sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

PERSPECTIVA TURÍSTICA DA CAÇA

Perspectiva turística da caça


Seminário TURISMO: A OPORTUNIDADE EM TRÁS-OS-MONTES

XV FEIRA DE CAÇA E TURISMO

MACEDO DE CAVALEIROS

28 de Janeiro de 2011



Manuel Cardoso

A caça e o turismo, em Trás-os-Montes, andaram ligados no passado e estarão ligados no futuro. Mais do que ser a caça uma forma de turismo, é o turismo que tem na caça um dos seus produtos principais. Saber encarar, estudar e desenvolver esta forma de turismo, é importante para que este recurso continue a ser – e o seja cada vez mais – uma fonte de rendimento e de criação de riqueza. Mas para isso há que mudar alguns paradigmas…

1. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Os caçadores vinham da cidade: do Porto, de Guimarães, de Braga, tendo como destino Trás-os-Montes e, especialmente, Macedo de Cavaleiros. Alugavam quartos na Estalagem, em Pensões e em casas de amigos e compadres. A vinda dos caçadores significava dinheiro, que se veria trocado pelas dormidas, pelas refeições e tainadas, pelos aprestos de caça. Só casas a vender cartuchos legalmente havia, nos anos cinquenta e sessenta, oito. E haveria que gratificar, nas aldeias, o conhecimento dos poios da bicharada, a cedência dos cães, o serviço dos batedores e estafetas, até o trabalho das mulheres que tratavam da indispensável e genuína retaguarda gastronómica. Os caçadores apareciam primeiro para as rolas, mas eram raros, Verão ainda. Depois faziam-se mais numerosos para a perdiz e para os coelhos e lebres, orgulhosos cintos de fartos números em que não era raro aparecer uma raposa. E, Inverno entrado, havia os tordos, abibes e aves frias, nuns anos mais permitidos e noutros menos, caça de espera com rotinas marcadas, campeonatos de número, por olivais reconhecidos de ano para ano. “Vêm aí os caçadores!” era uma frase que marcava uma época, um sintoma da vida social que, economicamente, tinha expressão. Não se lhe chamava turismo mas era-o na sua essência e tomáramos nós que ainda hoje tivesse o significado que tinha. Centenas de noites vendidas em época baixa, elevadas taxas de ocupação num período que hoje é difícil de conseguir.
Edroso, Igreja Matriz, cena de caça ao javali, sécs. XIII-
XIV

2. Não era por acaso que os caçadores demandavam Macedo. A fama antiga de ser fértil em caça reconhece-se nos documentos que estão aí, pelo menos desde a Idade Média, de que as referências nos forais não são raras nem são raros os testemunhos. Por isso há uma caçada ao javali gravada na pedra em Edroso, com mais de seiscentos anos, e há os relatos deixados pelo século XVIII, que nos descrevem uma região, a nossa, abundante de caça, abundante de javalis e de corços, já nesse tempo. Multiplicam-se por aí, na nossa toponímia, as alusões aos cervos. Há livros que nos falam do Monte de Morais como “o mar da caça” e a Serra de Bornes, num tempo em que era cultivada de alto a baixo, foi alvo de várias tentativas para se transformar, na perspectiva desses tempos, em couto venatório. Numa fase de transição, a da transição da caça como forma de abastecimento de proteínas, de sustento de famílias, para a fase mais lúdica, mais desportiva, como então se dizia.

3. E não havendo cartazes, nem jornais que o propalassem, nem notícias de rádio e televisão, como surgiu esse interesse dos homens do litoral por este destino de caça? Quem nos revelou?

Caçadores pioneiros, a que não esteve estranho o facto de para aqui vir, combóio acima, durante anos seguidos, um caçador em particular, seguido do seu séquito, e que aliou à sua paixão pelos nossos montes e vales, o lado utilitário do negócio. Foi ele Manuel Pinto de Azevedo. Começou por vir até cá a convite e hospedado em casa de amigos, os Falcões, mas rapidamente toda a sua entourage ocupava o hotel Saldanha e as outras pensões que havia na vila. Do gosto de caçar pelos planaltos da serra de Ala e nas encostas para os Cortiços lhe veio a ideia de um dia comprar um casal de terra. Daí nasceu, há quase um século, a sua raiz em Vale Pradinhos. Progredindo no mundo dos negócios e relacionando-se com gente cada vez mais elevada no ranking dos empresários do Porto, nacionais e estrangeiros, que desafiava para este seu recanto de Portugal, nasceu a necessidade de ter um sítio onde instalar, com as comodidades que o século XX vinha proporcionando, todos esses seus amigos, de cada vez mais requintada exigência. Olho de caçador, de negociante de grosso trato e industrial, carteira de investimentos com capital bastante para necessidades e para caprichos, manda fazer uma Estalagem. Moderna, confortável, de um luxo fino. E com um grande nome: Estalagem do Caçador. Pensada no pós-guerra, construiu-se e inaugurou-se no início dos anos cinquenta. E teve um condão: identificou-se com Macedo. Em Portugal inteiro e até no estrangeiro, Macedo era a Estalagem. Toda a gente reconhecia este ponto no mapa, um importante cruzamento de estradas, como o sítio onde havia a Estalagem do Caçador. E fez mais pelo turismo pelo simples facto de ter existido aqui do que qualquer campanha para captação de visitantes. Quem quer que viesse a Trás-os-Montes, em negócio, em política, em trabalho, em veraneio, ficava ou passava pela Estalagem do Caçador. Que teve durante anos seguidos, nesses idos de cinquenta, sessenta e ainda setenta, períodos de contínua lotação esgotada. Com clientes habituais, que reservavam de ano a ano o seu quarto para a época venatória. E podiam trazer cão: a estalagem também tinha acomodações para o fiel amigo do caçador. Na esteira da fama da estalagem foram abrindo outras casas. Ainda bem. A caça dava para tudo.

4. O que fez esmorecer esse momento tão bom em que a caça era turismo? A diminuição do poder de compra? A alteração de hábitos sociais? As modificações e melhorias nas vias de comunicação? A democratização deste “desporto”?

