domingo, 11 de novembro de 2012


FILIGRANA E O CONSÍLIO DOS GATOS

Miguel Midões, Chiado Editora, 2012
Texto da apresentação feita na Poética, em Macedo de Cavaleiros, do livro do Miguel Midões
 

Meus caros amigos

Tenho que começar por um grande agradecimento por ter sido convidado para apresentar este livro: é que quando aceitei não pensei que estivesse a ser convidado para apresentar não apenas um livro mas uma obra de arte! De facto, as ilustrações notáveis de Rute Bastardo, remetendo-nos para o universo de Os Aristogatos, da Disney, mas com um brilhante estilo muito pessoal e peculiar, predispõem-nos imediatamente para a história que se vai seguir, seduzindo-nos como nos gostaria de seduzir a Filigrana, uma gata com vocação para ser queque, não uma queque qualquer mas a queque mais queque da sua cidade, mais queque da sua região e mais queque do seu mundo!

Daí o meu agradecimento ter de ser não um simples agradecimento mas o agradecimento mais agradecido ao autor, mais agradecido à ilustradora, mais agradecido à Poética e mais agradecido a todos os ouvintes aqui presentes que são os ouvintes mais ouvintes da nossa cidade, da nossa região e do nosso mundo!

Tenho que trazer aqui alguns pontos prévios, declaração de interesses: o autor foi e é meu amigo, foi e é um profissional com quem tenho a sorte de lidar desde há uns anos a esta parte (não sei se depois de hoje as coisas ficarão exatamente na mesma…) e, também, um cliente, precisamente por causa de um gato, o Inca, frequentador do meu consultório e alvo das minhas idas a sua casa na Alameda Nossa Senhora de Fátima, aqui em Macedo de Cavaleiros. O Inca, um sortudo felino que seria um pretendente ideal para a Filigrana, nem sei mesmo como é que o Miguel não tratou desse arranjinho…

Mas estes pontos prévios sobre o amigo, o profissional e o cliente colocam-me na posição de me poder dar à liberdade que se pode ter com um amigo, contando com a sua inteligência e argúcia profissional e ainda com o favor de ser cliente a quem se dispensa uma atenção, para com isto lhe dizer, abertamente, que não vou apresentar o seu livro. Não precisa.

Um homem que tem uma família como a sua, o Santiago, o Ricardo e a Cristiana, cumprindo a parte mais importante da trilogia de ter um filho, escrever um livro e plantar uma árvore, tem tudo para que tudo o mais seja dispensável. Por isso, compreende-se que a minha tarefa de hoje seja perfeitamente dispensável.

Daí que eu não venha aqui fazer a análise literária de Filigrana e o Consílio dos Gatos ou fazer o perfil psicológico dos personagens ou da trama em que o escritor os enredou. Não é preciso.

Trata-se duma história da Carochinha e do João Ratão, vista ao espelho, vista do outro lado do espelho como se fosse uma das portas para o mundo de Alice[1]. É uma metamorfose que vem do recôndito do nosso passado infantil, é certo, para o mundo infantil de hoje, é também certo. Mas que está para lá da literatura e da sua pretensa infantilidade. Aliás, está para cá. Porque nós conseguimos rapidamente perceber que a frivolidade de Filigrana não é uma frivolidade tola, seca e oca… é, antes, uma frivolidade intencional do escritor que com ela enfeita uma gata lambida de intencional orgulho[2]. Gata essa que pode nem ser feminina na vida real, pode nem ser queque na vida real (tomara ela, ou ele, a ou o da vida real, ser queque!), pode bem ser uma mera mas extraordinária garatuja de gata feita com as garras numa parede em que quer apanhar um inseto, desenhando com isso a caricatura de alguém que por aqui percorre as ruas connosco, no meio de nós, apertando a mão, com quem o autor terá travestido toda uma cena de realidade.

Só que Filigrana tem a sua personalidade e por muito tola, seca e oca que possa ser, é livre de a ter, tal como todos nós somos livres de ter a nossa.

Já, de certeza, todos viram gatos a brincar com um novelo de lã. Se o novelo começar a desfiar, a sua meada acaba por enredar-se, no espaço e no tempo, com os gatos numa interminável agitação, focada naquela brincadeira. Até que terminam subitamente e a abandonam, indo para outro lado, fazer outra coisa. É a sensação – uma das sensações – com que ficamos da leitura deste conto.

