissitudes e mentalidades. Por isso, este livro é um romper com tabus que pontificaram durante anos. É cheio de surpresas para o leitor em geral e saborosíssimo para os que quiserem sentir o gosto de ler e ouvir muitas outras histórias sobre as mesmíssimas pedras, ruas e ameias de que desde sempre lhes falaram – mas de outro modo.

Este foi o livro de Bragança-cidade aos 545 anos. Haverá outro para os 550 anos? Para já, sabemos que este Bragança Marca a História, a História Marca Bragança ficará para a história de que faz parte como um dos seus protagonistas: um livro notável. Parabéns.

Olá, Clara!

(a propósito de um livro da Clara Ferreira Alves)

Desculpe, eu sei que não se mexe numa carteira de senhora mas não resisti. Fui ali à Praça da Sé, à Rosa d’Ouro, e pedi que ma mandassem vir da D.Quixote. Veio numa segunda de manhã e fui, já com ela na mão, beber um café ao Flórida, a essa hora mais desempoeirado e cheio de sol. Corri o zip. Foi surpreendente.

Saíram de lá tantos conhecidos como quem passa numa porta de teatro em dia de estreia: Papini logo sôfrego a citar o Gog, Huxley de olhar no horizonte a ver a paisagem, muitos americanos que quase não conheço a declamar textos que apetece agarrar, Borges, ah, o meu Borges a escolher aquela palavra justa que a perfura até à sina, confesso que nem dei pelo café nem pelo resto da manhã nem sei o que se passou a seguir: a mesa ficou repleta, eu confuso, aflito de ter que arrumar tudo outra vez e não saber como iria caber.

É sempre assim com uma carteira de senhora: sai de lá muito mais do que o inesperado. Mas quando lhe peguei, fecho aberto para caberem primeiro os mais volumosos, os americanos, vi que, lá no fundo, estavam ainda dois objectos: um espelhinho biface de aumento de um lado e liso do outro ( tinha, até, uma dedada de blush de um dedo fino e leve – o seu, de certeza! ) e uma pluma.

O espelho aterrou-me: não se via ninguém! Ninguém! Olhei de um lado, do outro, nada! Até olhei para mim e à volta a ver se estava tudo bem. Estava, havia pessoas entretidas noutras mesas, nem reparavam na confusão que ia na minha. Pus logo o espelho lá dentro, temeroso de algum sortilégio mais estranho. Li uma vez algures que esses espelhos são perigosíssimos.

Peguei então na pluma, só faltava a pluma. Era uma pluma antiga com cheiro de antiquário e meticulosamente aparada. Roidita na ponta, não contava! Pensei então que, tanto que escreve, não deve ter por aqui só uma pluma, deve haver muitas mais! Mas não. Tirei o espelhinho outra vez, quase voltei o forro de seda… mas mais nada. Foi, então, que reparei que o espelho só reflectia a pluma. Nada mais. Era um espelho só de plumas! Aliás, só daquela pluma! E de repente ocorreu-me que era isso! O capricho daquela pluma era aquele! Ter um espelho só para si... que assim só reflectia a solidão. Só. Nada mais. E ao por de novo tudo dentro da carteira, fi-lo já um pouco triste porque notei então com clareza que todos aqueles objectos estavam sós, cada um por si, capítulo a capítulo, página a página.

Desculpe, Clara, ter mexido numa carteira de senhora. E não leve a mal que lhe diga que, num dia de pluma solitária pelo Chiado onde andamos no meio de tantas e tão diferentes pessoas, a mergulhe num tinteiro, nos Italianos ou na Encarnação, cuja cor, então, vista ao espelho, deixa de estar sozinha e passa para o outro lado, o lado do arco-íris onde até um capricho de uma pluma e de um espelho é uma realidade absoluta.

Olá, Clara! Que bom ter visto a sua carteira!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“Dialectos de ternura”

Os sentimentos foram sempre – serão sempre – o âmago do coração. Pode haver Ovídio, Dante, Shakespeare, tantos outros, mas seremos sempre nós, os portugueses, os heróis dos sentimentos – e as suas presas!

Com Camões, com todos os outros até aos Damásio, até cada um de nós. Por causa de muitas coisas, por causa do fado, por causa dos Da Weasel! Por causa dos sentimentos.