Cremos que de tudo um pouco. Mas não há dúvida que as alterações das vias de comunicação, que vieram permitir a ida-e-volta sem esforço a partir do litoral, foi determinante para mudar a maneira de caçar e, sobretudo, o tempo de caçar. Deixou de ser preciso gastar cinco horas, cães a reboque, para vir e cinco horas para ir. Pela metade do tempo vem-se e regressa-se. E este facto foi determinante para transformar em meros visitantes, de um dia escasso, aqueles que até então vinham de véspera ou de antevéspera e eram autênticos turistas de pernoita certa. Com isso perdeu-se o tempo para mais. E a caça, hoje, na maioria dos casos, não é mais do que uma fuga de um dia à rotina, alterando-se definitivamente toda a atmosfera que envolvia a actividade e o modo de gastar o tempo que se lhe dedicava. Mas uma coisa é certa. Ainda há interesse pela caça, ainda somos um destino de caça e ainda não morreu a chama acesa da lareira a que nos aquecemos depois de um dia de caça. Então…

5. …então há que repensar a perspectiva da caça e em vez de equacionarmos o turismo por termos cá caçadores, equacionemos a caça para termos por cá turistas. O produto “caça” é um produto turístico muito mais importante do que o simples acto de caçar um coelho, uma perdiz ou um javali. O pressuposto de que “caça” implica uma arma, um homem e um animal para ser abatido, é apenas um detalhe do nosso produto. “Caça”, em si, é o animal e a sua paisagem. Por aí andam por esses montes e pelas nossas serras. À espera de ser observados, estudados, caçados e comidos. A caça em si é uma experiência que deve ser proporcionada ao turista. Com a presença e a emoção de caçar, de ir pelo campo, de ouvir os cães e sentir o frio e o cheiro. Mas que pode e deve ser complementada com cultura, com arte, com gastronomia. Com ciência! Não é por acaso que o canal Discovery ou o National Geographic Magazine têm elevadas audiências nos programas sobre vida natural: colocam o homem face a face com o jogo mais antigo da humanidade, o da observação dos animais. Algo que um caçador faz, e muito bem. E que tanto pode fazer com uma arma como com uma máquina de filmar ou fotográfica, como com um binóculo ou telescópio. Neste ponto de vista todos somos um caçador potencial. Está-nos nos genes. Saberemos indicar aos nossos potenciais caçadores-turistas onde podem ir caçar coelhos? E perdizes? Sabemos onde está a nossa caça? Como se multiplica? Organizamos workshops sobre a perdiz gastronómica? Organizamos workshops sobre os modos de caçar? Temos algo para dizer ou para mostrar sobre caça a quem nos escolhe como destino turístico? Estamos simplesmente à espera que venham os caçadores e que encontrem caça por aí?... Hm…

Veado em Latães, na Serra de Ala, 12 de Outubro de 2009
6. Para conseguirmos que, no futuro, continuemos a desenvolver a caça na perspectiva do turismo, não basta que haja o monte, a perdiz e a espingarda. Tem de haver algo mais, muito mais. O caçador tem de se sentir acolhido como um turista e não apenas como um cliente de uma associativa. Tem de se sentir bem e tem de sentir que os que traz consigo se estão a sentir bem. Tem de sentir que quando vem à pressa para regressar no mesmo dia, perde algo mais, muito mais, se não ficar cá a dormir. Tal como tem de sentir que o facto de ter vindo sozinho é um desperdício por não ter trazido a mulher e os filhos para que, entretanto, se dediquem a fazer algo que seria impensável e impossível se tivessem ficado na cidade. Um dia de caça entre nós tem de ser uma experiência inesquecível mas repetível, como o era para os caçadores que cá vinham há décadas atrás e passavam a palavra dos dias inesquecíveis nos nossos campos, na nossa estalagem, nas nossas lareiras. Temos de ser capazes de demonstrar que vale a pena não só vir caçar como vale a pena vir passar o dia entre nós. E a noite. E, mesmo que não se cace nada, fazer com que no espírito do nosso turista fique a sensação grata de um dia preenchido e não o desagradável vazio de um dia desperdiçado sem nenhuma perdiz ou coelho para por à cinta.

7. Já lá vai o tempo em que se ouvia dizer aos comerciantes de Macedo, voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, “vêm aí os caçadores!”. Mas temos de fazer com que volte um tempo em que os caçadores que cá vêm, com voz de satisfação e mãos esfregadas de nervoso contentamento, digam “vem aí o nosso fim-de-semana em Macedo de Cavaleiros”. No dia em que isto acontecer, tal significa que a caça deixou de ser uma forma de turismo e o caçador passou a ser um verdadeiro turista. Não se pense que isto é um mero jogo de palavras. Nada disso. Isto é a demonstração de que há uma forma de ver a caça e o turismo como actividades com futuro na nossa terra. Tudo evolui. E o que não evolui, definha e morre. Ora, nós saberemos evoluir.

Albufeira do Azibo, Dezembro de 2007. Foto de Nuno Oliveira Martins

Vivemos um momento difícil, numa conjuntura difícil em que o país foi colocado. Mas os momentos difíceis são sempre momentos de oportunidade. Na perspectiva da caça, o turismo terá um futuro cada vez mais difícil. Mas na perspectiva do turismo, a caça terá um futuro promissor. É esta a maneira correcta de colocar hoje este nosso assunto. Somos um destino turístico de Verão que ultrapassou os 100 000 visitantes. Podemos ser um destino turístico de todo o ano desde que passemos a tratar a Caça na perspectiva do Turismo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA

Quando foi apresentado em Lisboa, no dia 26 de Março de 2009, esteve ausente da sessão o apresentador! Mas enviou um texto que foi lido aos presentes. Esse texto é o post que hoje aqui colocamos, na íntegra. Do qual fiquei muito grato ao seu autor, o Professor Doutor Vítor Serrão.




LANÇAMENTO DE O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA,


ÚLTIMO ROMANCE DE MANUEL CARDOSO

Em jeitos de prolegómeno informal, apenas duas palavras introdutórias. A primeira é de justificação para uma ausência forçada, que é devida ao facto de ter tido de arguir, hoje mesmo, uma tese de Doutoramento na Universidade de Évora, alvo de um agendamento de última hora, com o subsequente serviço académico que me impede de estar de corpo presente neste lançamento; a segunda palavra, e porque estou (ao menos) de espírito presente, é de reconhecimento público, tanto à editora Sopa de Letras e ao seu responsável, o Dr. Henrique Mota, pela forte aposta editorial, como muito em especial ao autor do romance O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA, o novo livro do muito estimado Dr. Manuel Cardoso.

Antes de mais, devo dizer que se trata de um livro fascinante, que cruza tempos e sugere interpenetrações histórico-culturais e afectivas, ao tomar como pretexto de narração a figura do famoso «Dr. Mirandela», médico na corte de D. João V, autor do Aquilégio Medicinal, livro de 1726 sobre as propriedades das águas de Portugal, de que um exemplar cheio de sortilégios reaparece dois séculos volvidos na biblioteca de um velho capitão, aristocrata depauperado, bibliófilo triste com estatuto de desmazelo, a morrer aos poucos entre o quarto arrendado no segundo andar do nº 93 da Rua do Diário de Notícias e as cervejarias do Bairro Alto e das Portas de Santo Antão. O que une ambos os personagens – o do século XVIII e o do século XX – é precisamente a ligação íntima ao tal livro sobre os segredos curativos e propedêuticos das águas de Portugal, «livro com classe», escrito pelo primeiro como se de um projecto de vida se tratasse, relido amorosamente pelo capitão perante auditórios de café onde explicava «os humores, o desopilar das obstruções ou o desinchar dos hidrópicos» a partir das propriedades das águas… Isto, na Lisboa do tempo de Almada Negreiros e em plena ditadura de Salazar – num sugestivo reencontro de tempos, de diálogos sem tempo.

