sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A contracção do tempo

A Mariana e eu descobrimos um sítio em que duas horas se transformam em dez minutos. Pelo condão especial de uma pessoa que resolveu partilhar, pensamos, uma das paixões e uma busca da sua vida.
Só o facto de se entrar no edifício é já uma iniciação: passar a porta de entrada é um recuo no tempo (nem é preciso grande imaginação, basta sentir que muda o som e muda a luz, duas circunstâncias imateriais que conseguem modular a velocidade do nosso dia-a-dia). Depois vem um breve, brevíssimo gesto burocrático de rabiscar uma cruz num papel, a dizer que estamos presentes (Deus queira que a nossa entrada no Céu seja assim só com a demora de um instante!), a que se segue percorrer um rés-do-chão abobadado no fim do qual há uma escada – e que escada! – de dois lanços, suave nos degraus de granito que abafa sons, belíssima na simplicidade da concepção, que se sobe com a certeza de estarmos a cruzar com milhares de pessoas que, antes de nós, desde há mais de dois séculos por ela passaram com as suas toillettes de cerimónia em ocasiões de festa, os seus trajes de súplica em dias de audiência, as suas fardas de ofício nas horas de despacho, a sua intenção íntima de remediar urgências ou tentar encontrar lenitivos para aflições. As escadas estão, assim, cheias de significado e subi-las é caminhar, degrau a degrau, para uma porta que nos aguarda como se fosse mais uma porta mágica, vazia, cheia de um sortilégio inesperado: para lá dela temos um encontro marcado com duas horas que roçam o absoluto. Para lá dela está o salão do auditório, paredes brancas para imagens de todos os possíveis, cadeiras onde nos sentámos, no primeiro dia, sem uma expectativa definida: o que aconteceu mal dá para se descrever porque as duas horas que ali estivemos, passadas com uma brevidade insuspeita, rapidamente nos puseram numa experiência de arrebatamento, que roça a metafísica. Trata-se simplesmente de música, trata-se simplesmente de uma iniciação à história da música, trata-se apenas e só de revisitar tantos lugares comuns aprendidos e ouvidos ao longo da vida. Ou não se trata nada disso! A experiência daquelas duas horas, que já duram há umas semanas, às quintas-feiras, no Museu de Lamego, tem sido inesquecível, como são sempre inesquecíveis todos os transes da nossa vida em que parece, por momentos, que essa mesma vida resolveu nos abrir um parêntesis. Onde estivemos naquelas duas horas enquanto um powerpoint desdobra imagens, duas colunas de som nos dão um banho de decibéis, dois candelabros iluminam sobre a mesa como se fossem um Aleph de Borges, a voz de José Pessoa nos diz coisas e mais coisas, umas atrás das outras, vociferadas com intensidade como se as pintasse a óleo, no ar, numa tela que ele vê nítida e onde se esforça – e consegue! - por misturar os tons densos das cores que pintam a sua busca da verdade (que ele anda à busca da verdade desde há muito e tem dela já muito mais que o pressentimento, nota-se quando se emociona com a busca da verdade com que esbarra nas músicas, nas canções, nos compositores, na que todos eles empreenderam antes dele), onde estivemos? Onde estivemos? A ouvir José Pessoa? Hm… Não pode ser só! Mas é por causa de José Pessoa. Aquelas duas horas são muito mais do que isso. Ouvimos um José Pessoa que se transcende, que ali naquele leme é mais do que ele. Começámos com trovoadas, com água a correr (De um rio? De um útero? De um choro de desesperança? De uma chuva que sempre choveu assim?), com os sons dos objectos simples, dos objectos fabricados, dos instrumentos primitivos, dos instrumentos evoluídos, da voz humana, do génio humano que sempre buscou na música a forma superlativa de comunicar consigo, de comunicar com o tempo, de comunicar com Deus. Daí surgiu um som que permanece como um baixo contínuo ou como uma toada e que estabelece um cordão de moléculas vibrantes (moléculas?! Qualquer coisa, enfim, eu nada ou quase percebo disto e por isso me inscrevi neste curso…) desde um pastor ou pré-histórico com a sua flauta de Pã feita de osso, à Hildegarda (a da música escarlate), aos trovadores, a todos. Que enche o universo como o Messias, o mundo dos prodígios como as pautas de Mozart, a capacidade infinita do big bang da esperança da liberdade com a Nona e os versos de Schiller. Aquelas duas horas, que passam como dez minutos, têm sido duas horas de uma profunda experiência. Não há ali só música. Ou talvez seja só música. Talvez um dia descubramos que, afinal, a Eternidade seja feita de música. Porque só a Eternidade, onde não contam minutos, nem horas, nem anos, pode ter o sortilégio de fazer com que o tempo de duas horas seja, afinal, o tempo de dez minutos. Só um tempo medido na escala da Eternidade pode explicar os compassos que nos têm arrebatado para algures de dentro daquelas quatro paredes. Que bênção especial terão ali derramado os Bispos de Lamego do século XVIII? É que dentro daquela sala o tempo contrai-se, às quintas-feiras.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O homem e a maçã