Um dos sentimentos, que não o único, em que somos um povo perito, é o do amor (pretensão minha, começar logo pelo maior e melhor de todos – mas haveria de começar por algum outro?).

Ora, uma das expressões do amor é a ternura. A ternura faz-nos falta. Imensa falta. Sem ela, o amor é um quadro sem nada, um quadro de todos os possíveis, desde o ciúme ao ódio. Com ternura, o quadro tem tudo de bom escrito nele! Tudo.

Não vou aqui dizer de que amor falo nem de que ternura. Isso fica para quem ler. Para a circunstância de cada um, a situação e capacidade de cada um. Mas há que trazer a ternura ao nosso dia-a-dia. Ternura de gestos, ternura de conversas, ternura de atitudes, ternura de palavras e de demonstração para com o outro ou os outros.

A ternura não é só para os amantes, para os que dormem na mesma cama ou para os têm o mesmo tecto. A ternura deve ser para todos.

A ternura deve ser indispensável no nosso dia-a-dia. Ternura entre dois seres, entre muitos seres, entre humanos, entre todos os que tenham coração a pulsar. Porque a ternura é o alimento dos afectos. E os afectos são o alimento do amor. Que é o maior dos sentimentos. E devemos amar-nos uns aos outros.

Por isso, dialectos de ternura é e quer dizer mais do que o que diz uma simples música (“simples música” é uma forma de dizer, é claro que não é uma simples música…) em que um par de apaixonados se possam rever. É uma música em que Portugal se pode ver ao espelho!

Portugal? Talvez não. Talvez cada um de nós (cada um é mais do que Portugal), na fase da vida em que estamos, a olhar para si e para nós e a vermos que, de toda a nossa vida, aquilo que fica de perdurável, para lá do fado de Portugal – que já de si é eterno! – são os momentos de ternura que, algum dia, pudemos dedicar a alguém ou alguém nos dedicou a nós!

No fundo, e do que um dia restar de nós, da nossa vida tão fugaz e apressada, hão-de apenas ficar, como mais memoráveis, todos os dialectos de ternura que, por muito insignificantes que nos pudessem parecer ao exprimi-los, deles fomos capazes nos brevíssimos momentos de cada um dos nossos dias.

Não tenhamos, por isso, medo de dedicar um pedacinho de cada um dos nossos dias aos dialectos de ternura de que alguém, um dia, se lembrará que lhe demos!

ANTES QUE ACABE SÓ EM PIZZA

No Verão passado esteve em nossa casa, em Latães, a Rosalba Facchinetti, escritora, em trânsito numa ida e volta entre S. Paulo, no Brasil, e Angellara, lugarejo no Cilento, Salerno, em Itália. Esta rota do Brasil à Itália e que passa pela Serra de Ala, aqui em Trás-os-Montes, enche-nos a casa, periodicamente, de exotismo exuberante – a Rosalba fala imenso sobre coisas raras e interessantes – e apetecido encanto. Deixou-nos um livro seu, intemporal e cheio de carácter, “um pouco da minha alma ítalo/brasileira”, cujo título é “Antes que acabe (só) em pizza”. Em italiano: Sàngue non diventa àcqua mai!

(“acabar em pizza” é uma forma de dizer quase como “ficar em águas de bacalhau”. Digo quase porque as pizzas podem-se comer enquanto que ninguém pensa beber as águas de bacalhau...)

A Rosalba foi levada para S.Paulo com três anos e teve uma vida de “paulistana e 4 filhos ítalo-brasileiros”. Diz que entrou para a escola e nunca mais saiu até hoje, sempre escrevendo, do jornalismo à pedagogia, à ética, à filosofia e a títulos que aguçam a curiosidade como sejam “Palavra de Ordem”, “Carol & Daniel”, “Com os dois pés no mesmo sapato” e “Amor e saco”. “Mas a minha ligação com o Cilento, minha origem, é mais forte do que a distância geográfica e perdura no tempo. Eu não a perdi, faz parte do meu DNA, é memória atávica, veio no leite materno, na cantiga de ninar, nas histórias contadas nas festas, nas reuniões familiares… e quero passá-la adiante”.