É preciso lembrar que o verdadeiro herói deste livro é uma figura de carne e osso, uma personagem real. Real e, ainda por cima, ilustre. O Dr. Francisco da Fonseca Henriques, vulgarmente chamado «Dr. Mirandela», foi um ilustre médico, escritor e pedagogo da ‘entourage’ de D. João V, ligado a personalidades como o escritor Rafael Bluteau, o mecenas D. Rodrigo de Sá Almeida e Meneses, Marquês de Abrantes, o escultor Claude de Laprade e alguns outros nomes ilustres da sociedade lisboeta de antes do Terramoto. Para que conste – e melhor o situemos neste pré-circunlóquio –, ele nasceu em Mirandela em 1665 e morreu em Lisboa em 1731. Formado em Coimbra, foi médico privativo do Magnânimo, e autor de vários tratados científicos, de que o mais famoso é justamente o (citemos o título na sua integralidade) Aquilegio medicinal, em que se dá noticia das aguas de caldas, de fontes, rios, poços, lagoas, e cisternas do reino de Portugal e dos Algarves [...] dignos de particular memoria, lançado pela Officina da Musica em 1726. É este celebrado livro, várias vezes reeditado em Portugal e no Brasil, que constitui o leit-motiv da narrativa de Manuel Cardoso. É um tratado onde são descritas as qualidades (e impropriedades) das águas de todas as fontes de Portugal, desde os mais formosos chafarizes citadinos às modestas fontes de mergulho das aldeias. O Dr. Fonseca Henriques era filho de um abastado lavrador brigantino, morador em Carvalhais, e teve oportunidade de estudar na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1688, numa época em que o Reino saía a custo da crise provocada pelas terríveis guerras do Portugal Restaurado contra as tropas de Castela. Muito jovem, foi médico em Chaves, abre consultório em Mirandela. O facto de ter um tio que era feitor dos Távoras, permite que cedo vá poder fixar-se na capital, onde conquista a clientela de mais alto estatuto social e ingressa na Academia das Ciências. Em 1706, ascende a médico privativo do novo rei D. João V, ganhando reputação, ainda que nem sempre livre de invejas, caso das rivalidades que manteve com outro famoso médico, o Dr. João Curvo Semedo. O tratado que dedicou às qualidades das águas, e que terá começado pela descrição das propriedades da Fonte de Golfeiras, na sua bem familiar aldeia junto à vila de Mirandela, conquista os públicos e será uma espécie de best-seller da época; nos séculos seguintes, é obra de referência, presente nas melhores bibliotecas e disputada pelos mercados.

O resumo diz assim: «Na biblioteca de um velho capitão solitário figura um livro raro escrito por um médico de D. João V. Que segredos encerrará esse Aquilegio Medicinal sobre as fontes e águas de Portugal? E que águas e fontes serão verdadeiramente aquelas a que se refere o seu autor? É o que nos propõe descobrir nesta aliciante viagem no tempo até ao Portugal do século XVIII».

Eu li este livro, O Segredo da Fonte Queimada (que é a segunda incursão do autor na área do romance, depois do interessante Um Tiro na Bruma) com um crescendo de prazer. Um muito grande prazer. E até devo confessar que tenho uma postura de reserva militante perante a «novelística de História», género em expansão de mercado nos dias de hoje e que permite muitas vezes (a maioria das vezes!) uma deriva contra-factual sem sentido, aliada a um elementar desconhecimento histórico, ou a extrapolações demagógicas. Só excepcionalmente surge, por exemplo, um livro integrado nesse «género» com a qualidade do Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez (1962, recém-editado entre nós pela Sextante), onde de tal modo se recria o ambiente da Itália do século XVI que a obra mereceu ao exigente Jorge Luís Borges um rasgado elogio. Trata-se de tomar a História como o suporte artístico de uma literatura original, envolvente, criativa. Ora são estas valências que observo no romance de Manuel Cardoso: as «três histórias cruzadas» seguem o discurso cotejado de uma meta-narração em que Vicente, o herdeiro, o capitão Eduardo, tio daquele, e o médico-escritor da corte de D. João V, se irmanam para criar uma intriga veraz, poderosa e que, ademais, nos ilumina poderosamente sobre a Lisboa do século XVIII, essa Lisboa a dois andamentos que tão bem nos descreve: luxuosa e miserável ao mesmo tempo, pólo científico e de crendice supersticiosa ao mesmo tempo, urbe de palácios europeizados e de conventos de hábitos medievais ao mesmo tempo, centro de arte barroco-romana e de gostos anacrónicos ao mesmo tempo, capital de Império e urbe tradicionalista ao mesmo tempo, tempo de novos humanismos e de feroz esclavagismo e intolerância ao mesmo tempo… Ainda não há muito me deliciara ao ler o relato desta mesma Lisboa de antes do terramoto descrita com o rigor e a sensibilidade que permitem a extrapolação, na obra de José-Augusto França Lisboa – História Física e Moral (Livros Horizonte). A descrição que o Prof. França faz da Lisboa joanina, por exemplo no espaço de encosta entre a zona do Torel e a Calçada de Santana, incluindo a importantíssima igreja da Pena, igreja que era padroeira dos homens de artes e letras e ainda hoje nos oferece a beleza da sua talha dourada, da autoria de Claude de Laprade, e das pinturas de Jerónimo da Silva e André Gonçalves, faz jus ao ambiente criado no livro O Segredo da Fonte Queimada.

Creio que este livro de Manuel Cardoso se insere nesta mesma linha de reflexão criativa que legitima a contra-factualidade e o «probabilismo de evocação histórica»: basta ver-se a descrição muito credível da figura de D. Ana de Sá Sarmento, espécie de mecenas do Dr. Fonseca Henriques, entre a aldeia de Sesulfe, o cosmopolitismo de Lisboa e o sossego bucólico das terras quentes de Macedo. Dir-se-ia que as hipóteses que a liberdade criativa legitima ganham contornos de veracidade, lendo-se as páginas de Manuel Cardoso em que essa figura dessa amiga-protectora do Dr. Mirandela é parte envolvida. Tinha esboçado um «power-point» com imagens para acompanhar esta apresentação: o frontispício da primeira edição do Aquilegio, alguns retratos da sociedade quinto-joanina, uma possível efígie do Dr. Fonseca Henriques, imagens da igreja de Nossa Senhora da Pena e das artes na Lisboa barroca, etc, etc. Outros sortilégios impediram que tal complemento imagético pudesse ser apresentado. Outra vez será, quero crer, quando o livro chegar desejavelmente a uma 2ª edição.

