terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Portugal Republicano e Portugal Monárquico: o transe de um povo aflito

Texto resumido de uma comunicação feita no Arquivo Distrital de Bragança em Novembro, no âmbito das comemorações da Implantação da República, nas palestras “ A República no Distrito de Bragança”. O tema da comunicação foi o da razão de ser do romance Um Tiro na Bruma.



Fragmento de granada incendiária
disparada contra Mirandela
no combate de 9 de Fevereiro de 1919,
pelas tropas realistas.

Sempre desconfiei da história quando ela é contada pelos vencedores: esquecem-se os argumentos dos vencidos e demoniza-se o inimigo, continuando-se a fazer cair sobre ele todas as famas de todos os males, mesmo depois de derrotado. Há disto imensos exemplos, de que nem vale a pena estarmos agora a citar casos ilustrativos porque de todos são conhecidos, quer se refiram a conflitos recentes quer a conflitos antigos.



Nesse tipo de história, são sempre heróicos os gestos dos vencedores e desprezíveis os actos dos vencidos quando, na realidade, pode ter havido heroicidade de ambos os lados tal como pode ter havido – houve, certamente – actos reprováveis de ambos, também.


Normalmente “quem se trama” sempre é o povo, entendido “o povo” como toda a massa que é arrastada pelos acontecimentos e não como classe social. Apesar de sempre muito elogiado e usado como motivo, como argumento ou como cortina de fumo, o povo não só “paga as favas”, para usar uma expressão eloquente por si, como se vê obrigado a engolir em seco os silêncios politicamente correctos e a acenar de assentimento – quando não a ter de cantar a vitória – às palavras e actos dos novos vencedores, também numa lógica do politicamente correcto, entenda-se, do jogo pela sobrevivência do mesmo povo...



Acontece isto também com as famílias e com a sua crónica, depois de terem passado por períodos de prevalência de uma perspectiva a partir de um dos seus ramos ou após algum sobressalto fracturante que as tenha desestruturado ou colocado em dificuldades. Nas famílias também se enaltecem ou se depreciam caracteres e percursos, ao sabor do critério dos que contam essas crónicas. Também há os santos e os pecadores. E os demónios. Na vida das famílias, tal como na história, aparece, à mão ou na boca de quem conta, um bode expiatório para fazer o papel. Quero dizer, não aparece, é lá colocado, tal como fazem os vencedores na política e nas tragédias de um povo. Se, para estes, esse papel é fácil para dele serem investidos os vencidos, para os dramas familiares mais ligeiros está sempre uma sogra à vista, para os mais pesados há sempre um ex-cônjuge que terá traído os votos do compromisso matrimonial, ou da sua união sentimental, e que terá dissipado o seu capital de bens e de bom nome. As famílias e a história estão cheias de exemplos destes, de anjos exemplares e de filhos pródigos de quem se conta a parte rebelde mas de quem se esquece, propositadamente, já se vê, de contar antecedentes, condicionantes ou de revelar o verdadeiro final. No exemplo do Evangelho, porque se trata de uma parábola contada por um autor que dispensa adjectivos, o drama é-nos contado completo e substantivo mas na nossa vida já não é o caso…



…tal como não o foi para mim quando comecei a perceber como era a história de vida do meu Avô Amadeu. Que morreu mais de uma década antes de eu nascer. Médico, arrivista (era de Alijó e veio viver e a casar em Macedo), republicano, muito culto, muito senhor das suas opiniões, muito mulherengo, mesmo muito mulherengo e gastador do pecúlio familiar. O contraponto da minha Avó, senhora de Macedo, monárquica, também culta, também senhora das suas opiniões, fiel ao seu marido e filhos, muito fiel ao seu marido e filhos apesar dos que a cortejaram mesmo depois de casada e que exploravam o tentar adoçar, junto da Micas, tal era o seu petit-nom, o lado amargo de se saber traída. Aos quais nunca cedeu. Tinha sido educada na convicção de que os prazeres proibidos não são maneira nem de curar o orgulho ferido nem, muito menos, de conservar a autoridade inatacável da posição em que o marido a colocara. Várias vezes o Avô Amadeu precipitou as finanças familiares em situações difíceis, várias vezes a Micas teve de acorrer, com jóias ou com legítimas de herança, para saldar contas e calar usurários. O Avô acabou por morrer, em meados dos anos quarenta, e a avó sobreviveu-lhe uma década e meia. Durante esses anos, passados no pós-guerra e na década de cinquenta, a Avó continuou a ser um esteio da família da maneira como são as Avós: espalhando sorrisos e contando histórias aos netos, estando sempre atenta para ser seus cúmplice nos pequenos caprichos que deixam saudades. E continuou a fazer o que sempre tinha feito ao longo da vida: a ajudar os pobres, a valer com uma palavra ou com um gesto a todos os que lhe chegavam ou de quem lhe chegavam vozes aflitas. E a ajudar, depois de o meu Avô morrer, para cúmulo, algumas daquelas que se encontravam desamparadas e o tinham tido nos braços, em vida…