Podemos lê-lo de muitas maneiras, tentando perceber não só a Filigrana mas também todos os outros, mesmo os mais fugazes ou apenas figurantes, com todas as cores, o preto e branco do carvão, os cheiros e ambientes, a cabeleireira que deixa a sua loja para ir ao encontro da vida real e premente... Toda a encenação, todo o poder que surge a captar como alternativa a vida de Filigrana, aparente e misterioso (misterioso?!) daquilo que na vida nos serve para desviar e até bloquear da verdadeira vida, o Consílio (que o autor escreve significativamente com um s…). Este consílio é muito mais do que uma criação literária, é uma transposição de algo medonho que incorpora alguns arranjos sociais que pretensamente agem para bem da sociedade mas que são fatores de desigualdade e de antidemocracia. Para se ser do consílio teríamos de abdicar da nossa cor, da nossa personalidade. Nunca nos pediram que abandonássemos a nossa cor como condição para se ser dum consílio?

Este conto é um conto infantil mas que não é um conto infantil. É bem um exercício maduro sobre uma intuição e uma sabedoria de vida que o autor resolveu escrever e publicar para sinalizar um percurso e para poder colocar, de uma forma indelével, um sinal de perigo e de advertência que entende útil para os seus filhos ou para quem o quiser e souber ler. Ao bom estilo do que se encontra cifrado nas fábulas antigas.

E, creiam-me, há muito de Macedo neste conto. Os seus gatos gordos e postados à porta, os seus consílios, os buracos negros e secretos com que alguns querem ser mais gatos do que os gatos – com que alguns pensam que são mais gatos do que os outros gatos…

Mas vir aqui falar de gatos é impossível sem que nos remetamos para Fialho de Almeida[3] e sem que desejemos ser gatos:

 «Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato. Ao crítico deu Ele, como ao gato, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a câlinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes e terrível com agressores e adversários. [...] Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato – isto é, o animal de trabalho, o animal de ataque e o animal de humor e fantasia – porque não escolhermos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro.»

Também isto, intemporal e universal, se poderia aplicar a Macedo…

Mas não nos desviemos da essência que aqui nos trouxe, a todos, num sábado, convocados pelo Miguel Midões: a essência do que é importante. A essência do que é mais importante na nossa cidade, é mais importante no nosso mundo, é muito mais importante na nossa vida. E o que é importante é, afinal, darmos razão à Pintas, a amiga, verdadeira amiga de Filigrana: o mais importante é estarmos rodeados de amigos!

 

 

Latães, 13 de Outubro de 2012

Manuel Cardoso



[1] Alice no País das Maravilhas e Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carrol, pseudónimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1838).
[2] Sobre a frivolidade aparente dos contos e fábulas veja-se “Uma Rosa” in Os Imperdoáveis, de Cristina Campo, Assírio & Alvim, 2005. É imperdoável não ler Os Imperdoáveis, de Cristina Campo…
[3] Os Gatos, Fialho de Almeida (1857-1911).

domingo, 7 de agosto de 2011

A SERRA DE BORNES

Iniciamos a publicação de uma série de artigos que têm estado a sair mensalmente n'O Comércio de Macedo, sobre a Serra de Bornes. Este foi o primeiro.

A Serra de Bornes vale mais do que um artigo. E vale bem. A sua silhueta é inconfundível, cheia de carácter, o perfil de uma mulher deitada para os mais poetas. Dizem os peritos que geograficamente é uma montanha. Sê-lo-á. Montemé chamavam-lhe os antigos, Montoio diziam ser o nome da parte mais baixa, que desce para Caravelas, Cedães e Vale de Asnes. Serra de Chacim era o nome de quem a via a partir de Balsamão. Serra de Soeima, para quem a vê de Sul, do vale profundo da Ribeira de Zacarias. Para nós, mesmo no século XXI, é a Serra de Bornes!


As memórias antigas também a dão povoada de javalis e corços, tal como agora a conhecemos. Couto de lobos (de poucos lobos, infelizmente…) nos vales que a sulcam, com guarida certa nas matas de carvalhos e castanheiros que a cobrem de forma magnífica. O colorido da serra está nestas matas e nos tons das encostas, de um verde cambiante misturado com a cinza dos troncos dos carvalhos, e das folhas profundas dos castanheiros com mais verde e vermelho-fogo, no Outono. Quem nunca experimentou o que é andar nestas matas quando a folha está prestes a cair, não experimentou a sensação incrível de se embriagar de cores e dos cheiros fortes que a natureza dá. Cores com cheiro - e sem ser de flores. Matas em que se pode andar também agora, na Primavera, com os rebentos a querer brotar, com a seiva a despertar para a pujança da serra.