Igreja de Nossa Senhora da Pena - Calçada de Santana
Resta dizer uma última palavra menos ‘técnica’ e mais pessoal. O Dr. Manuel Cardoso é um distinto médico veterinário estabelecido em Macedo de Cavaleiros, em cuja periferia reside. É, ademais, um empenhado militante na causa da defesa do Património cultural, fazendo parte da direcção da Associação de Defesa do Património ‘Terrras Quentes’, presidida pelo Dr Carlos Mendes. O facto de eu estar ligado, de há alguns anos a esta parte, ao inventário do Património artístico sacro dessa muito desconhecida região, permitiu-me conhecer bem Manuel Cardoso e apreciar as suas altas qualidades humanas, literárias e científicas. A sua probidade de escritor que se liberta de peias amadorísticas e vai afirmando um talento mais solto e amadurecido, levou-o a todo este trabalho de reconstituição de uma adequada «mentalidade de época» a fim de perscrutar os gostos, anseios, crenças e angústias dos lisboetas do primeiro terço do século de Setecentos; assim, o autor reenfocou essa sociedade, e fê-lo com acerto, a fim de enquadrar a intriga – de que não vou obviamente falar, para não privar os leitores do segredo. Apenas direi que existia, e existe ainda, uma certa fonte algures em terras fragosas de Sintra, entre brumas de mistério, que na edição de 1726 foi omitida por exigência régia…

Mas isso fica para o gosto prazenteiro desta vossa leitura.



Vítor Serrão

Historiador de Arte

Universidade de Lisboa

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

ADRIANO MOREIRA - Um livro biográfico

"Adriano - Vida e obra de um grande português"




A sala estava cheia, convidados, população, grupo de escuteiros e coral da aldeia, com instrumentos entre os quais um oboé! Frio, um frio fim de tarde sem chuva. Dentro da sala estava abafado, da gente e de uns aquecedores de gás. Mas cumpriu-se a função, que acabou com vinho-do-porto para todos, enquanto o Professor e o autor do livro escreviam dedicatórias e autógrafos.

Palavras proferidas pelo autor deste blogue na apresentação do livro biográfico escrito por Manuel Vieira Pinto sobre o Professor Doutor Adriano Moreira em Grijó, Macedo de Cavaleiros, 11 de Dezembro de 2010:


Os livros biográficos têm, muitas vezes, um de dois defeitos ou os dois simultaneamente: um, o de transporem, para o passado dos visados, as nossas preocupações, polémicas e preconceitos e, outro, o de permitir que a imaginação de quem escreve faça afirmar, pela voz dos biografados ou na descrição dos factos vividos, mais do que os dados documentais permitiriam escrever (1). Não é o caso deste livro, Adriano - Vida e Obra de Um Grande Português, da autoria de Manuel Vieira Pinto(2). Não é um livro que nos transponha para o passado: pelo contrário, faz o passado vir ter connosco, com tudo o que de saboroso isso possa ter e tem e com tudo o que de importante isso possa permitir e permite. E se põe a imaginação a cumprir o seu papel, é porque a coloca no plano e na perspectiva do leitor, que a faz voar para os sucessivos quadros em que se desenrola a acção, a de uma vida real e tangível, preenchidíssima e riquíssima vida, e a coloca ao serviço de uma reconstituição fiel das linhas dessa mesma vida, passo a passo, ideia a ideia. Minhas senhoras e meus senhores: estamos perante um grande livro!

[Excelentíssimo Senhor Professor Doutor Adriano Moreira

Excelentíssimo Senhor Doutor Manuel Vieira Pinto

Excelentíssimo Senhor Dr. Duarte Moreno, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros

Excelentíssimo Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Grijó, meu amigo Simão Ferreirinha

Excelentíssimo Senhor Daniel Gouveia, Editor

Minhas Senhoras e meus Senhores]

Devo dizer que não é menor a dificuldade de ter de me exprimir diante do autor e do biografado. Corro o risco de, ao querer agradar a ambos, desagradar aos dois: como não sei até que ponto o Professor Doutor Adriano se revê neste volume, se o elogio, posso, porventura, desagradar-lhe, se o critico, desagradarei a ambos. Ainda por cima eu não sou aqui nada nem ninguém, ao pé de quem o escreveu, e muito menos ao pé daquele que é o seu tema. Mas creio bem que andarei certo se adoptar como metodologia de crítica, neste caso não apenas literária, a mesma que o livro contém como tendo sido a que norteou as decisões de vida do Homem nele retratado. Assim, procurarei dizer apenas aquilo que em consciência estiver certo, sem qualquer preocupação de agradar ou desagradar seja a quem for e com a finalidade única de que a virtude fique no seu lugar. Em tudo o mais, cumprirei com desvelo o imperativo que me ditava o meu Pai quando eu, com nove ou dez anos, tendo que preencher algum lugar na mesa do King, inchadíssimo por ocupar a cadeira de alguém muito mais velho do que eu, me punha a opinar sobre as jogadas deste ou daquele. Aí, o meu Pai me dizia com indesfarçável tom de voz: “o cavalheiro reduza-se à sua insignificância!” É o que farei, cingindo-me, pois, ao que aqui nos traz.

Dizia eu que estamos perante um grande livro: são quase quatrocentas páginas de dados, de descrições e de inserções em contextos históricos, escritas com uma preocupação pela fundamentação das afirmações nele contidas, académica e rigorosa. Só notas de rodapé são mais de oitocentas! Mas não se pense que são estes números que tornam o livro grande, nada disso. O que o torna grande é, antes de mais, o seu tema e é a forma como se encontra estudado e redigido para apresentação ao leitor. É um livro grande porque em todas as suas linhas se nota um sem número de escrúpulos: escrúpulos em dizer a verdade; escrúpulos em não dizer nem de mais nem de menos; escrúpulos em não ferir susceptibilidades e escrúpulos em não atraiçoar, por causa dos mesmos escrúpulos, a finalidade de uma biografia. Grande, porque não está escrito para bajular nem para agradar a gregos ou a troianos mas para testemunhar, para ser um instrumento de transmissão de conhecimento e de preservação da memória.

A técnica utilizada, para nos fazer agarrar a toda a vida que pulsa no texto, tem um trabalho enorme por trás: o autor, para lá do seu texto original escrito num estilo limpo de bom português, seguindo a gramática que usa vírgulas e põe acentos, utiliza colagens de textos do biografado como recurso de escrita. Muito bem, me dirão. Mas eu digo-lhes que dizer “muito bem” é pouco, porque para isso, para fazer a selecção dos parágrafos a utilizar, para ter escolhido os representativos para o ponto de vista que, em cada capítulo e sub-capítulo, nos quis apresentar, tal significa que foi feito um esforço imenso de leitura, anotação e selecção que deve ter ocupado milhares de horas! Esta biografia não se fica, pois, por um ensaio árido sobre o objecto de estudo. Esta biografia é um exercício antológico do pensamento do Professor Adriano Moreira. É uma mistura de biografia propriamente dita, de memórias e de preocupação pedagógica em utilizar o testemunho da vida retratada como fonte de sabedoria para as gerações presentes e futuras.

A história poderia ter sido de outra maneira? É uma pergunta que percorre os bastidores em que estamos a assistir ao desenrolar de uma vida, desde Grijó a Lisboa, de Campolide à Rua da Junqueira, do Aljube ao Ministério do Ultramar, de Angola ao Brasil e a todo o Mundo. Há Portugal em todo o Mundo e o sangue que dá vida a este livro pode bem chamar-se Portugal! Porque foi esse sangue que animou e é esse sangue que anima, o sangue da Família Portuguesa, a vida do Professor Doutor Adriano Moreira.