Claro que, com um tão grande período de sobrevivência da minha Avó sobre o meu Avô, a história dele chegou até mim com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Neste caso, sobreviventes. Ainda por cima, pessoas que tinham tido convívio com a minha Avó e às quais, inconscientemente ou conscientemente, tinha “comprado” uma versão dos acontecimentos com o seu desvelo.

Em casa não se falava, praticamente, do Avô, a não ser para se exclamar “não te ponhas como o Avô” quando alguém discutia de uma determinada maneira ou adoptava um determinado comportamento. Quando eu perguntava a alguém pelo Avô, em Macedo, a conversa em menos de um minuto estava invariavelmente centrada na minha Avó: “uma Senhora, muito bonita, tão boa para todos, tão infeliz com o seu Avozinho…”. Sobre o Avô, nada ou quase. E quando eu, caso a caso, comecei a agarrar uma palavra a este, outra àquele, sobre o Avô, comecei então a descobrir que a realidade tinha sido outra. Não radicalmente diferente mas outra, simplesmente. O Avô tinha tido qualidades, afinal. Também defeitos inegáveis, sem dúvida. Mas não era aquele ser de quem nem se poderia falar!

E comecei a perceber que muitos dos que logo me falavam da minha Avó, ao serem interpelados sobre o Avô, tinham sido, directa ou indirectamente, beneficiários da caridade da minha Avó…

Ora, quando comecei a querer contar esta história e a situá-la na sua época, no início do século XX, na transição da Monarquia para a República, comecei a investigar passo a passo todo esse período mas de uma forma autêntica e directa. Ou seja, em vez de me por a ler obras daqueles que sobre esse período escreveram com este ou aquele partis pris ideológico, pus-me a ler os jornais, as revistas, os romances e folhetins que nesse tempo se liam. Pus-me, dessa maneira, a viver na realidade da época. Foi fascinante. Segui o decurso de meses e anos lendo o Diário de Notícias e muitos outros jornais que se publicavam, folheando e vendo as fotografias da Ilustração Portuguesa e doutras revistas e almanaques, seguindo o dia-a-dia dos acontecimentos. Mas como, ao mesmo tempo, eu lia também os livros de autor escritos sobre essa época, comecei a notar uma diferença enorme entre o que era a percepção do que acontecia no dia-a-dia, que eu fazia para mim ao ler os jornais e outros documentos, e aquilo que sobre isso era contado pelos tais autores de livros sobre essa época. Comecei-me a dar conta que havia um distorcer da verdade, entendendo como verdade o desenrolar dos acontecimentos e a sua cronologia, critérios necessários para que a história possa ser objectiva. E então percebi o que estava a acontecer: a história que nós conhecemos sobre a Implantação da República, a que nos é contada desde a escola primária, não é mais do que a história contada pelos vencedores, com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Ainda por cima com uma agravante: é-nos contada para camuflar não só uma realidade diferente mas, muitas vezes, uma realidade inexistente! É incrível! O que se passou na realidade é de tal modo diferente do que tantos hoje afirmam que, para quem souber e conhecer verdadeiramente esse período, toda a nossa história subsequente sobre o século XX ganha uma nova leitura.

Fiz uma descoberta, em certo sentido, infeliz e que me tem trazido triste nesse assunto: a de que havia e há uma conspiração, de muita gente que escreve e que dá opiniões, que ainda hoje persiste, uma conspiração que não é apenas contra a monarquia ou a favor da república mas que é muito pior: é contra a verdade.

Descobri, assim, que havia um paralelismo entre o que se dizia ou não dizia sobre o Avô Amadeu, em nossa casa, e o que se diz ou não diz por todo o lado sobre o que foi o fim da nossa Monarquia e a vigência da nossa Primeira República. E decidi-me a escrever sobre isso. Escrever um ensaio, argumentar, envolver-me em discussões que não levam a lado nenhum na maioria das vezes? Não. Preferi tentar escrever um romance sobre esse período. Um romance baseado na realidade. Foi assim que nasceu Um Tiro na Bruma.