Este passado não é importante por ser aquele paraíso perdido cujas amarguras os anos fizeram esquecer e cuja felicidade as recordações teimam em dourar. Neste caso esse passado existiu sem essas reminiscências, foi um passado anterior aos seus três anos de idade. E não deixa de ser importante, tão importante que a Rosalba quer evitar que ele não ‘acabe só em pizza’. Porque não é só o passado: é toda a cultura que vai com a bagagem e com a alma de quem emigra.

Os “imigrantes italianos vindos do sul da Itália para S.Paulo, em grande número da região do Cilento, não trouxeram apenas a receita da pizza em sua bagagem. Trouxeram também o molho e as ‘brasciolla’ para servir nas cantinas, o falar alto e gritado, a música, o amor à família, a vontade de vencer e o gosto de fazer qualquer reunião se tornar uma grande festa. Trouxeram a sua história para misturá-la com a daqui e tentar criar uma nova. Essa mistura é tão saborosa quanto a pizza”.

Conservar a memória da identidade anterior é uma forma de se sobreviver no tempo, de manter o carácter e celebrar o êxito. Testemunhar a experiência de uma vida. Ler este livro, infelizmente não editado em Portugal mas acessível aos nossos leitores que estão no Brasil, é ler um exemplo para trasmontanos que hoje estão por todo o globo, para celebrarem a sua cultura de origem. Antes que essa cultura fique diluída completamente tanto na vaga moderna do país que os acolhe como na transformação deste nosso torrão que lhe deu origem.

UM HOMEM E AMIGO

Um dia, no rescaldo do Verão Quente de 75, encontrava-me sozinho na Praça de Moncorvo a fazer um discurso político. Um grupo ouvia o que eu proclamava das escadas de granito, megafone na mão, entusiasmado pelos comentários e com a força que temos quando os nossos 16-17 anos (nem sequer votava ainda!) nos mantêm na inconsciência do que nos pode acontecer!


Passada meia hora e entrado no período de perguntas e respostas, vejo um VW Brasília dar duas ou três voltas à Praça e o condutor de cara surpreendida, sorriso franco. Saiu da viatura e ficou por ali, à espera que eu acabasse, braços cruzados, falando com este e aquele, sorriso escancarado e a acenar com a cabeça num gesto de “este tipo faz cada uma!”. Era o Dr. José Manuel Ruano, que conhecia de Macedo, onde conversávamos muitas vezes numa tertúlia de que eu era o júnior e que se juntava na mesa do Dr. João Pessoa Trigo, no restaurante Montemel.

- Você está tonto de todo! Então vem para aqui fazer um comício sozinho?

- Que é que tem?

- Que é que tem?! Tem que ainda o zurzem, estes comunas todos!

- Comunas?

- Para estarem aqui a meio da tarde e sem trabalhar, claro que são comunas! Vá, venha daí, vamos ali beber qualquer coisa!

A amizade que, durante anos, mantivemos, foi daquelas que quanto mais o tempo passa mais duram. Sofreu embates que a fortaleceram e sobreviveu ao longo de três décadas mesmo aos períodos de ausência ou de afastamento. Quando nos encontrávamos, era como se tivéssemos estado na véspera, apesar de meses terem passado.

Inteligente, culto, informado e atento, era dotado de uma força que sabia usar e incutir aos companheiros. Claro que tinha defeitos como todos nós mas as suas qualidades de liderança fizeram com que fosse eleito para cargos que desempenhou com reconhecidas vantagens para a lavoura em geral e para a trasmontana em particular – apesar dos costumeiros desfazedores de café, sempre mais atentos ao que é negativo e menos esclarecidos para elogiar o mérito.

Apesar dos que vaticinavam que o seu mandato de governador civil iria ser uma lástima, o certo é que ao fim do mesmo lhe choveram elogios quer dos seus apoiantes quer dos seus anteriores detractores. Estava precisamente no exercício deste cargo quando certa vez fui vítima de uma deslealdade absoluta de um conhecido comum. Custou-me imenso engolir em seco a desfaçatez com que me tinha sido urdida uma trama. Mandou-me chamar a Bragança, que lhe tinham chegado ecos. Conversou comigo longamente e fiquei a conhecer-lhe uma faceta madura: a do conhecedor do comportamento humano, da capacidade de antecipar as atitudes dos outros para com as suas próprias atitudes. Foi preciosa, essa conversa. Depois disso, estivemos ainda muitas vezes mas esse dia foi marcante, para mim. E deu-me uma mão que me ajudou a subir um degrau quando eu precisava desesperadamente. Vários tentaram, por diversas vezes, quebrar a lealdade que mantivemos entre nós. Nunca o conseguiram.

Zé Manuel Ruano, obrigado por ter sido sempre meu amigo!

ARTIGOS DIVERSOS

Reparei que tenho em arquivo umas centenas de artigos que foram sendo publicados nos últimos anos em diversos órgãos de comunicação. Acontece que muitos deles não estão on-line pela simples razão de que alguns jornais ainda não tinham, na altura, versões on-line das suas edições ou ainda pelo facto de que outros não colocam na net os artigos de opinião. Decidi-me, por isso, e a partir de hoje, publicar neste blogue alguns, bastantes, desses artigos, dando-lhes uma ou outra revisão. Impossível colocar a referência de onde foram publicados porque isso obrigar-me-ia a um trabalho fatigante de folhear jornais ou de classificar e-mails enviados e não tenho tempo para tanto!

domingo, 20 de junho de 2010

Externato Trindade Coelho - Memórias e Outras Histórias

Os livros de memórias são dos géneros mais interessantes de literatura.


Na realidade, em todos os livros está sempre algo da memória do seu autor mas nos que são de memórias, mais ainda do que num diário, está a perspectiva de quem escreve, focada precisamente num tempo que a passagem dos anos não apaga, flashs esclarecidos de episódios e vivências, a que a posteridade vem dar uma coesão especial. De outro modo ficaria deturpada na informação que o autor quer deixar.

Nos livros de memórias não há só a intenção de registar factos, emoções, datas: há o sabor de os recordar e o saber de os transmitir.

O interesse dos livros de memórias é diferente para quem os escreve e para quem os lê. Quem os escreve tem a preocupação de neles verter a sua intenção; quem os lê rebusca neles com a sua curiosidade. E muitas vezes ambos misturam a visão de quem escreve, a visão e a memória do autor e do leitor, surpreendido pela perspectiva alheia sobre acontecimentos de conhecimento comum. E esta diferença de paralaxe, este autêntico jogo dos possíveis, tem o surpreendente de dar uma dimensão diferente, uma dimensão fecunda que torna atraente de forma invulgar este tipo de literatura. Aliás, reside no desfocar da nossa perspectiva face às realidades vividas por outros, o âmago do atractivo desta literatura, como num perfume reside no ressoar de uma molécula de benzeno a capacidade de impressionar o olfacto. Este palpitar, fruto da dinâmica que se forma por causa de uma mesma memória ser evocada de pontos de vista diferentes, este desfasamento entre o outro e nós, é que cria o lado tão emotivo desta literatura. E quando acabamos um capítulo, um parágrafo ou uma simples passagem em que se nos descobre uma outra forma de ver ou de recordar um facto, logo no nosso espírito surge uma dinâmica de pensamento que nos solta um inspirado suspiro, um vislumbre inédito sobre o tema, uma novidade que, de alguma forma, nos traz felicidade.

São sempre felizes, os livros de memórias, em preencherem o que nos vai cá dentro, mesmo os mais tristes que nos suscitem tristezas, os mais dramáticos que nos ponham contritos, os mais violentos que nos obriguem a fechar algumas páginas ilegíveis ou medonhas. São uma superior forma de felicidade porque à partida não são uma felicidade solitária: à partida são uma forma de felicidade partilhada. Mesmo os que se desfaçam – e nos desfaçam – em lágrimas, essas formas tão líquidas que temos para exprimir momentos extremos.

Este livro do Dr. Garcia, em que são recordados momentos marcantes da sua vida – e em que está muito de uma faceta militante de um homem que soube dosear o seu conformismo e inconformismo ao longo da vida, é um livro com passagens notáveis duma simplicidade literária pura, densamente preenchida por testemunhos cheios de significado. Mas é, também, um livro que, em muitas passagens, é um testamento moral. Não tem frases inúteis. Cada uma delas tem um propósito subjacente: o de ficar para a posteridade como uma marca tão indelével quanto possível. Para quem o quiser ler? Sim e, sobretudo, para os netos, que o autor sente manifestamente capazes de, combinando genes e a interpretação do seu testemunho escrito, se libertarem daquilo que o meu amigo Dr. Garcia não fez ao longo da vida: fugir ao destino. Se se atrevesse a um recomeço, o autor forjá-lo-ia…

Das páginas do livro fica um remorso que se lê mais na luz dos momentos do que na letra das frases: o remorso de não ter querido, ou podido, ou ambas as coisas, fugir ao destino, obrigá-lo a um outro modo de diferença do que foi a sua vida vivida (vida vivida, é mesmo isto).