Vida e obra de um grande português: não está escrito à distância indiferente de quem arruma a cronologia e expõe um curriculum. Está escrito página a página com o entusiasmo de quem aderiu e adere, de quem quer ver o leitor arrebatado por essa vida e por essa mesma obra. Arrebatado em nome de quê? Em nome do tenaz esforço que é preciso para a preservação da nossa Identidade, dos valores da Pátria e da Família, da sucessão dos factos, decisões e contingências que implicam toda uma vida. A roda e o eixo, em que o eixo são esses valores, imutáveis, sejam quais forem as voltas que a vida faça dar à roda!(3)

São sempre possíveis muitas leituras para um mesmo livro e este não foge à regra. Mas há uma leitura, dentre as demais, que é indispensável que aqui se faça e se diga. A sua leitura política. Quem o fizer, limpo de espírito e capaz de ser portador de um ideal, deparará com uma lição de política, sim. A de que a política, o serviço a favor da polis, deve sempre ser praticada como promoção do Bem-Comum e não como a conquista do poder para interesses particulares.

Este livro é uma contribuição para a História, uma contribuição benévola mas valiosa. A história tem sempre protagonistas e espectadores, uns e outros nos seus papéis de portadores dos testemunhos. Ao lermos factos e termos a percepção dos seus actores (aqui alinhados com um fio condutor que os faz ver com outra clareza e com uma perspectiva, nalguns casos, surpreendente), ficamos mais gratos por termos chegado até aqui e, sem dúvida, por termos tido o privilégio de, hoje, nesta sala, termos podido estar no mesmo local e hora em que estão também dois protagonistas tão especiais dessa mesma História. No fundo, ao percorrermos os treze capítulos em que nos é dado poder participar do que foi e é o pensamento e a acção de um grande português, ficamos com a sensação de que todos acabamos por estar empenhados nesta corrida que nos coloca num determinado espaço e num determinado tempo à procura de um sentido para a nossa própria existência e também de “saúde e dinheiro, já que Deus não nos pode dar tudo!”.

Finalmente, mas antes de me reduzir à minha insignificância, meu caro Doutor Manuel Vieira Pinto, devo dizer que, quando cheguei ao fim do livro, me veio a ideia de que o meu amigo corre o risco sério de que seja classificado academicamente pelo Professor Doutor Adriano Moreira. Não sei que nota lhe dará. Mas tenho a certeza que, no mínimo, tem garantida uma ida à oral, se é que não mesmo uma dispensa. É que a prova escrita, esta prova escrita está, sem dúvida, muito bem!

Manuel Cardoso

Grijó, 11 de Dezembro de 2010

1- Ver sobre este tema de biografias o prefácio de Maria Filomena Mónica em Vidas, Alêtheia Editores, Lisboa, Abril de 2010.



2- DG Edições, Linda-a-Velha, ©2009 M.Vieira Pinto e DG Edições, 1ª edição Outubro 2010, ISBN 978-989-8135-55-1.


3- O Professor Adriano, nas suas palavras de agradecimento e comentário feitas a seguir a ter-me ouvido ler este texto, explicou que esta imagem da roda e do eixo o tem acompanhado toda a vida desde que na juventude leu um livro, um romance de Morgan, intitulado Sparkenbroke, que o marcou.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Um livro que me ofereceram

Moedas Romanas
 Achados no Alto Tâmega e Barroso
Fernando Cantista Pizarro Bravo
Câmara Municipal de Chaves
2006

Há tempos ofereceram-me um livro. Um destes livros decorativos, capa com design cuidado e papel de luxo de gramagem pesada, fotografia profusa a acompanhar um texto sóbrio e espaçado. Um destes livros – pensei eu ao pegar-lhe pela primeira vez, ao desembrulhá-lo porque me chegou pelo correio – que são bons para ficar em cima de uma mesa a encher espaço e a encher o olho, mas cujo recheio cumpre a função menor de apenas justificar o empate de dinheiro com que as câmaras têm subsidiado tantas edições inúteis. Um livro pesado, de título especial: “MOEDAS ROMANAS”, a que se segue um subtítulo “Achados no Alto Tâmega e Barroso”. Como me era enviado por um amigo de Chaves e que era o seu autor, pessoa consideradíssima, pousei-o gravemente em cima da papeleira da sala a aguardar um dia, de vagar e vontade, para lhe pegar e agradecer.


Só que o tempo encarrega-se de nos envolver nos seus caprichos e fados e os dias foram passando sem que eu lhe desse uma atenção devida. Então mal o folheei, apenas ficando com a impressão de ser bastante mais do que os meus preconceitos formados sobre ele – mas mais nada do que isso. Entretanto meteram-se assuntos que relegaram para o esquecimento os dias da minha memória recente e acumularam-se sobre ele, no tampo aberto da papeleira, estratos e estratos de jornais, revistas, outros papéis e livros, ocultando-o e subtraindo-o à minha atenção e interesse imediato. Passei pela vergonha de receber um telefonema do autor a saber se o dito me tinha chegado ainda antes de eu o ter agradecido, como devia! Que vergonha e que falta de chá a minha! Mas nem assim o pus em cima da pilha. Ficou a aguardar ainda.

Até que numa destas manhãs de fim-de-semana, colhendo uma braçada de papéis e segurando com firmeza uns quantos volumes desirmanados para arrumar em prateleiras, me volta a aparecer o dito cujo, muito azul e branco com duas moedas de prata e ouro na capa, muito inconveniente porque o seu tamanho não dá para uma prateleira normal, e então me surge com ele a determinação de cumprir o dever de o ler ou, pelo menos, de o folhear de modo atento, para dele poder dar notícia e encerrar capítulo tão incómodo, escrevendo um agradecimento para Chaves e remetendo-o para o armário dos livros menos necessários no dia-a-dia – sentenciei interiormente. E como adivinhava umas horas penosas para cumprir tal desígnio, mentalmente preparei-me para o sacrifício e abonar assim em meu favor a perda de tempo que iria ser. Num repente passei as folhas como um baralho de cartas, apenas para introdução na tarefa, e mais uma vez se materializou a ideia de ter pela frente um monótono catálogo de moedas, com anotações e minudências numismáticas de coleccionador obsessivo. Mas tinha de ser. Era o dia. Suspirei.