Que isto não sirva apenas para se dizer que “afinal nem o fim da monarquia foi assim tão mau nem a república assim tão boa”. Não. É muito mais do que isso. Porque há, no fim de contas, vencedores e vencidos. Nestes últimos está sempre o povo, entendido na acepção referida acima, e esteve, quase sempre, a verdade. O que me deixa com uma esperança: a de que, apesar de tudo e contra tudo, ela venha a prevalecer e, com ela, nós venhamos a poder, um dia, sair triunfantes das dificuldades do nosso dia-a-dia.

O verdadeiro sacrificado, na transição da Monarquia para a República, foi o povo. O povo viu-se mesmo aflito, depois do 5 de Outubro. Com fome, doente, obrigado a combater, a morrer, a vestir-se de luto, impedido de rezar por decreto. Ainda por cima com uma conjuntura de pavor: caíam as monarquias e os impérios, assistia-se a uma destruição sem precedentes, com máquinas e venenos sem precedentes, a batalhas e desastres antes inauditos, a epidemias de escala total que não poupavam ninguém. As greves, os tiroteios nas ruas, os saques e assaltos das lojas e casas, os meses de trabalho sem soldo, os atentados e assassinatos constantes faziam da intranquilidade e do medo uma vivência permanente. O povo pensou que o mundo ia acabar – e imediatamente. Foi uma época vivida em transe e com uma grande aflição. Uma época difícil, extremamente difícil.

Mas são precisamente essas épocas difíceis que nos devem merecer olhá-las e invocá-las com todo o respeito. Respeito pelos que a viveram e lhe souberam sobreviver. Respeito pela sua verdade. Em nome deste respeito nos propusemos deixar o nosso testemunho.

sábado, 18 de dezembro de 2010

MÚSICA

Habituei-me desde muito cedo a estudar com música. Gira-discos (primitivíssimo, um Dual portátil que era da minha irmã mais velha e que funcionava a pilhas) ou rádio (pré-histórico, um Phillips 38 a válvulas com esplêndido som, que o meu pai prezava muito e que quando se ligava tinha primeiro de aquecer e emitir um característico Hhummm!), a primeira coisa que eu fazia antes de abrir os livros e os cadernos na mesa do quarto era sintonizar o posto (o canal dois da Emissora Nacional ou o Rádio Clube Português) ou colocar um disco no prato (as Sylphides de Chopin em 33 rotações ou o Grand Hotel dos Procol Harum, que a minha irmã Pilar tinha trazido de Inglaterra, ou ainda os 45 rotações da Suzi Quattro que se esgotavam num ápice). Mais tarde, já na faculdade, passou a ser a RFM a onda de eleição que me tem acompanhado até hoje, em casa ou no carro, se bem que quando estou diante do écran do computador faça grandes variações com emissoras de países longínquos on-line ou com escolhas do Youtube. Enquanto estou a escrever este artigo, tenho estado a ouvir Rachmaninoff, o segundo concerto para piano e orquestra, muito romântico e arrebatador, cujos clips vou partilhando no facebook…


Música! Conjunto de sons capaz de produzir superiores sensações, capaz de nos fazer sorrir e de nos levar às lágrimas em menos de um estalar de dedos. Um estímulo à criatividade, à reflexão, à comunhão. Música! Fantástico denominador comum que junta no mesmo sítio, para assistir e participar num concerto, seja ele clássico ou pop, as pessoas mais diferentes nas suas ideias, no seu modo de estar na vida. No filme A Missão vê-se qual foi a ponte que os Jesuítas estabeleceram com os Índios para ultrapassar, num primeiro passo, o abismo civilizacional que os separava: música, Bach, como pedagogia do princípio de uma relação cultural e religiosa!

O ensino da música deveria ser obrigatório e deveria ser ampliado em todas as escolas. Ainda no número de Novembro último da Scientific American, prestigiadíssima revista científica de divulgação e debate, vem um artigo em que mais uma vez se refere que as nossas capacidades de aprendizagem se ampliam pelas profundas e perduráveis mudanças que a música é capaz de produzir no cérebro. “As escolas deveriam aumentar as suas aulas de música em vez de as cortar”, escreve-se. “A prática musical desenvolve as capacidades de prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. A música não é nem deve ser um extra, mesmo que os orçamentos sejam apertados. Aprender e tocar um instrumento, para lá do prazer imenso que proporciona, aumenta a capacidade de aprendizagem e tem um efeito benéfico sobre um cérebro em desenvolvimento”.