Quando se vai de Carrapatas para os Cortiços e se olha para a serra, vê-se mudar de cor com o andamento do carro e com as horas do dia. Vê-se mudar. Há dias em que parece mais perto, outros mais longe. Desafia a observação e alimenta a imaginação. Tal como de manhã, ao descer-se de Latães em direcção a Macedo, a serra parece comungar da nossa pressa em começar o dia. As ventoinhas aceleram a essa hora. O seu contorno ergue-se acima da bruma da manhã que corre no vale, misturada com o fumo das lareiras a acender-se. Castelãos, Vilar, Grijó, Vale Benfeito e Bornes aparecem a essa hora como uma pincelada de um pintor desatento, garatuja feita a traçar estradas e obras.

Para lá de tudo o que se possa pensar, a serra consegue surpreender-nos. Uma tarde, ao vir de Espanha por Vinhais, ainda longíssimo, de repente, sem contar, quem é que aparece lá muito ao fundo, no horizonte, cinzenta-azulada a espreitar sobre os montes mais próximos? E de outra vez, no fundo da veiga de Chaves, decididos a ir ao castelo de Monforte do Rio Livre, quem é que vemos num recorte nítido, quase tão azul como o céu, sobre o castanho dos montes do planalto? Ao percorrer-se o planalto de Carrazeda, o chão da Vilariça, as encostas do Reboredo ou o planalto de Mogadouro e Miranda, quem se impõe omnipresente, correndo lá longe onde a vista alcança?

O emprego feito acima da palavra “quem”, é porque a sua presença é mais do que a dum mero acidente físico, é a duma entidade que há milénios pontifica no centro da nossa região. Não seria compreensível o nosso espaço sem a Serra de Bornes. Tal como em tempos terá dividido povos, hoje marca o território, chamando a atenção com os seus 1212 metros com uma serenidade familiar de quem quer ter à volta uma família de gente.

À hora do por-do-sol a serra não desaparece. Brilha na obscuridade, noite dentro. Então hoje em dia, com as luzes das eólicas, afirma bem a sua existência. Mas abstraindo desses flashs brancos e vermelhos, brota luar de dentro de si, fica prateada em Janeiro, em noites de geada, fica prateada em Julho e em Agosto, nas noites em que o calor a envolve.

A Serra de Bornes vale mais do que um artigo, pois vale. Iremos falar da Serra de Bornes nos tempos mais próximos!

terça-feira, 17 de maio de 2011

Ti Manel Xeringa, de Carla Ferreira

No passado dia 13 de Maio, no CC de Macedo de Cavaleiros, coube-me a grata tarefa de apresentar um livro. Todos nós conhecemos muitos tipos de livros. Uns são de poesia, outros são romances, outros de contos, outros de ensaios, técnicos, cor-de-rosa, grossos, finos, tudo o que quiserem. Mas o que eu estive a apresentar é um livro especial, muito especial. Porque é um livro sobre a ternura.


Ti Manel Xeringa, de Carla Ferreira, é uma colecção de emoções, de amor e regresso à infância, de amor e respeito pela velhice.

Foi fácil apresentar este livro porque a autora escreveu nele tudo o que há a dizer numa apresentação: a “breve nota” com que o abre tem tudo - até da alma de quem escreve - escancarada como nos coloca a revelação do seu locus amoenus, Nozelos: “um lugar onde todos se conhecem, homens fabricados pelo trabalho duro da terra, mulheres de luta e crianças felizes. Histórias que segui com admiração e que sem as quais nunca agradeceria com veracidade tudo o que tenho e sou. Vidas simples, sem grandes ambições, gente que chora as derrotas e celebra as vitórias. Tenho orgulho em pertencer a este lugar, onde as brincadeiras ao ar livre, no meio da rua, com paus e pedras como brinquedos, as aventuras eram reais e todos eram heróis e heroínas.”