Levei-o para a mesa do computador, pousei-o sob o candeeiro articulado e comecei a sua análise. Levantei pela primeira vez as abas da sobrecapa e tive uma surpresa: por dentro a capa dura é forrada a tecido azul liso, suave ao toque, com o título e o subtítulo gravados em dourado sóbrio e sob eles as tais moedas, mas aqui sem cor, apenas em relevo afundando-se no tecido e no cartão, como dois apagados enigmas. Muito bem concebida, esta capa! Depois o cólofon, onde uma simpática e imerecida dedicatória fez germinar em mim um remorso ao relê-la, elegantemente manuscrita. Segue-se uma página de apresentação do autor, de agradecimentos e de dedicatória pública à sua Família, uma Família em sentido intemporal e eterno. Nova folha, com uma breve mas eloquente sucessão de quatro pequenos parágrafos em que o então Presidente da Câmara de Chaves justifica o livro e o seu tema e agradece ao autor o seu trabalho. E chega-se ao Prefácio, em que a primeira frase parece escrita premonitoriamente para mim, uma frase de aviso ao leitor que “possui em suas mãos uma obra que trata de um assunto que nem sempre tem a consideração que lhe é devida”. Que sibila terá soprado tal ideia ao autor do prefácio?! Fiquei sorridente com a coincidência e fui ler o nome dele, que é, nada mais nada menos, que Manuel João de Morais Sarmento Pizarro Bravo, filho do autor, historiador. Em duas páginas agarra-nos para a importância do estudo das moedas, situa-nos no contexto da história do dinheiro e na importância civilizacional e cultural do seu uso, posiciona-nos geograficamente para compreendermos a importância do conteúdo deste livro. Três importâncias complementares a que junta uma outra: a da visão e experiência do autor como conhecedor da Terra e da Matéria desta obra. A partir daqui tomei consciência da minha grande ignorância e fiquei apto a compreender a Importância do livro que tinha por diante. E passei a lê-lo com a reverência de quem penetra numa floresta virgem e fica embasbacado a cada árvore que vê.

Cuja primeira tem logo a ver com uma das tais moedas que estão na capa, a prateada, um denário, em que uma cabeça de mulher se apresenta “com expressão de tristeza e os cabelos da frente não penteados” e que é uma moeda que faz alusão ao triunfo de Lúcio Postúmio Albino sobre os lusitanos e vaceus em 576, era de Roma (178 a.C.). Isto, logo no capítulo de Introdução. A que se segue o A Moeda Romana. Aí encontramos a outra moeda da capa, um denário áureo, de Trajano. Como encontramos muitas outras, todas com particularidades e explicações cabais sobre a sua cunhagem, valor e circulação, a servir de chave à leitura e interpretação dos achados arqueológicos mais tarde referidos no livro, no capítulo IV. Há um capítulo sobre falsificações, um aspecto curioso e que revela a cuidada atenção do autor posta nesta obra. A descrição dos achados acaba por conduzir-nos numa interessante leitura da paisagem geográfica da região do Alto Tâmega e do Barroso e seu decalque histórico no período em estudo. A romanização não se fez sem instrumentos e um dos instrumentos foram os pagamentos de serviços em metálico. De que estes achados assim tratados em livro são um bom decalque, como digo, suficiente por si para se poder ter uma imagem e traçar em grandes linhas a persistente e profunda acção da administração romana na península e, em particular, neste sector da península. A datação provável da ocultação de alguns tesouros achados permite distinguir as duas épocas mais problemáticas de convulsão social e até civilizacional, a coincidir com a da fase de ocupação republicana mais violenta, nos finais do primeiro século antes de Cristo, e com a fase das hordas bárbaras, particularmente as dos suevos a partir de 411 d.C. Muitos dos numismas são acompanhados das circunstâncias do seu achamento, da história do numisma em si, com a cunhagem e todas as variáveis a ela associadas (o ordenante da cunhagem, o metal empregue, a datação, etc.), as hipóteses sobre a sua ocultação, se é caso disso, e a forma como se encontra hoje ao dispor do público e condições de exposição. A região objecto de estudo é Boticas, Chaves, Montalegre, Ribeira de Pena, Valpaços, Vila Pouca de Aguiar e ainda o Alto Tâmega Galego. Além das notícias inéditas, revisitamos com o autor algumas colecções célebres de investigadores consagrados. Tudo acompanhado de uma bibliografia abundante e adequada a cada caso em particular. Um trabalho notável, só possível com a dedicação de uma vida a este tema!

A leitura e interpretação da centena e meia de páginas em que se expõe esta matéria não é feita isenta de dificuldades, sobretudo porque muitos pormenores históricos relativos à República e ao Império Romano escapam a quem se debruça em coisas específicas como estas moedas. E sobretudo a leitores menos preparados como nós. Mas o autor pensou em ajudar-nos nessas dificuldades e acrescentou ao livro preciosos anexos: um mapa da República Romana e um mapa do Império à data da sua maior expansão no tempo de Trajano (117 d.C.); um modelo para se fazer a classificação duma moeda imperial romana e para a leitura e interpretação das suas inscrições; uma tabela com a sistematização das diferenças principais entre as cunhagens consulares e imperiais; um mapa com as oficinas monetárias do Império Romano; uma listagem das abreviaturas das casas da moeda imperiais; um conjunto de tabelas de equivalência de valores entre as moedas romanas; uma cronologia dos imperadores e familiares cujos nomes figuram nas moedas do Império Romano; um elenco das divindades, alegorias e personagens representadas nas moedas romanas e ainda uma fotografia da Praça da Misericórdia de Chaves ou Praça do Município ou Praça de Camões onde, sob as raízes de um olmo, apareceram centenas de moedas ao longo do período de trabalhos que demorou a remoção da árvore e arranjo do local. A bibliografia do volume conta com mais de sessenta entradas e as notas de rodapé são quase duzentas!

Confesso que a leitura do livro foi empolgante, apesar do sentimento árido que ao início me fez temer não chegar ao fim e que exprimi ao começar a escrever este artigo. Foi empolgante, não só por tudo o que expus até agora e que me fez rever positivamente a minha impressão do livro, mas por outros motivos ainda. Um deles é o de que se nota, na escrita do autor, um grande amor à sua terra e um amor entranhado, não apenas aquele bairrismo de bandeira e pregão, mas algo que lhe corre naturalmente nas veias: o autor sente-se a própria terra. E há pormenores reveladores, uma frase aqui, uma nota acolá, uma ironia insuspeita com o uso deste ou daquele adjectivo, desta ou daquela pontuação. Teve a capacidade de fazer-nos sentir que aqueles que percorreram este horizonte nos tempos recuados de há dois milénios atrás tiveram, através das moedas, uma forma de comunhão com uma realidade mais vasta e abstracta que foi a do vasto Império. Tangível nesses documentos de ouro, prata, bronze e cobre, o cumprimento de mais do que lhes esteve na origem: é que se foram instrumento de troca e de civilização nesse tempo, sobreviveram até hoje em dia, forjando-nos um sentimento de pertença ao mundo ocidental, de ontem e de hoje, que muito nos orgulha. O sentirmo-nos também romanos é algo de estruturante em nós, região e país. Este sentimento de identidade e a sua assunção como um valor é, talvez, uma dimensão que o livro tem e que ficará para os elementos da sua Família que hão-de vir. Que o experimentarão ao, um dia, lerem o livro. Um livro que é, lido assim porque o autor assim o soube escrever, muito mais do que um trabalho de história ou de numismática. Também por isso fica agora, afinal!, arrumado à mão, na estante dos meus livros de consulta.
Bem haja por um livro tão bom!