A música tem ainda o condão extraordinário de preencher o tempo, de ultrapassar em muito o simples entretenimento. É uma das nossas melhores companhias e não só para estudar. É uma excelente companhia para nos ajudar a passar os momentos de crise. Devia haver muito mais música na escola e na vida.

(Este meu artigo foi publicado no último Mensageiro de Bragança, se bem que com alguns pormenores modificados)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A contracção do tempo

A Mariana e eu descobrimos um sítio em que duas horas se transformam em dez minutos. Pelo condão especial de uma pessoa que resolveu partilhar, pensamos, uma das paixões e uma busca da sua vida.
Só o facto de se entrar no edifício é já uma iniciação: passar a porta de entrada é um recuo no tempo (nem é preciso grande imaginação, basta sentir que muda o som e muda a luz, duas circunstâncias imateriais que conseguem modular a velocidade do nosso dia-a-dia). Depois vem um breve, brevíssimo gesto burocrático de rabiscar uma cruz num papel, a dizer que estamos presentes (Deus queira que a nossa entrada no Céu seja assim só com a demora de um instante!), a que se segue percorrer um rés-do-chão abobadado no fim do qual há uma escada – e que escada! – de dois lanços, suave nos degraus de granito que abafa sons, belíssima na simplicidade da concepção, que se sobe com a certeza de estarmos a cruzar com milhares de pessoas que, antes de nós, desde há mais de dois séculos por ela passaram com as suas toillettes de cerimónia em ocasiões de festa, os seus trajes de súplica em dias de audiência, as suas fardas de ofício nas horas de despacho, a sua intenção íntima de remediar urgências ou tentar encontrar lenitivos para aflições. As escadas estão, assim, cheias de significado e subi-las é caminhar, degrau a degrau, para uma porta que nos aguarda como se fosse mais uma porta mágica, vazia, cheia de um sortilégio inesperado: para lá dela temos um encontro marcado com duas horas que roçam o absoluto. Para lá dela está o salão do auditório, paredes brancas para imagens de todos os possíveis, cadeiras onde nos sentámos, no primeiro dia, sem uma expectativa definida: o que aconteceu mal dá para se descrever porque as duas horas que ali estivemos, passadas com uma brevidade insuspeita, rapidamente nos puseram numa experiência de arrebatamento, que roça a metafísica. Trata-se simplesmente de música, trata-se simplesmente de uma iniciação à história da música, trata-se apenas e só de revisitar tantos lugares comuns aprendidos e ouvidos ao longo da vida. Ou não se trata nada disso! A experiência daquelas duas horas, que já duram há umas semanas, às quintas-feiras, no Museu de Lamego, tem sido inesquecível, como são sempre inesquecíveis todos os transes da nossa vida em que parece, por momentos, que essa mesma vida resolveu nos abrir um parêntesis. Onde estivemos naquelas duas horas enquanto um powerpoint desdobra imagens, duas colunas de som nos dão um banho de decibéis, dois candelabros iluminam sobre a mesa como se fossem um Aleph de Borges, a voz de José Pessoa nos diz coisas e mais coisas, umas atrás das outras, vociferadas com intensidade como se as pintasse a óleo, no ar, numa tela que ele vê nítida e onde se esforça – e consegue! - por misturar os tons densos das cores que pintam a sua busca da verdade (que ele anda à busca da verdade desde há muito e tem dela já muito mais que o pressentimento, nota-se quando se emociona com a busca da verdade com que esbarra nas músicas, nas canções, nos compositores, na que todos eles empreenderam antes dele), onde estivemos? Onde estivemos? A ouvir José Pessoa? Hm… Não pode ser só! Mas é por causa de José Pessoa. Aquelas duas horas são muito mais do que isso. Ouvimos um José Pessoa que se transcende, que ali naquele leme é mais do que ele. Começámos com trovoadas, com água a correr (De um rio? De um útero? De um choro de desesperança? De uma chuva que sempre choveu assim?), com os sons dos objectos simples, dos objectos fabricados, dos instrumentos primitivos, dos instrumentos evoluídos, da voz humana, do génio humano que sempre buscou na música a forma superlativa de comunicar consigo, de comunicar com o tempo, de comunicar com Deus. Daí surgiu um som que permanece como um baixo contínuo ou como uma toada e que estabelece um cordão de moléculas vibrantes (moléculas?! Qualquer coisa, enfim, eu nada ou quase percebo disto e por isso me inscrevi neste curso…) desde um pastor ou pré-histórico com a sua flauta de Pã feita de osso, à Hildegarda (a da música escarlate), aos trovadores, a todos. Que enche o universo como o Messias, o mundo dos prodígios como as pautas de Mozart, a capacidade infinita do big bang da esperança da liberdade com a Nona e os versos de Schiller. Aquelas duas horas, que passam como dez minutos, têm sido duas horas de uma profunda experiência. Não há ali só música. Ou talvez seja só música. Talvez um dia descubramos que, afinal, a Eternidade seja feita de música. Porque só a Eternidade, onde não contam minutos, nem horas, nem anos, pode ter o sortilégio de fazer com que o tempo de duas horas seja, afinal, o tempo de dez minutos. Só um tempo medido na escala da Eternidade pode explicar os compassos que nos têm arrebatado para algures de dentro daquelas quatro paredes. Que bênção especial terão ali derramado os Bispos de Lamego do século XVIII? É que dentro daquela sala o tempo contrai-se, às quintas-feiras.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O homem e a maçã