Trata-se de um livro de histórias evocadoras de momentos e vivências da infância da autora, passada na companhia do avô - o Ti Manel Xeringa - nos períodos de férias. Histórias reais que celebram uma infância à qual a autora se agarra como elemento basilar da sua concepção do mundo. Em todas elas há uma dinâmica própria que gira na órbita da vida de ambos e uma preocupação de respeito pelos valores da família forjadores de um carácter, não no sentido piegas nem balofo mas no sentido mais puro do que as palavras querem dizer, no seu sentido mais arcaico e perto das raízes - Nozelos é um lugar arcaico e enraizado nos primórdios, na volta de um rio, encaixado num vale em que os nossos avós pré-históricos acharam a facilidade da água e a bondade da terra. Estando-se em Nozelos, o horizonte à volta corre muitos metros por cima e só se vê um entorno de montes e o céu, um curto céu. Se a vista não chega, há a imaginação. E nesse mundo entre a casa, as hortas e olivais, a rua e a igrejinha, cresceu a sólida relação entre avô e neta cujo atravessar do tempo nos conduziu a estas páginas.

Não é preciso dizer quem era o Ti Manel Xeringa: foi um fazedor, um fazedor de encantos, um descobridor da beleza, o pedagogo da noção de estética, de belo e de maravilhoso a uma criança. É o personagem cerne deste que também é um livro de memórias. Memórias não só da infância como de um velho ciclo, tão antigo como a civilização, em que o homem vive nos seus ritmos à medida dos dias, do sol, da lua, do tempo que leva o milho a crescer e a azeitona a ficar preta.

Comecei por dizer que se trata de um livro de ternura. Termino a dizer que o livro em si termina também com ternura. Não só a do presépio, que nos aparece nessa última história como uma inesperada novidade num tema em que a novidade é difícil, não só a dos presentes dados pelo Menino Jesus em dia de Natal. Mas porque o Ti Manel Xeringa, ao dizer que “Deus seja louvado por tudo isto!” queria dizer, cheio de ternura, que esse “tudo isto” era a família unida e feliz. Síntese tão bem feita, do tamanho do mundo, só é possível a uma pessoa, neste caso a Carla Ferreira, capaz de ter em si “todos os sonhos do mundo”…

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Rio Azibo

O Azibo em dia de cheia em Vale da Porca. Foto de Adérito Choupina.
Temos vindo a percorrer, desde há uma dezena de artigos, o rio Azibo, desde a sua nascente, em Rebordainhos, até à sua foz, no Sabor. Mas ainda não chegámos lá. Nem chegaremos hoje. Tínhamos ficado, na nossa última etapa, pelas imediações da Ponte de Balsamão, também chamada de Ponte da Paradinha de Besteiros, por onde se pode alcançar a Sobreda. É um bom momento e um bom sítio para pararmos e fazermos alguma reflexão, antes de continuarmos. É que se o passeio por um rio é uma boa maneira de passar o tempo, de distrair e de descontrair, de espairecer por outros sons, aromas e paisagens que não os da rotina do nosso dia a dia, também é uma boa oportunidade para pensarmos. E hoje venho propor que se pense na confrangedora ignorância que temos acerca da nossa terra. À força de todos os dias pisarmos os mesmos passeios, dizermos o nome das mesmas aldeias e olharmos o mesmo recorte do horizonte, acabamos por já não ver, na sua variedade, interesse e beleza, a terra onde vivemos. Prendemo-nos a conversar e a discutir pormenores batidos e perdemos com isso o tempo de passear, de conhecer, de ficar a amar mais ainda este torrão onde se passa a nossa vida.