O homem à beira da estrada, capacete de obras na cabeça e sinal de stop entalado sob o braço, estafeta no meio da poeira e da confusão do tráfego, sol muito quente, desviou por momentos a atenção dos grandes camiões da empreitada que atravessavam à nossa frente, carregados e ruidosos, e voltou-se, não para nós, que aguardávamos que tirasse o bendito sinal e no-lo mostrasse pela outra face, mas para uma maçã que segurava com a mão esquerda e que, com a direita, partia com uma navalha. Observava atentamente o pomo que dividia em quartos, descascados com perícia, e meteu o primeiro na boca, mastigando-o com manifesta vontade e prazer. Calor, estava de vidros fechados pelo ruído e pela terra levantada pelos grandes pneus que a atiravam para o ar, olhos semicerrados pela luz demasiada a reflectir-se nos milhares de partículas de mica e quartzo que voavam. Inexplicavelmente, senti-me a cheirar a maçã, um cheiro doce e suave com travo acre a raineta. Que maçã tão mágica seria aquela? Seria a irrecusável que a Eva ofereceu a Adão, engasgado, reluzente no seu fatal destino? Seria a fadada e venenosa, do cesto da Bruxa Malvada que a entregou, irresistível, à Branca de Neve, e a adormeceu num sono de maravilha? Seria a de Newton, da revelação e conclusão de Newton, atraída para o chão por uma causa invisível? Seria a de Guilherme Tell, sobre a cabeça do filho, a captar-lhe o virotão da besta? Deviam ser todas, para cheirar assim! Como cheirava bem dentro do carro! E vi-me a alinhá-las, há tantos anos!, nas prateleiras do fruteiro, faces rosadas voltadas para nós, depois de parafinadas, prontas a enfrentar os meses de espera até serem comidas à mesa. Dúzias de maçãs! As filas das golden, amarelas e douradas, grandes, sensação táctil de dar logo vontade de trincar! As starking, vermelhas e orgulhosas, farinhentas na boca, boas para enfeitar o centro de mesa e ser comidas com queijo e marmelada. As bravo-de-esmolfe, muito iguais, algo problemáticas mas capazes de espalhar essências por todo o sítio. As rainetas, pequenas e grandes, duras, ácidas, tão perfumadas!, aroma de inspirar e sentir o tempo a entrar com o ar, o tempo de as colher na macieira desgrenhada de ramos carregados de frutos quase a partir, pendentes para o chão, sobre a água dum regato. “Dá cá o cambito para puxar aquele ramo ali que não lhe chego!”. E as cestas de asa no braço, os cestos maiores e as canastras iam-se enchendo no meio de graças e gargalhadas com aqueles frutos de fim de época, de fim de estação, que davam à casa um aroma aconchegado de tudo estar no seu lugar. Com uma mão conhecedora, a Tina ou a Ticha entalavam, entre a cinza e o rebordo da braseira, uma maçã que cobriam com uma prata. A sala rescendia! E todo esse cheiro, vindo não sabia de onde, se misturava com o verde das folhas, o sabor dos frutos, o ar que parecia desanuviar o ambiente do carro com esse encanto vindo do passado. Estava quase a experimentar a maçã assada, casca tostada e sabor melado a abrir-se de surpresas, quando uma buzinadela fez desaparecer o encanto. Os camiões tinham deixado de se atravessar à nossa frente, o homem estendia a mão segurando o sinal com o verde voltado para nós e agitava-o a mandar seguir, capacete entalado sob o braço esquerdo, sorriso. Tinha acabado a maçã. O sol estava intenso, o pó pairava, nós seguimos.