O homem à beira da estrada, capacete de obras na cabeça e sinal de stop entalado sob o braço, estafeta no meio da poeira e da confusão do tráfego, sol muito quente, desviou por momentos a atenção dos grandes camiões da empreitada que atravessavam à nossa frente, carregados e ruidosos, e voltou-se, não para nós, que aguardávamos que tirasse o bendito sinal e no-lo mostrasse pela outra face, mas para uma maçã que segurava com a mão esquerda e que, com a direita, partia com uma navalha. Observava atentamente o pomo que dividia em quartos, descascados com perícia, e meteu o primeiro na boca, mastigando-o com manifesta vontade e prazer. Calor, estava de vidros fechados pelo ruído e pela terra levantada pelos grandes pneus que a atiravam para o ar, olhos semicerrados pela luz demasiada a reflectir-se nos milhares de partículas de mica e quartzo que voavam. Inexplicavelmente, senti-me a cheirar a maçã, um cheiro doce e suave com travo acre a raineta. Que maçã tão mágica seria aquela? Seria a irrecusável que a Eva ofereceu a Adão, engasgado, reluzente no seu fatal destino? Seria a fadada e venenosa, do cesto da Bruxa Malvada que a entregou, irresistível, à Branca de Neve, e a adormeceu num sono de maravilha? Seria a de Newton, da revelação e conclusão de Newton, atraída para o chão por uma causa invisível? Seria a de Guilherme Tell, sobre a cabeça do filho, a captar-lhe o virotão da besta? Deviam ser todas, para cheirar assim! Como cheirava bem dentro do carro! E vi-me a alinhá-las, há tantos anos!, nas prateleiras do fruteiro, faces rosadas voltadas para nós, depois de parafinadas, prontas a enfrentar os meses de espera até serem comidas à mesa. Dúzias de maçãs! As filas das golden, amarelas e douradas, grandes, sensação táctil de dar logo vontade de trincar! As starking, vermelhas e orgulhosas, farinhentas na boca, boas para enfeitar o centro de mesa e ser comidas com queijo e marmelada. As bravo-de-esmolfe, muito iguais, algo problemáticas mas capazes de espalhar essências por todo o sítio. As rainetas, pequenas e grandes, duras, ácidas, tão perfumadas!, aroma de inspirar e sentir o tempo a entrar com o ar, o tempo de as colher na macieira desgrenhada de ramos carregados de frutos quase a partir, pendentes para o chão, sobre a água dum regato. “Dá cá o cambito para puxar aquele ramo ali que não lhe chego!”. E as cestas de asa no braço, os cestos maiores e as canastras iam-se enchendo no meio de graças e gargalhadas com aqueles frutos de fim de época, de fim de estação, que davam à casa um aroma aconchegado de tudo estar no seu lugar. Com uma mão conhecedora, a Tina ou a Ticha entalavam, entre a cinza e o rebordo da braseira, uma maçã que cobriam com uma prata. A sala rescendia! E todo esse cheiro, vindo não sabia de onde, se misturava com o verde das folhas, o sabor dos frutos, o ar que parecia desanuviar o ambiente do carro com esse encanto vindo do passado. Estava quase a experimentar a maçã assada, casca tostada e sabor melado a abrir-se de surpresas, quando uma buzinadela fez desaparecer o encanto. Os camiões tinham deixado de se atravessar à nossa frente, o homem estendia a mão segurando o sinal com o verde voltado para nós e agitava-o a mandar seguir, capacete entalado sob o braço esquerdo, sorriso. Tinha acabado a maçã. O sol estava intenso, o pó pairava, nós seguimos.