Porque não há só o Azibo, com Podence e Azibeiro, Santa Combinha e Vale da Porca, sempre as mais faladas. Nem há só o Monte de Morais. Nem tão-pouco a Serra de Bornes com o Monte do Vilar – o lendário Montemé. Se bem que estes só por si mereçam mais do que uma excursão, mais do que muitos fins de semana de visita e deslumbramento, desde Chacim a Malta e aos Olmos, a Grijó, Vale Benfeito, Bornes e Burga – onde nasce um rio, a Ribeira da Vilariça! Há a Serra do Cubo com Vale de Prados e Arrifana como ponto de partida, a medir a distância. Há a Serra de Bousende, com os seus mistérios, lendas de pedra e lumes velhos em Soutelo, Vilar de Ouro, Cabanas, Espadanedo e Valongo, a sua paisagem e a sua vista fantástica sobre uma boa parte do Norte de Portugal, sobre Espanha, sobre o nosso próprio encantamento de a poder desfrutar. Há Edroso e o seu Santo António, a velha Moimentinha, com um caminho histórico para Comunhas. Há o rio de Macedo, com as suas margens de uma inacessibilidade de descoberta e sensação de se estar num destino turístico digno de uma reportagem do National Geographic Magazine, salpicado por escavações à procura de fortunas de que as Minas de Murçós são a eminência mais visível. Há a ribeira de Carvalhais, com as suas histórias desde Castelãos, os seus fundões misteriosos e todo o vale encravado entre a Cernadela, os Cortiços, Carrapatas e os termos de Bornes e Vale Benfeito. Há a Serra de Ala, espreguiçada desde o Morgadio e o Cabo dos Cortiços, a passar pelo Monte do Facho, montes de Pinhovelo e Vale Pradinhos, estendendo-se à Santa Madalena da Amendoeira, à Senhora do Campo de Lamas, a Gradíssimo e à Senhora da Guia de Nogueirinha, às Alturas de Latães, às encostas para a Carrapatinha e Chorence, para Corujas e para a Ribeira de Codes, todos os dias percorrida por javalis, corços e veados que se descobrem nos amanheceres e nos pores-do-sol que aqui adquirem umas tonalidades de filme de ficção. Pelo meio fica o planalto de Sesulfe com o Convento das Flores, do Brinço com o São Roque.

Para Norte, esses vales silenciosos mas cheios de vida que cercam os serros de Ferreira e Mogrão, de Meles, que cavam vistas abruptas entre as Arcas, os Vilarinhos do Monte e de Agrochão, que se dirigem a Nozelos e ao Tuela onde Argana, Vila Nova da Rainha, Fornos de Ledra e Lamalonga testemunham os velhos itinerários de que a história, a História, também passou por aqui, a falar latim e a falar idiomas arcaicos.

É um crime que se desconheça o nosso concelho! É um crime cultural conhecer Peredo só pela estrada nacional, ir ao Lombo e não sair da aldeia, passar em Castro Roupal, em Vinhas, em Salselas ou em Valdrez e nem perguntar ao menos porque é que aquelas terras terão tal nome, de que é que viviam os que dantes nelas fizeram as suas primeiras paredes. Que é que lhes fica à volta? E se então os nossos dias nos levarem a Talhas, a Lagoa, a Gralhós, a Bagueixe, a Talhinhas, aí temos um mundo a descobrir que nada deixa a desejar de tantos sítios bem longe que vemos na televisão. Os velhos caminhos entre as povoações não nos levam só a destinos desconhecidos: levam-nos até ao destino certo de uma aventura.

E se nos vendassem os olhos e só no-los destapassem nalguns pontos da Ribeira de Vilalva (ou ribeira de Vale de Moinhos) ou nas encostas sobre o Sabor, então diríamos que fora mágico o tempo decorrido no breve espaço em que nos tinham levado até ao cenário de capítulos de um livro de cortar a respiração! Quem não tiver ido aos Castelos, a Talhas ou em Lagoa, e não tiver estado um bocado em silêncio e respeito, a olhar a água lá em baixo, não sabe de todo de que a nossa terra também é feita de algo arrebatador e que nos cala.


Para o próximo mês continuaremos a descer o Azibo. Mas pensemos desde já em conhecer o resto – e o resto é muito mais! E para os que passam a sua vida na cidade, entre Macedo e Travanca ou nas aldeias mais perto, todos estes destinos a minutos de casa valem por muitos a horas de voo! Podem crer.



Manuel Cardoso



(artigo número 10 da série sobre o rio Azibo que foi publicada em 2010-2011 no jornal O Comércio de Macedo).





sábado, 26 de fevereiro de 2011

A ARCA DE MÚSICA

©Manuel Cardoso


Numa velha arca, no meio de papéis ratados,

Apareceu uma folha de música.

Muito antiga, manchada dos anos, de sangues, de tintas,

Com pautas de quatro linhas, vermelhas, riscas à mão.

Só de se olhar nela se ouvia o cantochão,

Forte, profundo, de lentos hinos cantados,

Ecos nas pedras da abóbada, nas colunas gémeas dos claustros.

Sons que iluminavam vitrais doutros tempos de conversão.

Tapando a folha, parava o canto.