Moedas Romanas – Achados no Alto Tâmega e Barroso, de Fernando Cantista Pizarro Bravo, Dep. Legal 241819/06, Edição da Câmara Municipal de Chaves, 2006

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Portugal Republicano e Portugal Monárquico: o transe de um povo aflito

Texto resumido de uma comunicação feita no Arquivo Distrital de Bragança em Novembro, no âmbito das comemorações da Implantação da República, nas palestras “ A República no Distrito de Bragança”. O tema da comunicação foi o da razão de ser do romance Um Tiro na Bruma.



Fragmento de granada incendiária
disparada contra Mirandela
no combate de 9 de Fevereiro de 1919,
pelas tropas realistas.

Sempre desconfiei da história quando ela é contada pelos vencedores: esquecem-se os argumentos dos vencidos e demoniza-se o inimigo, continuando-se a fazer cair sobre ele todas as famas de todos os males, mesmo depois de derrotado. Há disto imensos exemplos, de que nem vale a pena estarmos agora a citar casos ilustrativos porque de todos são conhecidos, quer se refiram a conflitos recentes quer a conflitos antigos.



Nesse tipo de história, são sempre heróicos os gestos dos vencedores e desprezíveis os actos dos vencidos quando, na realidade, pode ter havido heroicidade de ambos os lados tal como pode ter havido – houve, certamente – actos reprováveis de ambos, também.


Normalmente “quem se trama” sempre é o povo, entendido “o povo” como toda a massa que é arrastada pelos acontecimentos e não como classe social. Apesar de sempre muito elogiado e usado como motivo, como argumento ou como cortina de fumo, o povo não só “paga as favas”, para usar uma expressão eloquente por si, como se vê obrigado a engolir em seco os silêncios politicamente correctos e a acenar de assentimento – quando não a ter de cantar a vitória – às palavras e actos dos novos vencedores, também numa lógica do politicamente correcto, entenda-se, do jogo pela sobrevivência do mesmo povo...



Acontece isto também com as famílias e com a sua crónica, depois de terem passado por períodos de prevalência de uma perspectiva a partir de um dos seus ramos ou após algum sobressalto fracturante que as tenha desestruturado ou colocado em dificuldades. Nas famílias também se enaltecem ou se depreciam caracteres e percursos, ao sabor do critério dos que contam essas crónicas. Também há os santos e os pecadores. E os demónios. Na vida das famílias, tal como na história, aparece, à mão ou na boca de quem conta, um bode expiatório para fazer o papel. Quero dizer, não aparece, é lá colocado, tal como fazem os vencedores na política e nas tragédias de um povo. Se, para estes, esse papel é fácil para dele serem investidos os vencidos, para os dramas familiares mais ligeiros está sempre uma sogra à vista, para os mais pesados há sempre um ex-cônjuge que terá traído os votos do compromisso matrimonial, ou da sua união sentimental, e que terá dissipado o seu capital de bens e de bom nome. As famílias e a história estão cheias de exemplos destes, de anjos exemplares e de filhos pródigos de quem se conta a parte rebelde mas de quem se esquece, propositadamente, já se vê, de contar antecedentes, condicionantes ou de revelar o verdadeiro final. No exemplo do Evangelho, porque se trata de uma parábola contada por um autor que dispensa adjectivos, o drama é-nos contado completo e substantivo mas na nossa vida já não é o caso…



…tal como não o foi para mim quando comecei a perceber como era a história de vida do meu Avô Amadeu. Que morreu mais de uma década antes de eu nascer. Médico, arrivista (era de Alijó e veio viver e a casar em Macedo), republicano, muito culto, muito senhor das suas opiniões, muito mulherengo, mesmo muito mulherengo e gastador do pecúlio familiar. O contraponto da minha Avó, senhora de Macedo, monárquica, também culta, também senhora das suas opiniões, fiel ao seu marido e filhos, muito fiel ao seu marido e filhos apesar dos que a cortejaram mesmo depois de casada e que exploravam o tentar adoçar, junto da Micas, tal era o seu petit-nom, o lado amargo de se saber traída. Aos quais nunca cedeu. Tinha sido educada na convicção de que os prazeres proibidos não são maneira nem de curar o orgulho ferido nem, muito menos, de conservar a autoridade inatacável da posição em que o marido a colocara. Várias vezes o Avô Amadeu precipitou as finanças familiares em situações difíceis, várias vezes a Micas teve de acorrer, com jóias ou com legítimas de herança, para saldar contas e calar usurários. O Avô acabou por morrer, em meados dos anos quarenta, e a avó sobreviveu-lhe uma década e meia. Durante esses anos, passados no pós-guerra e na década de cinquenta, a Avó continuou a ser um esteio da família da maneira como são as Avós: espalhando sorrisos e contando histórias aos netos, estando sempre atenta para ser seus cúmplice nos pequenos caprichos que deixam saudades. E continuou a fazer o que sempre tinha feito ao longo da vida: a ajudar os pobres, a valer com uma palavra ou com um gesto a todos os que lhe chegavam ou de quem lhe chegavam vozes aflitas. E a ajudar, depois de o meu Avô morrer, para cúmulo, algumas daquelas que se encontravam desamparadas e o tinham tido nos braços, em vida…

Claro que, com um tão grande período de sobrevivência da minha Avó sobre o meu Avô, a história dele chegou até mim com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Neste caso, sobreviventes. Ainda por cima, pessoas que tinham tido convívio com a minha Avó e às quais, inconscientemente ou conscientemente, tinha “comprado” uma versão dos acontecimentos com o seu desvelo.

Em casa não se falava, praticamente, do Avô, a não ser para se exclamar “não te ponhas como o Avô” quando alguém discutia de uma determinada maneira ou adoptava um determinado comportamento. Quando eu perguntava a alguém pelo Avô, em Macedo, a conversa em menos de um minuto estava invariavelmente centrada na minha Avó: “uma Senhora, muito bonita, tão boa para todos, tão infeliz com o seu Avozinho…”. Sobre o Avô, nada ou quase. E quando eu, caso a caso, comecei a agarrar uma palavra a este, outra àquele, sobre o Avô, comecei então a descobrir que a realidade tinha sido outra. Não radicalmente diferente mas outra, simplesmente. O Avô tinha tido qualidades, afinal. Também defeitos inegáveis, sem dúvida. Mas não era aquele ser de quem nem se poderia falar!