domingo, 29 de agosto de 2010

Cândida Florinda Ferreira

Prestou provas perante a Universidade de Lisboa «a primeira senhora portuguesa que tentava obter as insígnias doutorais», como então proferiu o presidente do júri, de 13 a 16 de Janeiro de 1937. Foi brilhante, verdadeiramente brilhante, e os jornais, que noticiavam diariamente as sucessivas sessões do acto académico, iam tecendo um relato elogioso. Contudo, os examinadores reprovaram-na. Seria interessante investigar os porquês desta circunstância. Talvez um dia. Mas o que nos traz aqui hoje é determo-nos um pouco sobre quem era esta mulher.


Estamos a viver naquele que vai sendo conhecido como “o século das mulheres”. Um pouco por todo o lado, há cada vez mais protagonismo feminino. Em todos os sectores. Seria injusto não lembrar, por isso mesmo, aquelas que foram pioneiras. Aquelas que, de algum modo, se foram da lei da morte libertando muito tempo antes deste tempo que é o nosso.

Evocamos hoje, especialmente, uma das mais inteligentes e cultas pessoas que nasceu no nosso concelho e que foi uma figura nacional. De facto, Cândida Florinda Ferreira foi uma mulher notável, com uma capacidade intelectual acima da média e com qualidades humanas que, para os que a conheceram de perto, dela fizeram uma senhora inesquecível.

A sua origem foi muito humilde. Nasceu em Talhinhas, concelho de Macedo de Cavaleiros, pelas cinco horas do dia 26 de Junho de 1893, tendo sido baptizada na igreja desta aldeia a 9 de Julho pelo Padre Manuel António Teiga. Era filha de António Augusto, de Talhinhas, e de Perpétua da Assunção, de Izeda. Os seus pais e avós eram jeireiros. O apelido herdou-o de seu avô materno, Vicente Ferreira.

Descoberta a sua argúcia e capacidade intelectual, foi mandada estudar aos dez anos para um colégio em Lisboa e depois, aos quinze, noutro colégio no Porto. Nestes colégios não aprendeu só a ler, escrever e a contar mas também a adquirir uma formação de sólidas qualidades morais e éticas que a plasmaram para toda a vida. Com dezasseis anos fez exame de admissão em Bragança para a Escola Normal de habilitação ao Magistério Primário, tornando-se professora em 1912 com dezoito valores! Exerceu o magistério em Talhas, em Caçarelhos (três anos) e em Bragança onde também foi professora interina na Escola de Habilitação ao magistério primário e, posteriormente, na Primária Superior. Durante este período fez, ao mesmo tempo, os exames do curso liceal em Vila Real e Bragança e ainda o da Escola Industrial!

Em 1927 foi frequentar a Universidade de Lisboa mas mantendo-se a trabalhar, regendo uma escola primária. A sua tenacidade, força de vontade e capacidade intelectual eram notáveis. Fazia tudo com brilho e distinção e todos os anos, como professora, apresentava um elevado número de alunos bem preparados a exame. A sua folha de serviços foi exemplar.

No fim desta década de vinte alargou consideravelmente os seus horizontes, influenciada pelo espírito universitário. Fez um curso de Literatura Italiana e publicou os seus primeiros trabalhos de investigação: A guerra da sucessão no distrito de Bragança. Em Agosto de 1930 obteve uma bolsa de estudo concedida por Itália (a única nesse ano), que lhe permitiu frequentar a Universidade de Perugia. Simultaneamente foi agente do governo português para o qual fez um relatório sobre o estudo e o ensino primário em Itália. Esta actividade não a fez descurar os seus outros pontos de interesse e continuou a investigar e a publicar uma obra com uma profusão e regularidade notáveis: Talhinhas e as guerrilhas liberais – Notícias monográficas inéditas; A Mulher na Família e na Sociedade Contemporânea; Carrazeda de Ansiães – Notas monográficas; A função educadora da História.

Para o público em geral e, especialmente, para as mulheres, de quem sentia o pulsar social de uma época que foi de charneira (e em que, no estrangeiro, que conheceu bem porque também frequentou a Sorbonne de Paris em Literatura, brotavam novas tendências), escreveu numerosas páginas cheias de sabedoria: A mulher portuguesa contemporânea – artigos publicados na revista Modas e Bordados, Lisboa, 1935; A Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida Portugal; Da necessidade do conhecimento da História e da Literatura pátrias; Castros e castelos – A mulher nesses centros guerreiros; A guerra dos cem anos – Seus reflexos em Portugal.

Escreveu também um livro de contos: Os sete pecados mortais, que publicou em 1936.

Depois do seu percalço grave na Universidade de Lisboa, foi directora e proprietária do Colégio D. Teresa Afonso, em Algés, a partir de 1941. Dava também aulas em casa, tendo sido explicadora de uma das pupilas de Salazar (e este, como reconhecimento, ofereceu-lhe uma colecção das Obras Completas do Padre António Vieira).

Sobre o chumbo no doutoramento, o Abade de Baçal escreveu: seria por “não atingir a bitola? por antifeminismo? Por a ciência oficial andar sempre atrasada? Não sei, e somente que Nicolau Tolentino foi reprovado num concurso de literatura; Pasteur num de química; Galois num de matemática, e tantos outros que espargiram glória bastante para imortalizar a ciência oficial de seus examinadores condenados, sem a coragem de tais reprovações, ao olvido da História”.

Nunca descurou o seu contacto com a terra natal, onde viria a protagonizar a construção do edifício da escola primária, movendo para isso as influências políticas necessárias e estando na sua inauguração em 28 de Julho de 1968. A fotografia aqui reproduzida que foi tirada neste evento (a Doutora Cândida Florinda Ferreira é a sétima a contar da direita de quem vê a foto) e resume bastante bem o seu círculo de amizades mantidas em Macedo de Cavaleiros, onde a família Brás conserva a sua memória ainda hoje.

Viveu na Rua de S. Marçal, ao Rato, tendo aqui morrido, na freguesia de S. Mamede, em Lisboa, em 8 de Março de 1978.

Ao longo da vida de trabalho intenso e de publicação de trabalhos, Cândida Florinda Ferreira encontrou ainda tempo e espaço para a poesia. Para a dar a conhecer usou um pseudónimo:

“Ninguém”.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

GUERRA JUNQUEIRO

Esta casa foi construída em 1883
pelo Juiz José Felizardo Rodrigues de Sousa
e ficou conhecida em Macedo como a
casa das Senhoras Sousa ou
casa das Sousas.
Demolida em 2010. 
Já não existe a casa dos meus bisavós (onde viveram as minhas tias Sousas e onde morreu a minha avó), demolida recentemente para dar lugar a uma rua perpendicular à rua Pereira Charula. Mas existem as histórias do muito que nela ocorreu. Visita relativamente frequente da casa foi Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 1850 – Lisboa, 1923), o poeta, candidato a eleições e deputado pelo círculo de Macedo de Cavaleiros para a legislatura de 1880, amigo do meu bisavô, o juiz Sousa (e também frequentador da casa dos sogros deste, os Morgados de Macedo, também conhecidos como Oliveira).