Seria feitiço ou coisa de santo,

Sortilégio assim?

Dizia-se que essa velha arca fora um dia,

Tirada do coro, (antes servia de baú de pergaminhos de músicos),

Relegada para um canto, desprezada!,

Para um canto escondido da abadia.

Dizia-se que nela um noviço se sentara,

Num ensaio de canto de horas esquecidas,

E se distraíra na surpresa de um perfil

De uma dama que a ouvi-lo se detera.

- De onde vem tão bela voz? Dissera ela.

- Da arca! respondeu ele, emudecendo.

Ficando roxo de tal presença, preso de tamanho encanto.

E aflito. Que dizer ou que fugir?!

Mas ficara. E ela, aproximando-se, acreditando na palavra tonsurada,

Deu alguns passos, olhou para ele e a abriu.

Um canto celeste então se ouviu,

Em latim, a voz dos anjos que há cá na terra.

Fugindo, o noviço não mais parou até ao pátio,

Deixando atrás de si caída a folha.

Ela a tomou, a enrolou e a guardou.



Que ali há bruxa, que ali há demo, que ali há…

Sufocando, não mais atinou nem com o canto nem com ela.

Para sempre gago.

Ninguém viu a senhora do perfil,

Nem então, nem nunca mais.

Diziam ao noviço que atarantava:

- Foi visão, foi das horas do jejum, nada demais!

Mas ele teimava em que não, que em carne e roupa a vira ali.

E apontava, olhando o coro, de cá de baixo, com mui temor.

Levaram-no de braços até lá acima: lá estava a arca.

Fechada e muda.

Levantaram a tampa pela dobradiça. Silêncio e pó.

Cheiro de tinta, de ceras de pergaminho.

E então ele, pegando a folha, pautas escarlates, ali pousada,

Depressa pensou, coisa tão louca!

Que alguém tivera que a trazer, que a arrecadar.

Fez o gesto de a desenrolar, seria um cabelo?!

Um hino celeste então se ouviu,

Em latim, a voz dos anjos que há cá na terra, um canto belo.

Fugiram todos sem mais parar.



(É então que jogral ou bufo pega em barrete,

Com ele na mão o estende à gente,

Sorriso franco e voz de falsete:

Uma moedinha, senhores, uma moedinha…)



E recomeça:

Numa velha arca, no meio de papéis ratados…

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Cónego António Figueiredo

Mais do que por objectos e obras de arte em si, a vida das pessoas é tocada pela vida de outras pessoas. De uma forma intensa e que, por vezes, se torna indelével. Quando as pessoas que nos tocam têm essa faculdade. O Cónego António Figueiredo tinha-a.


Conta o escritor António Pires Cabral que, quando estava em férias em Grijó e era visitado pelo Senhor Cónego, ambos conversavam e este se interessava, primeiro, por saber dos seus trabalhos literários e, só depois, divagava na conversa, falando de um modo bondoso, sereno e fidalgo. Pires Cabral não diz bem só isso: diz no seu modo bondoso, sereno, fidalgo, como se fosse uma característica rara e quase exclusiva do seu interlocutor. E acrescenta: “quando saía, tinha deixado comigo um pouco mais de sabedoria, um pouco mais de bondade”. É uma forma eloquente de resumir todo um homem. E o escritor ainda me veio a confidenciar que a bonomia do senhor Cónego lhe fora inspiradora.

Foi um dos homens que mais sabedoria e bondade manifestaram na vida, entre aqueles que nasceram em Trás-os-Montes. Um homem que não se deixava ficar por compreender “os mínimos segredos da sabedoria popular – mas de amar”.

António Henrique de Figueiredo Sarmento nasceu no Vilar do Monte em 11 de Outubro de 1902. Frequentou a escola primária em Castelãos e no Vilar do Monte, e fez exame na escola da Praça das Eiras, em Macedo. Em Bragança, estudou no liceu até ao 5º ano, concluído o qual declarou em casa que iria deixar de estudar.

Tanto os pais como os avós maternos tentaram dissuadi-lo da desistência. Não o conseguindo por palavras, usaram de uma pedagogia experimentada por outros. Durante um ano foi encarregado de executar tarefas agrícolas na casa de lavoura da família tendo, no fim desse período, retomado os estudos por vontade própria. Terminado o liceu, foi estudar direito para Lisboa.