E comecei a perceber que muitos dos que logo me falavam da minha Avó, ao serem interpelados sobre o Avô, tinham sido, directa ou indirectamente, beneficiários da caridade da minha Avó…

Ora, quando comecei a querer contar esta história e a situá-la na sua época, no início do século XX, na transição da Monarquia para a República, comecei a investigar passo a passo todo esse período mas de uma forma autêntica e directa. Ou seja, em vez de me por a ler obras daqueles que sobre esse período escreveram com este ou aquele partis pris ideológico, pus-me a ler os jornais, as revistas, os romances e folhetins que nesse tempo se liam. Pus-me, dessa maneira, a viver na realidade da época. Foi fascinante. Segui o decurso de meses e anos lendo o Diário de Notícias e muitos outros jornais que se publicavam, folheando e vendo as fotografias da Ilustração Portuguesa e doutras revistas e almanaques, seguindo o dia-a-dia dos acontecimentos. Mas como, ao mesmo tempo, eu lia também os livros de autor escritos sobre essa época, comecei a notar uma diferença enorme entre o que era a percepção do que acontecia no dia-a-dia, que eu fazia para mim ao ler os jornais e outros documentos, e aquilo que sobre isso era contado pelos tais autores de livros sobre essa época. Comecei-me a dar conta que havia um distorcer da verdade, entendendo como verdade o desenrolar dos acontecimentos e a sua cronologia, critérios necessários para que a história possa ser objectiva. E então percebi o que estava a acontecer: a história que nós conhecemos sobre a Implantação da República, a que nos é contada desde a escola primária, não é mais do que a história contada pelos vencedores, com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Ainda por cima com uma agravante: é-nos contada para camuflar não só uma realidade diferente mas, muitas vezes, uma realidade inexistente! É incrível! O que se passou na realidade é de tal modo diferente do que tantos hoje afirmam que, para quem souber e conhecer verdadeiramente esse período, toda a nossa história subsequente sobre o século XX ganha uma nova leitura.

Fiz uma descoberta, em certo sentido, infeliz e que me tem trazido triste nesse assunto: a de que havia e há uma conspiração, de muita gente que escreve e que dá opiniões, que ainda hoje persiste, uma conspiração que não é apenas contra a monarquia ou a favor da república mas que é muito pior: é contra a verdade.

Descobri, assim, que havia um paralelismo entre o que se dizia ou não dizia sobre o Avô Amadeu, em nossa casa, e o que se diz ou não diz por todo o lado sobre o que foi o fim da nossa Monarquia e a vigência da nossa Primeira República. E decidi-me a escrever sobre isso. Escrever um ensaio, argumentar, envolver-me em discussões que não levam a lado nenhum na maioria das vezes? Não. Preferi tentar escrever um romance sobre esse período. Um romance baseado na realidade. Foi assim que nasceu Um Tiro na Bruma.

Que isto não sirva apenas para se dizer que “afinal nem o fim da monarquia foi assim tão mau nem a república assim tão boa”. Não. É muito mais do que isso. Porque há, no fim de contas, vencedores e vencidos. Nestes últimos está sempre o povo, entendido na acepção referida acima, e esteve, quase sempre, a verdade. O que me deixa com uma esperança: a de que, apesar de tudo e contra tudo, ela venha a prevalecer e, com ela, nós venhamos a poder, um dia, sair triunfantes das dificuldades do nosso dia-a-dia.

O verdadeiro sacrificado, na transição da Monarquia para a República, foi o povo. O povo viu-se mesmo aflito, depois do 5 de Outubro. Com fome, doente, obrigado a combater, a morrer, a vestir-se de luto, impedido de rezar por decreto. Ainda por cima com uma conjuntura de pavor: caíam as monarquias e os impérios, assistia-se a uma destruição sem precedentes, com máquinas e venenos sem precedentes, a batalhas e desastres antes inauditos, a epidemias de escala total que não poupavam ninguém. As greves, os tiroteios nas ruas, os saques e assaltos das lojas e casas, os meses de trabalho sem soldo, os atentados e assassinatos constantes faziam da intranquilidade e do medo uma vivência permanente. O povo pensou que o mundo ia acabar – e imediatamente. Foi uma época vivida em transe e com uma grande aflição. Uma época difícil, extremamente difícil.

Mas são precisamente essas épocas difíceis que nos devem merecer olhá-las e invocá-las com todo o respeito. Respeito pelos que a viveram e lhe souberam sobreviver. Respeito pela sua verdade. Em nome deste respeito nos propusemos deixar o nosso testemunho.

sábado, 18 de dezembro de 2010

MÚSICA

Habituei-me desde muito cedo a estudar com música. Gira-discos (primitivíssimo, um Dual portátil que era da minha irmã mais velha e que funcionava a pilhas) ou rádio (pré-histórico, um Phillips 38 a válvulas com esplêndido som, que o meu pai prezava muito e que quando se ligava tinha primeiro de aquecer e emitir um característico Hhummm!), a primeira coisa que eu fazia antes de abrir os livros e os cadernos na mesa do quarto era sintonizar o posto (o canal dois da Emissora Nacional ou o Rádio Clube Português) ou colocar um disco no prato (as Sylphides de Chopin em 33 rotações ou o Grand Hotel dos Procol Harum, que a minha irmã Pilar tinha trazido de Inglaterra, ou ainda os 45 rotações da Suzi Quattro que se esgotavam num ápice). Mais tarde, já na faculdade, passou a ser a RFM a onda de eleição que me tem acompanhado até hoje, em casa ou no carro, se bem que quando estou diante do écran do computador faça grandes variações com emissoras de países longínquos on-line ou com escolhas do Youtube. Enquanto estou a escrever este artigo, tenho estado a ouvir Rachmaninoff, o segundo concerto para piano e orquestra, muito romântico e arrebatador, cujos clips vou partilhando no facebook…


Música! Conjunto de sons capaz de produzir superiores sensações, capaz de nos fazer sorrir e de nos levar às lágrimas em menos de um estalar de dedos. Um estímulo à criatividade, à reflexão, à comunhão. Música! Fantástico denominador comum que junta no mesmo sítio, para assistir e participar num concerto, seja ele clássico ou pop, as pessoas mais diferentes nas suas ideias, no seu modo de estar na vida. No filme A Missão vê-se qual foi a ponte que os Jesuítas estabeleceram com os Índios para ultrapassar, num primeiro passo, o abismo civilizacional que os separava: música, Bach, como pedagogia do princípio de uma relação cultural e religiosa!

O ensino da música deveria ser obrigatório e deveria ser ampliado em todas as escolas. Ainda no número de Novembro último da Scientific American, prestigiadíssima revista científica de divulgação e debate, vem um artigo em que mais uma vez se refere que as nossas capacidades de aprendizagem se ampliam pelas profundas e perduráveis mudanças que a música é capaz de produzir no cérebro. “As escolas deveriam aumentar as suas aulas de música em vez de as cortar”, escreve-se. “A prática musical desenvolve as capacidades de prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. A música não é nem deve ser um extra, mesmo que os orçamentos sejam apertados. Aprender e tocar um instrumento, para lá do prazer imenso que proporciona, aumenta a capacidade de aprendizagem e tem um efeito benéfico sobre um cérebro em desenvolvimento”.

A música tem ainda o condão extraordinário de preencher o tempo, de ultrapassar em muito o simples entretenimento. É uma das nossas melhores companhias e não só para estudar. É uma excelente companhia para nos ajudar a passar os momentos de crise. Devia haver muito mais música na escola e na vida.

(Este meu artigo foi publicado no último Mensageiro de Bragança, se bem que com alguns pormenores modificados)