O Dr. Garcia foi meu professor em 72/73 e 73/74. Aprendi muito com ele, então. Não apenas a matéria das disciplinas, de que ainda faço uma vaga ideia, mas um testemunho de presença, de que ainda tenho a imagem nítida. Estou a vê-lo entrar na sala de aula, sempre de blazer com botões (às vezes o blazer tinha cotoveleiras) segurando uma pasta preta, uma vasta pasta preta, pousá-la na secretária, abri-la, tirar livros e folhas. Depois de nos cumprimentar, olhava pela janela que dava para a rua (a rua Almeida Pessanha, a “rua dos talhos” como então se dizia). Ficava um breve instante sério e pensativo após o que, fitando-nos com um ar vivo, nos dizia:

- Então, que tal?

E começava uma conversa mais ou menos informal, mais ou menos divertida, com histórias e opiniões, com mensagens mais explícitas ou mais implícitas. O tempo ia passando. A certa altura entrava-se na matéria. Pegava no giz e fazia-nos uma demonstração de uma fórmula ou explicava, tracejando números e letras, uma resolução de uma equação.

Durante muitos anos o meu rasto não mais se cruzou com ele, embrulhados ambos em vidas diferentes, entrevistando-o esporadicamente num passeio ou num atravessar de ruas, sempre muito fugaz. Mas eu sabia, mera intuição, que me reservaria, nos reservaria, mais esta lição. Uma lição de vida.

Bem sei que este livro de memórias e outras histórias está, também, eivado de passagens de proclamação marxista, ideologia muito diferente do meu modo de pensar, e eu não venho aqui questionar esse marxismo professo pelo autor. Mas tenho a perplexidade de reler essas proclamações marxistas de um modo estranho: é que não estão ali nas frases ao serviço do mesmo marxismo que as terá inspirado mas de uma forma muito antiga de humanismo. De um humanismo não católico, segundo o autor, mas de um humanismo de quem tem fé em Deus, tem horror à injustiça e à iniquidade deste mundo, das pessoas deste mundo, um respeito escrupuloso pela dignidade das pessoas, sensibilidade perante o belo, a música, a arte. Indignação profunda perante a pusilaminidade e mediocridade de carácter, a falta de companheirismo, a falta de solidariedade social. E quer que todos partilhemos desse seu humanismo. E mesmo se há passagens em que coloca nas palavras uma mais veemente intenção subversiva, a da via armada de uma revolução, a de querer correr a tiro uma certa clique, tal não é um imperativo bélico de um atirador a querer liquidar pessoas: é mais uma vontade (um remorso?) de que não haja mais uma oportunidade desperdiçada, como terá sido outra ou outras, das de mudar o mundo. Há sempre uma idade para se querer mudar o mundo. Felizmente o Dr. Garcia não a perdeu: deixa um incitamento a que outros o façam e de tal sejam capazes.

Todo o tom do livro é o de um homem tranquilo que se indigna perante o lado negativo das pessoas. Todo o tom do livro é o de um homem que agora, ao fim destes anos, sente um sobressalto de intranquilidade pelas mesmíssimas razões. Só que estas razões são as mesmas que levam qualquer homem de boa vontade a sentir-se intranquilo e indignado. Não só aos marxistas e, até, sobretudo aos não-marxistas. Aliás, apesar das proclamações marxistas, a história demonstra que em matéria de sensibilidade social não é o marxismo o bom exemplo a seguir.

De certo modo, este livro é uma declaração de guerra e um pedido de armistício. Com quem? O autor sabe-o e diz-no-lo: com todos aqueles de quem não guarda ressentimentos. Coisa elevada e de uma profundidade que só raros conseguem. Tal como só raros escrevem um livro assim.

Defeito do livro: curto.