Conheceu nesse tempo uma série de pessoas que havia de acompanhar pelo resto da vida: João Ameal, Manuel Aguiar, Pires Avelanoso, Marcelo Caetano. Contudo, não se integrou perfeitamente no ambiente da faculdade e mudou-se para Coimbra.

Nesta cidade encontrou Manuel Gonçalves Cerejeira, então professor universitário, que o impressionou pela sua inteligência e capacidade de ver mais além. Passou a fazer parte do seu círculo de alunos e a participar em encontros. Veio a descobrir e a sentir-se bem com o ambiente e as novas ideias do CADC – Centro Académico da Democracia Cristã, uma associação de estudantes que, sob inspiração católica, personificava a ordem e era a resposta aos problemas e desafios que o século XX trazia consigo. Foi o seu refúgio estudantil num tempo em que a espuma da maré trazia os abundantes escolhos com que a primeira república deixava o país: à beira do caos, da ingovernabilidade, da cultura do anticlericalismo. Se a vida do dia-a-dia o obrigava ao contacto com a cultura vigente, as ideias do CADC punham-no mergulhado na onda da doutrina social da Igreja, na moral cristã e no pensamento político católico.

Concluiu o curso de direito em Coimbra e iniciou uma carreira de magistratura, despachado como delegado para Miranda do Douro e, depois, para Mogadouro.

É neste momento que se dá uma viragem decisiva para o seu futuro. A sua mãe morrera entretanto, amortalhada com o hábito da Ordem Terceira, e o ambiente vivido nessa época por alguém que era uma pessoa informada da sua circunstância e do mundo em geral, vieram reacender em si um fortíssimo desejo de ir muito para além da sua vida de magistrado. A própria vida familiar lhe impôs um constrangimento que o obrigaria a uma intensa introspecção.

De facto, a primeira vez que se sentira tocado pelo sobrenatural fora ainda em Coimbra, aquando de um retiro espiritual de estudantes católicos ligados ao CADC, no Luso. Agora, anos trinta, era com outra convicção, mais madura, sobretudo acesa pela desilusão com a justiça humana, que encontrava algumas respostas na religião que a vida jurídica se lhe recusava a dar.

O sentido de justiça/injustiça das decisões e dos actos foi algo que o preocupou toda a vida. Então, talvez que o seu impulso fosse de fuga, de algum modo. Escreveu a Marcelo Caetano dando-lhe conta da sua decisão de ir para Singeverga. O imponderável desequilíbrio da justiça humana tornara-se-lhe insustentável a ponto de sentir, por ela, quase uma repulsa. Poderia com esta linha de pensamento cair num pessimismo estéril mas, em vez disso, procurava uma outra via, um desiderato. Marcelo Caetano percebeu perfeitamente o alcance da decisão do amigo. Pediu-lhe que fosse a Lisboa antes de ir para o convento, despedir-se dos companheiros de estudo. Ele foi, sem estar à espera que os amigos lhe tinham previsto outro destino que não o do convento beneditino. Queriam que ele ficasse em Lisboa. Ficou. Assinou, com isso, o resto da sua vida.

Ingressou no Seminário dos Olivais onde foi ordenado sacerdote pelo Cardeal Cerejeira em 19 de Dezembro de 1942. A partir daí, havia de marcar gerações de sacerdotes como guia espiritual. As suas palavras eram especiais, sempre de uma força enorme na simplicidade e na delicadeza, tal como era a sua companhia, o saber estar presente tanto na vida de pessoas dos mais elevados estratos sociais como na de prostitutas ou de quaisquer proscritos pela vida, de quaisquer uns que se lhe dirigissem. Ainda há bem pouco tempo, numa Assembleia Plenária do Clero do Patriarcado de Lisboa, D. Manuel Clemente o indicou como modelo: “o Cónego Figueiredo Sarmento, com a sua profundidade espiritual e o seu sentido de humor foi o grande orientador de muitos sacerdotes”.