Uma vez, numa dessas visitas, pediu para ficar com um crucifixo que ainda hoje existe na nossa família. Este gesto pode parecer-nos esquisito, por parte do escritor, célebre por ter sido um denodado autor de obras ímpias, anti-monárquico e republicano entusiasta, tão assazmente anticlerical e anti-religioso que sobre ele escreveu o Abade de Baçal: “Muitas das obras deste brilhante génio estão traduzidas em espanhol, inglês, francês e italiano e há apreciações críticas delas em diversas revistas estrangeiras, da máxima competência, como na Alemanha, França, etc., sendo de lamentar que um talento tão universalmente apreciado se deixasse obscurecer algumas vezes por composições ímpias como as do mais vulgar e nulo candidato à fácil popularidade das turbas ignaras, que vêem simplesmente no desbragamento da adjectivação a característica do génio. Ou será que esta popularidade lhe resulta em parte muito sensível desta mesma razão? Seja como for, Junqueiro é uma glória da terra que o viu nascer.”

Contudo, GJ veio a ficar mais desiludido com a República do que antes estivera com a Monarquia e veio a inflectir a sua posição anti-religiosa.

É um autor cujo percurso de vida – e postura perante a morte – deverá merecer, num ano em que tanto se fala do centenário da República, algumas reflexões. Cuidadosas reflexões.

O interesse de GJ por crucifixos não era apenas o de um coleccionador de antiguidades e de bric-à-brac. Era um interesse pela substância dos crucifixos. O seu coleccionismo era simbólico do verdadeiro coleccionismo que fazia no seu espírito e onde permanentemente, numa ebulição que o aterrou pela vida fora, fermentavam os pensamentos do remorso, da plenitude e da eternidade.

Raul Brandão, nas suas memórias, descreve uma das cenas mais patéticas e importantes em que foi confidente do poeta e pensador. Encontraram-se no Porto (1921), aonde tinha ido expressamente a pedido dele, GJ, e lhe fez confissões terríveis em que lhe declarou ter concluído a sua filosofia, milhares de páginas de revisão do que fora a sua vida. “O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade”. Outra das coisas que desabafou então foi a sua posição relativamente à República e à Monarquia: “Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação. E agora vamos acabar...”.

Já quando se discutira a bandeira nacional, após a implantação da República, GJ tinha feito uma proposta em que, deixando de haver a coroa real, se mantinham as cores azul e branca em vez das verde e vermelha que eram nada mais nada menos do que as do partido republicano e, como tal, sectárias. E propunha o azul e branco como as cores mais abrangentes já que tinham sido as cores nacionais desde D. Afonso Henriques, atravessando toda a nossa história, com os seus momentos de glória e as suas crises.

Hoje já não existe a casa das Sousas, nem Guerra Junqueiro, nem reis reinando em Portugal, nem está em vigor a bandeira azul e branca. Mas existe a possibilidade de se pensar em tudo isto não como uma época passada mas como uma permanente busca da verdade, como o fez Junqueiro ao longo da sua vida.

Guerra Junqueiro, o poeta-génio de Trás-os-Montes, morreu em Lisboa, em 7 de Julho de 1923, ao fim de uma vida em que os seus crucifixos de madeira, marfim e cerâmica se foram espiritualizando. O seu amigo Raul Brandão acompanhou-o até ao fim:

“Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão, com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta”.

Neste ano de comemorações, é interessante revisitar os nomes de algumas das ruas de Macedo na perspectiva de que os mesmos estão vivos para nós, como fonte de inspiração e sabedoria, tal como este de Guerra Junqueiro, um trasmontano inesquecível.

domingo, 22 de agosto de 2010

Insecticida com penas

Desde o princípio do Verão que as vespas começaram a importunar – superchatas! – na varanda. Mas como temos um refúgio dentro de casa desde que há um ano pusemos redes mosquiteiras nas janelas por causa das moscas (aqui não há mosquitos), foi-se atrasando a aplicação de insecticida que de vez em quando, ao serem insuportáveis, se costuma fazer. O resultado foi surpreendente: apareceu por aqui um bando de abelharucos, uns sete ou oito, que todos os dias fazem razias de caça em volta da casa, à espera que elas volitem para longe e para o alto, a partir das frinchas das telhas. São lindíssimos, os abelharucos.

Estão empoleirados em grupo no fio do telefone, mas afastados, grandes bicos tortos para baixo, e de repente levantam voo um após outro, como uma formação de caças de guerra, um voo engraçado como se estivessem a boiar nas ondas, depois da rebentação. Batem as penas duas ou três vezes e depois planam rapidamente com um “krriuut, krriuut, krriuut” que parece fazer eco pelo ar fora, onde espalham flashes de arco-íris com as suas cores, nos abrires de asa.

Durante meses foram os estorninhos a ocupar-se do movimento e dos sons por aqui. Fazem imensos ninhos sob as telhas e ouvem-se nos seus afãs naturais de ciclo reprodutivo. A acrescentar que esgaravatam com as unhas pelos zincos dos ângulos do telhado e fazem esse ruído de estar a esgueirar-se por frinchas e buracos incríveis. O seu vaivém é incessante e deixam a fachada, a antena parabólica, os corrimões das varandas, as cumieiras das janelas e do telhado pintalgados dos seus dejectos em variadíssimos traços. Piam imenso e os pequenitos fazem um ruído de sofreguidão e impaciência quando se chega um dos pais com a comida no bico. Por isso foi estranho quando aqui há dias desapareceram. Assim. Sem deixar bilhete nem dizer uma despedida. Sumiram misteriosamente. Ficou um grande silêncio, apenas quebrado por um pardal ou por alguma folecra. Andam por aqui águias, milhafres e tartaranhões mas não foi isso. Por vezes ainda aparece um ou outro estorninho, escuro de bico amarelo, depois de dias de ausência total. E parece-me vê-los lá ao longe, de vez em quando, forrando a decalque os ramos sem folhas de um castanheiro seco ou no extremo dos cabos de alta-tensão, no poste mais alto. Não sei se serão os mesmos. Não me parecem. Os de cá de casa levavam educação para, pelo menos, dizer boa-tarde.

Que é o que nos fazem sempre as perdizes, sós, acompanhadas ou com filhotes, cumprimentam sempre antes de se afastarem, cheias de pressa e presunção.

Ainda há imensos mais, mas dão menos nas vistas: um picanço-real muito orgulhoso que não sei se anda perdido ou resolveu exilar-se; uns noitibós discretíssimos que levantam da frente dos faróis claramente para me mostrarem que querem saber a que horas chego a casa; umas poupas que têm a mania que são as mais importantes; rolas e pombos torcazes que fizeram ninho no pinhal e que estão evidentemente a escapulir-se aos caçadores; umas corujas que voam da mata todas as tardes e que nos dão as boas-noites, polidíssimas como tias-avós, logo que o sol se põe. Os gaios devem ter ido a banhos, por agora. E uns amarelantes e cotovias, que andaram por aqui, sumiram desde que os centeios foram ceifados. E a lista continuaria.

Não devem tardar por aí outros pássaros, que vêm com o fim do Verão. Por agora, ficámos sem estorninhos e esperamos não ficar sem abelharucos, senão terei de ir saber de insecticida.