O seu elevado sentido de justiça, sensível à posição dos que ele entendia como injustiçados, actuou como uma mola a fazê-lo escrever palavras de solidariedade ao Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que, após a tomada de posse nesse cargo, se vira impossibilitado de regressar do estrangeiro à sua diocese por causa de Salazar ter discordado do conteúdo das suas Cartas Pastorais. Sem se preocupar, ao de leve que fosse, com as consequências que sobre si tal acto poderia verter – e que terão obstado a que pudesse posteriormente ter sido designado Bispo – escreveu: “Não estou ainda refeito da dolorosa surpresa que me causou a notícia ontem publicada nos jornais”. [fora a de que o Porto passara a ter, em vez do Bispo, um Administrador Apostólico] “Venho apresentar a V.Exª.Rev.ma os protestos da minha profunda veneração e dizer do meu desejo, que é também convicção, de que assim como V.Exª.Rev.ma nos encantou e instruiu com o brilho de inteligência culta, assim nos há-de edificar com o fulgor da Fé, da Caridade e da Fortaleza sobrenatural. Peço muito, e pena tenho de não ter méritos que valorizem os meus pobres pedidos, que o divino Espírito Santo una profunda e indissoluvelmente V.Exª.Rev.ma a Nosso Senhor Jesus Cristo e o encha dos seus dons. Esperando melhores dias, beija o sagrado anel de V.Exª.Rev.ma” [10.10.1959] .

Anualmente, nalguns dias de férias no Vilar do Monte fazia excursões de investigação pelas aldeias, silhueta inconfundível de negro e branco, em busca do património tão desconhecido dos nossos templos, num trabalho de inventariação fotográfica, pioneiro no género, com a ajuda do seu sobrinho-neto Alexandre de Carvalho Neto que conduzia e disparava a objectiva. Percorreu o distrito de Bragança como, provavelmente, nenhum outro antes dele. Escreveu textos sobre este tema que ainda hoje são lapidares. E apesar de tão grande esforço, que acompanhava com vasta erudição e trabalho de casa , mantinha uma postura de grande humildade ao divulgar a outros estes seus conhecimentos a que acrescentava, num acentuado cariz pedagógico, a preocupação prática de salvaguarda do património: “Ponhamos termo às considerações de um analfabeto mas não sem apontar, agora já com mais segurança, alguns dos inimigos da arte. O primeiro é a ignorância. (…) O segundo é o apetite do ‘novo’ e o fastio do ‘velho’ (…).” O terceiro é o de que “a mania do ‘novo’ leva às restaurações que em regra desvalorizam quando não inutilizam uma obra de Arte.(…)São incalculáveis os estragos das purpurinas e nova ‘encarnação’ de imagens. O quarto são as ornamentações das Zeladoras.(…) O quinto, a avidez do dinheiro”.

Como me lembro bem de com ele conviver no arquivo do então Registo Civil de Macedo de Cavaleiros, lendo página a página os velhos livros de assentos e comentando os detalhes mais pitorescos de alguns. Por exemplo o do turco Alvenvisar, capitão de mar e guerra de três naus, derrotado na Biscaia e que fugira até aqui onde se fez baptizar em 1716 com o nome de João Baptista, motivo para um dos seus artigos na revista Brigantia . Deixou-nos, aliás, uma série de artigos na revista Brigantia ainda de um outro âmbito, compilados posteriormente num livro intitulado Ambiência do Ano, que são um fresco vivo da vida de lavoura que ele conhecia e, como diz Pires Cabral, era capaz de amar.

É recordado amorosamente pelas pessoas do Vilar do Monte, de Grijó, de Castelãos, de tantos sítios.

Morreu no dia 11 de Abril de 1991, sendo então Decano do Clero do Patriarcado e Arcipreste Jubilado do Cabido da Sé Patriarcal. Está a decorrer um processo de beatificação deste mais do que ilustre macedense, trasmontano e português: um homem tão especial e tão santo.





1)In Nota Introdutória de A.M.Pires Cabral, Ambiência do Ano, Cónego António Figueiredo, Edição da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros.


2)In Manuel de Pinho Ferreira, A Igreja e o Estado Novo na Obra de D.António Ferreira Gomes, Fundação Spes, UCP-Porto, página 68, nota.

3)A biblioteca constituída pelo Senhor Cónego Figueiredo era vastíssima e eclética, tendo sido parcialmente doada ao Convento de Balsamão. A sua cultura era vastíssima, para lá da componente religiosa.

4)Extraído e resumido de um artigo notável de oito colunas: Breves apontamentos sobre algumas manifestações de Arte Sacra no concelho de Macedo de Cavaleiros, in Mensageiro de Bragança, 22 de Agosto de 1964, ano XXV, nº. 1030.

5)Edição do Arquivo Distrital de Bragança.

6)Edição da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros.