terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Portugal Republicano e Portugal Monárquico: o transe de um povo aflito

Texto resumido de uma comunicação feita no Arquivo Distrital de Bragança em Novembro, no âmbito das comemorações da Implantação da República, nas palestras “ A República no Distrito de Bragança”. O tema da comunicação foi o da razão de ser do romance Um Tiro na Bruma.



Fragmento de granada incendiária
disparada contra Mirandela
no combate de 9 de Fevereiro de 1919,
pelas tropas realistas.

Sempre desconfiei da história quando ela é contada pelos vencedores: esquecem-se os argumentos dos vencidos e demoniza-se o inimigo, continuando-se a fazer cair sobre ele todas as famas de todos os males, mesmo depois de derrotado. Há disto imensos exemplos, de que nem vale a pena estarmos agora a citar casos ilustrativos porque de todos são conhecidos, quer se refiram a conflitos recentes quer a conflitos antigos.



Nesse tipo de história, são sempre heróicos os gestos dos vencedores e desprezíveis os actos dos vencidos quando, na realidade, pode ter havido heroicidade de ambos os lados tal como pode ter havido – houve, certamente – actos reprováveis de ambos, também.


Normalmente “quem se trama” sempre é o povo, entendido “o povo” como toda a massa que é arrastada pelos acontecimentos e não como classe social. Apesar de sempre muito elogiado e usado como motivo, como argumento ou como cortina de fumo, o povo não só “paga as favas”, para usar uma expressão eloquente por si, como se vê obrigado a engolir em seco os silêncios politicamente correctos e a acenar de assentimento – quando não a ter de cantar a vitória – às palavras e actos dos novos vencedores, também numa lógica do politicamente correcto, entenda-se, do jogo pela sobrevivência do mesmo povo...



Acontece isto também com as famílias e com a sua crónica, depois de terem passado por períodos de prevalência de uma perspectiva a partir de um dos seus ramos ou após algum sobressalto fracturante que as tenha desestruturado ou colocado em dificuldades. Nas famílias também se enaltecem ou se depreciam caracteres e percursos, ao sabor do critério dos que contam essas crónicas. Também há os santos e os pecadores. E os demónios. Na vida das famílias, tal como na história, aparece, à mão ou na boca de quem conta, um bode expiatório para fazer o papel. Quero dizer, não aparece, é lá colocado, tal como fazem os vencedores na política e nas tragédias de um povo. Se, para estes, esse papel é fácil para dele serem investidos os vencidos, para os dramas familiares mais ligeiros está sempre uma sogra à vista, para os mais pesados há sempre um ex-cônjuge que terá traído os votos do compromisso matrimonial, ou da sua união sentimental, e que terá dissipado o seu capital de bens e de bom nome. As famílias e a história estão cheias de exemplos destes, de anjos exemplares e de filhos pródigos de quem se conta a parte rebelde mas de quem se esquece, propositadamente, já se vê, de contar antecedentes, condicionantes ou de revelar o verdadeiro final. No exemplo do Evangelho, porque se trata de uma parábola contada por um autor que dispensa adjectivos, o drama é-nos contado completo e substantivo mas na nossa vida já não é o caso…



…tal como não o foi para mim quando comecei a perceber como era a história de vida do meu Avô Amadeu. Que morreu mais de uma década antes de eu nascer. Médico, arrivista (era de Alijó e veio viver e a casar em Macedo), republicano, muito culto, muito senhor das suas opiniões, muito mulherengo, mesmo muito mulherengo e gastador do pecúlio familiar. O contraponto da minha Avó, senhora de Macedo, monárquica, também culta, também senhora das suas opiniões, fiel ao seu marido e filhos, muito fiel ao seu marido e filhos apesar dos que a cortejaram mesmo depois de casada e que exploravam o tentar adoçar, junto da Micas, tal era o seu petit-nom, o lado amargo de se saber traída. Aos quais nunca cedeu. Tinha sido educada na convicção de que os prazeres proibidos não são maneira nem de curar o orgulho ferido nem, muito menos, de conservar a autoridade inatacável da posição em que o marido a colocara. Várias vezes o Avô Amadeu precipitou as finanças familiares em situações difíceis, várias vezes a Micas teve de acorrer, com jóias ou com legítimas de herança, para saldar contas e calar usurários. O Avô acabou por morrer, em meados dos anos quarenta, e a avó sobreviveu-lhe uma década e meia. Durante esses anos, passados no pós-guerra e na década de cinquenta, a Avó continuou a ser um esteio da família da maneira como são as Avós: espalhando sorrisos e contando histórias aos netos, estando sempre atenta para ser seus cúmplice nos pequenos caprichos que deixam saudades. E continuou a fazer o que sempre tinha feito ao longo da vida: a ajudar os pobres, a valer com uma palavra ou com um gesto a todos os que lhe chegavam ou de quem lhe chegavam vozes aflitas. E a ajudar, depois de o meu Avô morrer, para cúmulo, algumas daquelas que se encontravam desamparadas e o tinham tido nos braços, em vida…

Claro que, com um tão grande período de sobrevivência da minha Avó sobre o meu Avô, a história dele chegou até mim com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Neste caso, sobreviventes. Ainda por cima, pessoas que tinham tido convívio com a minha Avó e às quais, inconscientemente ou conscientemente, tinha “comprado” uma versão dos acontecimentos com o seu desvelo.

Em casa não se falava, praticamente, do Avô, a não ser para se exclamar “não te ponhas como o Avô” quando alguém discutia de uma determinada maneira ou adoptava um determinado comportamento. Quando eu perguntava a alguém pelo Avô, em Macedo, a conversa em menos de um minuto estava invariavelmente centrada na minha Avó: “uma Senhora, muito bonita, tão boa para todos, tão infeliz com o seu Avozinho…”. Sobre o Avô, nada ou quase. E quando eu, caso a caso, comecei a agarrar uma palavra a este, outra àquele, sobre o Avô, comecei então a descobrir que a realidade tinha sido outra. Não radicalmente diferente mas outra, simplesmente. O Avô tinha tido qualidades, afinal. Também defeitos inegáveis, sem dúvida. Mas não era aquele ser de quem nem se poderia falar!

E comecei a perceber que muitos dos que logo me falavam da minha Avó, ao serem interpelados sobre o Avô, tinham sido, directa ou indirectamente, beneficiários da caridade da minha Avó…

Ora, quando comecei a querer contar esta história e a situá-la na sua época, no início do século XX, na transição da Monarquia para a República, comecei a investigar passo a passo todo esse período mas de uma forma autêntica e directa. Ou seja, em vez de me por a ler obras daqueles que sobre esse período escreveram com este ou aquele partis pris ideológico, pus-me a ler os jornais, as revistas, os romances e folhetins que nesse tempo se liam. Pus-me, dessa maneira, a viver na realidade da época. Foi fascinante. Segui o decurso de meses e anos lendo o Diário de Notícias e muitos outros jornais que se publicavam, folheando e vendo as fotografias da Ilustração Portuguesa e doutras revistas e almanaques, seguindo o dia-a-dia dos acontecimentos. Mas como, ao mesmo tempo, eu lia também os livros de autor escritos sobre essa época, comecei a notar uma diferença enorme entre o que era a percepção do que acontecia no dia-a-dia, que eu fazia para mim ao ler os jornais e outros documentos, e aquilo que sobre isso era contado pelos tais autores de livros sobre essa época. Comecei-me a dar conta que havia um distorcer da verdade, entendendo como verdade o desenrolar dos acontecimentos e a sua cronologia, critérios necessários para que a história possa ser objectiva. E então percebi o que estava a acontecer: a história que nós conhecemos sobre a Implantação da República, a que nos é contada desde a escola primária, não é mais do que a história contada pelos vencedores, com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Ainda por cima com uma agravante: é-nos contada para camuflar não só uma realidade diferente mas, muitas vezes, uma realidade inexistente! É incrível! O que se passou na realidade é de tal modo diferente do que tantos hoje afirmam que, para quem souber e conhecer verdadeiramente esse período, toda a nossa história subsequente sobre o século XX ganha uma nova leitura.

Fiz uma descoberta, em certo sentido, infeliz e que me tem trazido triste nesse assunto: a de que havia e há uma conspiração, de muita gente que escreve e que dá opiniões, que ainda hoje persiste, uma conspiração que não é apenas contra a monarquia ou a favor da república mas que é muito pior: é contra a verdade.

Descobri, assim, que havia um paralelismo entre o que se dizia ou não dizia sobre o Avô Amadeu, em nossa casa, e o que se diz ou não diz por todo o lado sobre o que foi o fim da nossa Monarquia e a vigência da nossa Primeira República. E decidi-me a escrever sobre isso. Escrever um ensaio, argumentar, envolver-me em discussões que não levam a lado nenhum na maioria das vezes? Não. Preferi tentar escrever um romance sobre esse período. Um romance baseado na realidade. Foi assim que nasceu Um Tiro na Bruma.

Que isto não sirva apenas para se dizer que “afinal nem o fim da monarquia foi assim tão mau nem a república assim tão boa”. Não. É muito mais do que isso. Porque há, no fim de contas, vencedores e vencidos. Nestes últimos está sempre o povo, entendido na acepção referida acima, e esteve, quase sempre, a verdade. O que me deixa com uma esperança: a de que, apesar de tudo e contra tudo, ela venha a prevalecer e, com ela, nós venhamos a poder, um dia, sair triunfantes das dificuldades do nosso dia-a-dia.

O verdadeiro sacrificado, na transição da Monarquia para a República, foi o povo. O povo viu-se mesmo aflito, depois do 5 de Outubro. Com fome, doente, obrigado a combater, a morrer, a vestir-se de luto, impedido de rezar por decreto. Ainda por cima com uma conjuntura de pavor: caíam as monarquias e os impérios, assistia-se a uma destruição sem precedentes, com máquinas e venenos sem precedentes, a batalhas e desastres antes inauditos, a epidemias de escala total que não poupavam ninguém. As greves, os tiroteios nas ruas, os saques e assaltos das lojas e casas, os meses de trabalho sem soldo, os atentados e assassinatos constantes faziam da intranquilidade e do medo uma vivência permanente. O povo pensou que o mundo ia acabar – e imediatamente. Foi uma época vivida em transe e com uma grande aflição. Uma época difícil, extremamente difícil.

Mas são precisamente essas épocas difíceis que nos devem merecer olhá-las e invocá-las com todo o respeito. Respeito pelos que a viveram e lhe souberam sobreviver. Respeito pela sua verdade. Em nome deste respeito nos propusemos deixar o nosso testemunho.

sábado, 18 de dezembro de 2010

MÚSICA

Habituei-me desde muito cedo a estudar com música. Gira-discos (primitivíssimo, um Dual portátil que era da minha irmã mais velha e que funcionava a pilhas) ou rádio (pré-histórico, um Phillips 38 a válvulas com esplêndido som, que o meu pai prezava muito e que quando se ligava tinha primeiro de aquecer e emitir um característico Hhummm!), a primeira coisa que eu fazia antes de abrir os livros e os cadernos na mesa do quarto era sintonizar o posto (o canal dois da Emissora Nacional ou o Rádio Clube Português) ou colocar um disco no prato (as Sylphides de Chopin em 33 rotações ou o Grand Hotel dos Procol Harum, que a minha irmã Pilar tinha trazido de Inglaterra, ou ainda os 45 rotações da Suzi Quattro que se esgotavam num ápice). Mais tarde, já na faculdade, passou a ser a RFM a onda de eleição que me tem acompanhado até hoje, em casa ou no carro, se bem que quando estou diante do écran do computador faça grandes variações com emissoras de países longínquos on-line ou com escolhas do Youtube. Enquanto estou a escrever este artigo, tenho estado a ouvir Rachmaninoff, o segundo concerto para piano e orquestra, muito romântico e arrebatador, cujos clips vou partilhando no facebook…


Música! Conjunto de sons capaz de produzir superiores sensações, capaz de nos fazer sorrir e de nos levar às lágrimas em menos de um estalar de dedos. Um estímulo à criatividade, à reflexão, à comunhão. Música! Fantástico denominador comum que junta no mesmo sítio, para assistir e participar num concerto, seja ele clássico ou pop, as pessoas mais diferentes nas suas ideias, no seu modo de estar na vida. No filme A Missão vê-se qual foi a ponte que os Jesuítas estabeleceram com os Índios para ultrapassar, num primeiro passo, o abismo civilizacional que os separava: música, Bach, como pedagogia do princípio de uma relação cultural e religiosa!

O ensino da música deveria ser obrigatório e deveria ser ampliado em todas as escolas. Ainda no número de Novembro último da Scientific American, prestigiadíssima revista científica de divulgação e debate, vem um artigo em que mais uma vez se refere que as nossas capacidades de aprendizagem se ampliam pelas profundas e perduráveis mudanças que a música é capaz de produzir no cérebro. “As escolas deveriam aumentar as suas aulas de música em vez de as cortar”, escreve-se. “A prática musical desenvolve as capacidades de prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. A música não é nem deve ser um extra, mesmo que os orçamentos sejam apertados. Aprender e tocar um instrumento, para lá do prazer imenso que proporciona, aumenta a capacidade de aprendizagem e tem um efeito benéfico sobre um cérebro em desenvolvimento”.

A música tem ainda o condão extraordinário de preencher o tempo, de ultrapassar em muito o simples entretenimento. É uma das nossas melhores companhias e não só para estudar. É uma excelente companhia para nos ajudar a passar os momentos de crise. Devia haver muito mais música na escola e na vida.

(Este meu artigo foi publicado no último Mensageiro de Bragança, se bem que com alguns pormenores modificados)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A contracção do tempo

A Mariana e eu descobrimos um sítio em que duas horas se transformam em dez minutos. Pelo condão especial de uma pessoa que resolveu partilhar, pensamos, uma das paixões e uma busca da sua vida.
Só o facto de se entrar no edifício é já uma iniciação: passar a porta de entrada é um recuo no tempo (nem é preciso grande imaginação, basta sentir que muda o som e muda a luz, duas circunstâncias imateriais que conseguem modular a velocidade do nosso dia-a-dia). Depois vem um breve, brevíssimo gesto burocrático de rabiscar uma cruz num papel, a dizer que estamos presentes (Deus queira que a nossa entrada no Céu seja assim só com a demora de um instante!), a que se segue percorrer um rés-do-chão abobadado no fim do qual há uma escada – e que escada! – de dois lanços, suave nos degraus de granito que abafa sons, belíssima na simplicidade da concepção, que se sobe com a certeza de estarmos a cruzar com milhares de pessoas que, antes de nós, desde há mais de dois séculos por ela passaram com as suas toillettes de cerimónia em ocasiões de festa, os seus trajes de súplica em dias de audiência, as suas fardas de ofício nas horas de despacho, a sua intenção íntima de remediar urgências ou tentar encontrar lenitivos para aflições. As escadas estão, assim, cheias de significado e subi-las é caminhar, degrau a degrau, para uma porta que nos aguarda como se fosse mais uma porta mágica, vazia, cheia de um sortilégio inesperado: para lá dela temos um encontro marcado com duas horas que roçam o absoluto. Para lá dela está o salão do auditório, paredes brancas para imagens de todos os possíveis, cadeiras onde nos sentámos, no primeiro dia, sem uma expectativa definida: o que aconteceu mal dá para se descrever porque as duas horas que ali estivemos, passadas com uma brevidade insuspeita, rapidamente nos puseram numa experiência de arrebatamento, que roça a metafísica. Trata-se simplesmente de música, trata-se simplesmente de uma iniciação à história da música, trata-se apenas e só de revisitar tantos lugares comuns aprendidos e ouvidos ao longo da vida. Ou não se trata nada disso! A experiência daquelas duas horas, que já duram há umas semanas, às quintas-feiras, no Museu de Lamego, tem sido inesquecível, como são sempre inesquecíveis todos os transes da nossa vida em que parece, por momentos, que essa mesma vida resolveu nos abrir um parêntesis. Onde estivemos naquelas duas horas enquanto um powerpoint desdobra imagens, duas colunas de som nos dão um banho de decibéis, dois candelabros iluminam sobre a mesa como se fossem um Aleph de Borges, a voz de José Pessoa nos diz coisas e mais coisas, umas atrás das outras, vociferadas com intensidade como se as pintasse a óleo, no ar, numa tela que ele vê nítida e onde se esforça – e consegue! - por misturar os tons densos das cores que pintam a sua busca da verdade (que ele anda à busca da verdade desde há muito e tem dela já muito mais que o pressentimento, nota-se quando se emociona com a busca da verdade com que esbarra nas músicas, nas canções, nos compositores, na que todos eles empreenderam antes dele), onde estivemos? Onde estivemos? A ouvir José Pessoa? Hm… Não pode ser só! Mas é por causa de José Pessoa. Aquelas duas horas são muito mais do que isso. Ouvimos um José Pessoa que se transcende, que ali naquele leme é mais do que ele. Começámos com trovoadas, com água a correr (De um rio? De um útero? De um choro de desesperança? De uma chuva que sempre choveu assim?), com os sons dos objectos simples, dos objectos fabricados, dos instrumentos primitivos, dos instrumentos evoluídos, da voz humana, do génio humano que sempre buscou na música a forma superlativa de comunicar consigo, de comunicar com o tempo, de comunicar com Deus. Daí surgiu um som que permanece como um baixo contínuo ou como uma toada e que estabelece um cordão de moléculas vibrantes (moléculas?! Qualquer coisa, enfim, eu nada ou quase percebo disto e por isso me inscrevi neste curso…) desde um pastor ou pré-histórico com a sua flauta de Pã feita de osso, à Hildegarda (a da música escarlate), aos trovadores, a todos. Que enche o universo como o Messias, o mundo dos prodígios como as pautas de Mozart, a capacidade infinita do big bang da esperança da liberdade com a Nona e os versos de Schiller. Aquelas duas horas, que passam como dez minutos, têm sido duas horas de uma profunda experiência. Não há ali só música. Ou talvez seja só música. Talvez um dia descubramos que, afinal, a Eternidade seja feita de música. Porque só a Eternidade, onde não contam minutos, nem horas, nem anos, pode ter o sortilégio de fazer com que o tempo de duas horas seja, afinal, o tempo de dez minutos. Só um tempo medido na escala da Eternidade pode explicar os compassos que nos têm arrebatado para algures de dentro daquelas quatro paredes. Que bênção especial terão ali derramado os Bispos de Lamego do século XVIII? É que dentro daquela sala o tempo contrai-se, às quintas-feiras.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O homem e a maçã

O homem à beira da estrada, capacete de obras na cabeça e sinal de stop entalado sob o braço, estafeta no meio da poeira e da confusão do tráfego, sol muito quente, desviou por momentos a atenção dos grandes camiões da empreitada que atravessavam à nossa frente, carregados e ruidosos, e voltou-se, não para nós, que aguardávamos que tirasse o bendito sinal e no-lo mostrasse pela outra face, mas para uma maçã que segurava com a mão esquerda e que, com a direita, partia com uma navalha. Observava atentamente o pomo que dividia em quartos, descascados com perícia, e meteu o primeiro na boca, mastigando-o com manifesta vontade e prazer. Calor, estava de vidros fechados pelo ruído e pela terra levantada pelos grandes pneus que a atiravam para o ar, olhos semicerrados pela luz demasiada a reflectir-se nos milhares de partículas de mica e quartzo que voavam. Inexplicavelmente, senti-me a cheirar a maçã, um cheiro doce e suave com travo acre a raineta. Que maçã tão mágica seria aquela? Seria a irrecusável que a Eva ofereceu a Adão, engasgado, reluzente no seu fatal destino? Seria a fadada e venenosa, do cesto da Bruxa Malvada que a entregou, irresistível, à Branca de Neve, e a adormeceu num sono de maravilha? Seria a de Newton, da revelação e conclusão de Newton, atraída para o chão por uma causa invisível? Seria a de Guilherme Tell, sobre a cabeça do filho, a captar-lhe o virotão da besta? Deviam ser todas, para cheirar assim! Como cheirava bem dentro do carro! E vi-me a alinhá-las, há tantos anos!, nas prateleiras do fruteiro, faces rosadas voltadas para nós, depois de parafinadas, prontas a enfrentar os meses de espera até serem comidas à mesa. Dúzias de maçãs! As filas das golden, amarelas e douradas, grandes, sensação táctil de dar logo vontade de trincar! As starking, vermelhas e orgulhosas, farinhentas na boca, boas para enfeitar o centro de mesa e ser comidas com queijo e marmelada. As bravo-de-esmolfe, muito iguais, algo problemáticas mas capazes de espalhar essências por todo o sítio. As rainetas, pequenas e grandes, duras, ácidas, tão perfumadas!, aroma de inspirar e sentir o tempo a entrar com o ar, o tempo de as colher na macieira desgrenhada de ramos carregados de frutos quase a partir, pendentes para o chão, sobre a água dum regato. “Dá cá o cambito para puxar aquele ramo ali que não lhe chego!”. E as cestas de asa no braço, os cestos maiores e as canastras iam-se enchendo no meio de graças e gargalhadas com aqueles frutos de fim de época, de fim de estação, que davam à casa um aroma aconchegado de tudo estar no seu lugar. Com uma mão conhecedora, a Tina ou a Ticha entalavam, entre a cinza e o rebordo da braseira, uma maçã que cobriam com uma prata. A sala rescendia! E todo esse cheiro, vindo não sabia de onde, se misturava com o verde das folhas, o sabor dos frutos, o ar que parecia desanuviar o ambiente do carro com esse encanto vindo do passado. Estava quase a experimentar a maçã assada, casca tostada e sabor melado a abrir-se de surpresas, quando uma buzinadela fez desaparecer o encanto. Os camiões tinham deixado de se atravessar à nossa frente, o homem estendia a mão segurando o sinal com o verde voltado para nós e agitava-o a mandar seguir, capacete entalado sob o braço esquerdo, sorriso. Tinha acabado a maçã. O sol estava intenso, o pó pairava, nós seguimos.

domingo, 29 de agosto de 2010

Cândida Florinda Ferreira

Prestou provas perante a Universidade de Lisboa «a primeira senhora portuguesa que tentava obter as insígnias doutorais», como então proferiu o presidente do júri, de 13 a 16 de Janeiro de 1937. Foi brilhante, verdadeiramente brilhante, e os jornais, que noticiavam diariamente as sucessivas sessões do acto académico, iam tecendo um relato elogioso. Contudo, os examinadores reprovaram-na. Seria interessante investigar os porquês desta circunstância. Talvez um dia. Mas o que nos traz aqui hoje é determo-nos um pouco sobre quem era esta mulher.


Estamos a viver naquele que vai sendo conhecido como “o século das mulheres”. Um pouco por todo o lado, há cada vez mais protagonismo feminino. Em todos os sectores. Seria injusto não lembrar, por isso mesmo, aquelas que foram pioneiras. Aquelas que, de algum modo, se foram da lei da morte libertando muito tempo antes deste tempo que é o nosso.

Evocamos hoje, especialmente, uma das mais inteligentes e cultas pessoas que nasceu no nosso concelho e que foi uma figura nacional. De facto, Cândida Florinda Ferreira foi uma mulher notável, com uma capacidade intelectual acima da média e com qualidades humanas que, para os que a conheceram de perto, dela fizeram uma senhora inesquecível.

A sua origem foi muito humilde. Nasceu em Talhinhas, concelho de Macedo de Cavaleiros, pelas cinco horas do dia 26 de Junho de 1893, tendo sido baptizada na igreja desta aldeia a 9 de Julho pelo Padre Manuel António Teiga. Era filha de António Augusto, de Talhinhas, e de Perpétua da Assunção, de Izeda. Os seus pais e avós eram jeireiros. O apelido herdou-o de seu avô materno, Vicente Ferreira.

Descoberta a sua argúcia e capacidade intelectual, foi mandada estudar aos dez anos para um colégio em Lisboa e depois, aos quinze, noutro colégio no Porto. Nestes colégios não aprendeu só a ler, escrever e a contar mas também a adquirir uma formação de sólidas qualidades morais e éticas que a plasmaram para toda a vida. Com dezasseis anos fez exame de admissão em Bragança para a Escola Normal de habilitação ao Magistério Primário, tornando-se professora em 1912 com dezoito valores! Exerceu o magistério em Talhas, em Caçarelhos (três anos) e em Bragança onde também foi professora interina na Escola de Habilitação ao magistério primário e, posteriormente, na Primária Superior. Durante este período fez, ao mesmo tempo, os exames do curso liceal em Vila Real e Bragança e ainda o da Escola Industrial!

Em 1927 foi frequentar a Universidade de Lisboa mas mantendo-se a trabalhar, regendo uma escola primária. A sua tenacidade, força de vontade e capacidade intelectual eram notáveis. Fazia tudo com brilho e distinção e todos os anos, como professora, apresentava um elevado número de alunos bem preparados a exame. A sua folha de serviços foi exemplar.

No fim desta década de vinte alargou consideravelmente os seus horizontes, influenciada pelo espírito universitário. Fez um curso de Literatura Italiana e publicou os seus primeiros trabalhos de investigação: A guerra da sucessão no distrito de Bragança. Em Agosto de 1930 obteve uma bolsa de estudo concedida por Itália (a única nesse ano), que lhe permitiu frequentar a Universidade de Perugia. Simultaneamente foi agente do governo português para o qual fez um relatório sobre o estudo e o ensino primário em Itália. Esta actividade não a fez descurar os seus outros pontos de interesse e continuou a investigar e a publicar uma obra com uma profusão e regularidade notáveis: Talhinhas e as guerrilhas liberais – Notícias monográficas inéditas; A Mulher na Família e na Sociedade Contemporânea; Carrazeda de Ansiães – Notas monográficas; A função educadora da História.

Para o público em geral e, especialmente, para as mulheres, de quem sentia o pulsar social de uma época que foi de charneira (e em que, no estrangeiro, que conheceu bem porque também frequentou a Sorbonne de Paris em Literatura, brotavam novas tendências), escreveu numerosas páginas cheias de sabedoria: A mulher portuguesa contemporânea – artigos publicados na revista Modas e Bordados, Lisboa, 1935; A Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida Portugal; Da necessidade do conhecimento da História e da Literatura pátrias; Castros e castelos – A mulher nesses centros guerreiros; A guerra dos cem anos – Seus reflexos em Portugal.

Escreveu também um livro de contos: Os sete pecados mortais, que publicou em 1936.

Depois do seu percalço grave na Universidade de Lisboa, foi directora e proprietária do Colégio D. Teresa Afonso, em Algés, a partir de 1941. Dava também aulas em casa, tendo sido explicadora de uma das pupilas de Salazar (e este, como reconhecimento, ofereceu-lhe uma colecção das Obras Completas do Padre António Vieira).

Sobre o chumbo no doutoramento, o Abade de Baçal escreveu: seria por “não atingir a bitola? por antifeminismo? Por a ciência oficial andar sempre atrasada? Não sei, e somente que Nicolau Tolentino foi reprovado num concurso de literatura; Pasteur num de química; Galois num de matemática, e tantos outros que espargiram glória bastante para imortalizar a ciência oficial de seus examinadores condenados, sem a coragem de tais reprovações, ao olvido da História”.

Nunca descurou o seu contacto com a terra natal, onde viria a protagonizar a construção do edifício da escola primária, movendo para isso as influências políticas necessárias e estando na sua inauguração em 28 de Julho de 1968. A fotografia aqui reproduzida que foi tirada neste evento (a Doutora Cândida Florinda Ferreira é a sétima a contar da direita de quem vê a foto) e resume bastante bem o seu círculo de amizades mantidas em Macedo de Cavaleiros, onde a família Brás conserva a sua memória ainda hoje.

Viveu na Rua de S. Marçal, ao Rato, tendo aqui morrido, na freguesia de S. Mamede, em Lisboa, em 8 de Março de 1978.

Ao longo da vida de trabalho intenso e de publicação de trabalhos, Cândida Florinda Ferreira encontrou ainda tempo e espaço para a poesia. Para a dar a conhecer usou um pseudónimo:

“Ninguém”.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

GUERRA JUNQUEIRO

Esta casa foi construída em 1883
pelo Juiz José Felizardo Rodrigues de Sousa
e ficou conhecida em Macedo como a
casa das Senhoras Sousa ou
casa das Sousas.
Demolida em 2010. 
Já não existe a casa dos meus bisavós (onde viveram as minhas tias Sousas e onde morreu a minha avó), demolida recentemente para dar lugar a uma rua perpendicular à rua Pereira Charula. Mas existem as histórias do muito que nela ocorreu. Visita relativamente frequente da casa foi Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 1850 – Lisboa, 1923), o poeta, candidato a eleições e deputado pelo círculo de Macedo de Cavaleiros para a legislatura de 1880, amigo do meu bisavô, o juiz Sousa (e também frequentador da casa dos sogros deste, os Morgados de Macedo, também conhecidos como Oliveira).


Uma vez, numa dessas visitas, pediu para ficar com um crucifixo que ainda hoje existe na nossa família. Este gesto pode parecer-nos esquisito, por parte do escritor, célebre por ter sido um denodado autor de obras ímpias, anti-monárquico e republicano entusiasta, tão assazmente anticlerical e anti-religioso que sobre ele escreveu o Abade de Baçal: “Muitas das obras deste brilhante génio estão traduzidas em espanhol, inglês, francês e italiano e há apreciações críticas delas em diversas revistas estrangeiras, da máxima competência, como na Alemanha, França, etc., sendo de lamentar que um talento tão universalmente apreciado se deixasse obscurecer algumas vezes por composições ímpias como as do mais vulgar e nulo candidato à fácil popularidade das turbas ignaras, que vêem simplesmente no desbragamento da adjectivação a característica do génio. Ou será que esta popularidade lhe resulta em parte muito sensível desta mesma razão? Seja como for, Junqueiro é uma glória da terra que o viu nascer.”

Contudo, GJ veio a ficar mais desiludido com a República do que antes estivera com a Monarquia e veio a inflectir a sua posição anti-religiosa.

É um autor cujo percurso de vida – e postura perante a morte – deverá merecer, num ano em que tanto se fala do centenário da República, algumas reflexões. Cuidadosas reflexões.

O interesse de GJ por crucifixos não era apenas o de um coleccionador de antiguidades e de bric-à-brac. Era um interesse pela substância dos crucifixos. O seu coleccionismo era simbólico do verdadeiro coleccionismo que fazia no seu espírito e onde permanentemente, numa ebulição que o aterrou pela vida fora, fermentavam os pensamentos do remorso, da plenitude e da eternidade.

Raul Brandão, nas suas memórias, descreve uma das cenas mais patéticas e importantes em que foi confidente do poeta e pensador. Encontraram-se no Porto (1921), aonde tinha ido expressamente a pedido dele, GJ, e lhe fez confissões terríveis em que lhe declarou ter concluído a sua filosofia, milhares de páginas de revisão do que fora a sua vida. “O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade”. Outra das coisas que desabafou então foi a sua posição relativamente à República e à Monarquia: “Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação. E agora vamos acabar...”.

Já quando se discutira a bandeira nacional, após a implantação da República, GJ tinha feito uma proposta em que, deixando de haver a coroa real, se mantinham as cores azul e branca em vez das verde e vermelha que eram nada mais nada menos do que as do partido republicano e, como tal, sectárias. E propunha o azul e branco como as cores mais abrangentes já que tinham sido as cores nacionais desde D. Afonso Henriques, atravessando toda a nossa história, com os seus momentos de glória e as suas crises.

Hoje já não existe a casa das Sousas, nem Guerra Junqueiro, nem reis reinando em Portugal, nem está em vigor a bandeira azul e branca. Mas existe a possibilidade de se pensar em tudo isto não como uma época passada mas como uma permanente busca da verdade, como o fez Junqueiro ao longo da sua vida.

Guerra Junqueiro, o poeta-génio de Trás-os-Montes, morreu em Lisboa, em 7 de Julho de 1923, ao fim de uma vida em que os seus crucifixos de madeira, marfim e cerâmica se foram espiritualizando. O seu amigo Raul Brandão acompanhou-o até ao fim:

“Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão, com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta”.

Neste ano de comemorações, é interessante revisitar os nomes de algumas das ruas de Macedo na perspectiva de que os mesmos estão vivos para nós, como fonte de inspiração e sabedoria, tal como este de Guerra Junqueiro, um trasmontano inesquecível.

domingo, 22 de agosto de 2010

Insecticida com penas

Desde o princípio do Verão que as vespas começaram a importunar – superchatas! – na varanda. Mas como temos um refúgio dentro de casa desde que há um ano pusemos redes mosquiteiras nas janelas por causa das moscas (aqui não há mosquitos), foi-se atrasando a aplicação de insecticida que de vez em quando, ao serem insuportáveis, se costuma fazer. O resultado foi surpreendente: apareceu por aqui um bando de abelharucos, uns sete ou oito, que todos os dias fazem razias de caça em volta da casa, à espera que elas volitem para longe e para o alto, a partir das frinchas das telhas. São lindíssimos, os abelharucos.

Estão empoleirados em grupo no fio do telefone, mas afastados, grandes bicos tortos para baixo, e de repente levantam voo um após outro, como uma formação de caças de guerra, um voo engraçado como se estivessem a boiar nas ondas, depois da rebentação. Batem as penas duas ou três vezes e depois planam rapidamente com um “krriuut, krriuut, krriuut” que parece fazer eco pelo ar fora, onde espalham flashes de arco-íris com as suas cores, nos abrires de asa.

Durante meses foram os estorninhos a ocupar-se do movimento e dos sons por aqui. Fazem imensos ninhos sob as telhas e ouvem-se nos seus afãs naturais de ciclo reprodutivo. A acrescentar que esgaravatam com as unhas pelos zincos dos ângulos do telhado e fazem esse ruído de estar a esgueirar-se por frinchas e buracos incríveis. O seu vaivém é incessante e deixam a fachada, a antena parabólica, os corrimões das varandas, as cumieiras das janelas e do telhado pintalgados dos seus dejectos em variadíssimos traços. Piam imenso e os pequenitos fazem um ruído de sofreguidão e impaciência quando se chega um dos pais com a comida no bico. Por isso foi estranho quando aqui há dias desapareceram. Assim. Sem deixar bilhete nem dizer uma despedida. Sumiram misteriosamente. Ficou um grande silêncio, apenas quebrado por um pardal ou por alguma folecra. Andam por aqui águias, milhafres e tartaranhões mas não foi isso. Por vezes ainda aparece um ou outro estorninho, escuro de bico amarelo, depois de dias de ausência total. E parece-me vê-los lá ao longe, de vez em quando, forrando a decalque os ramos sem folhas de um castanheiro seco ou no extremo dos cabos de alta-tensão, no poste mais alto. Não sei se serão os mesmos. Não me parecem. Os de cá de casa levavam educação para, pelo menos, dizer boa-tarde.

Que é o que nos fazem sempre as perdizes, sós, acompanhadas ou com filhotes, cumprimentam sempre antes de se afastarem, cheias de pressa e presunção.

Ainda há imensos mais, mas dão menos nas vistas: um picanço-real muito orgulhoso que não sei se anda perdido ou resolveu exilar-se; uns noitibós discretíssimos que levantam da frente dos faróis claramente para me mostrarem que querem saber a que horas chego a casa; umas poupas que têm a mania que são as mais importantes; rolas e pombos torcazes que fizeram ninho no pinhal e que estão evidentemente a escapulir-se aos caçadores; umas corujas que voam da mata todas as tardes e que nos dão as boas-noites, polidíssimas como tias-avós, logo que o sol se põe. Os gaios devem ter ido a banhos, por agora. E uns amarelantes e cotovias, que andaram por aqui, sumiram desde que os centeios foram ceifados. E a lista continuaria.

Não devem tardar por aí outros pássaros, que vêm com o fim do Verão. Por agora, ficámos sem estorninhos e esperamos não ficar sem abelharucos, senão terei de ir saber de insecticida.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

VIVA A CULTURA

Num ensaio escrito em Lima em Abril e publicado na “Letras Libres” de Julho de 2010 (LL, edición España, nr.106), Mário Vargas Llosa apresenta, diagnostica, elucida e prognostica o papel da cultura no mundo e no futuro. “Oposto à banalização, à perda de hierarquias, ao palavreado teórico e ao artifício desnecessário, MVL defende neste ensaio o valor da educação humanista e a capacidade que a literatura e a alta cultura têm para transformar a vida humana numa aventura profunda e apaixonante”.


Coincidiu ler este ensaio com reler as memórias de Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória I e II, ed. Círculo de Leitores. Foi feliz porque a vida de FC acaba por servir de espelho ao ensaio sul-americano. Vida cheia de casos e de acasos, de felicidade e de infelicidade, de projectos e de realizações, de momentos de afirmação e de dúvida, de grande agitação e de uma imensa serenidade, a vida desta escritora e intelectual portuguesa esteve impregnada de humanismo e de cultura em cada um dos seus passos. Fossem eles na literatura, na vivência familiar, na acção social, na culinária, no teatro, em tudo: FC tinha uma visão holística da vida, como agora se usa dizer, de sentido da totalidade. Lê-se, ouve-se, canta-se, chora-se, ri-se, apalpa-se, come-se e cheira-se Portugal, ao ler estes livros que escreveu e ditou nos anos que antecederam a sua morte. É um país de janelas escancaradas, sem artifícios, sem mitos de igualdade.

Não há culturas iguais. Para MVL “uma coisa é crer que todas as culturas merecem consideração, já que, sem dúvida, em todas há contribuições positivas para a civilização humana, e outra, muito diferente, é crer que todas elas, pelo mero facto de existirem, se equivalem.” Feita esta colocação clara do assunto, MVL expõe, num texto apaixonante de sete páginas densas, a situação da cultura nos tempos de hoje, em que há pudor em afirmar a excelência da cultura ocidental – “a única que, com todas as suas limitações e extravios, fez progredir a liberdade, a democracia e os direitos humanos na história”.

A terminar: “A cultura pode ser experiência e reflexão, pensamento e sonho, paixão e poesia e uma revisão crítica constante e profunda de todas as certezas, convicções, teorias e crenças. Mas ela não pode afastar-se da vida real, da vida verdadeira, da vida vivida, que não é nunca a dos lugares comuns, do artifício, do sofisma e da frivolidade, sem o risco de se desintegrar. Posso parecer pessimista mas a minha impressão é a de que, com uma irresponsabilidade tão grande como a nossa irreprimível vocação pelo jogo e pela diversão, fizemos da cultura um desses vistosos mas frágeis castelos construídos sobre a areia que se desfazem com a primeira brisa de vento”.

Fernanda de Castro idealizou castelos mas em que ainda hoje se pode ouvir, correndo sibilante pelas frestas, um vento forte que sopra, fazendo por elas passar a poesia e a cultura deste nosso Portugal, europeu e universal.

Marilyn Monroe - Hello Norma Jeane

Está de regresso o interesse por uma das mais fascinantes actrizes do século XX. Desde um novo site no facebook (The Unknown Marilyn Monroe http://www.facebook.com/pages/The-unknown-Marilyn-Monroe-Marilyn-Monroe-inconnue/132209956817652 ) até artigos na imprensa internacional, um pouco por todo o lado está a ressurgir uma nova vaga de culto por esta figura mítica, para muitos conhecida apenas pela sua presença física (1,67 m de altura, 94-61-89 - 93-58-91 (de acordo com o estúdio); 88-58-88 (de acordo com o costureiro) - , cabelos loiros pintados, olhos azuis, lábios bem recortados e cheios). Ainda por cima, está de regresso pelo lado menos conhecido da actriz, por muitos julgada uma mulher superficial e frívola. Tal fica a dever-se ao lançamento mundial, anunciado para Outubro, de um livro original sobre MM.


O que está a vir a público neste momento em que se comemora mais um aniversário sobre a sua morte inesperada e misteriosa, ocorrida a 4 de Agosto de 1962, é algo que vem revelar que Marilyn era muito mais do que uma estrela cadente: uma mulher com inteligência e sensibilidade. A artista vivia impregnada de cultura – e não era uma cultura qualquer.

Esta edição dos escritos inéditos – absolutamente inéditos – de Marilyn Monroe: poemas, páginas de diários, cartas e fotos pessoais, com reproduções em fac-simile, está a suscitar expectativa e a dar a conhecer uma MM surpreendente, com um gosto especial por livros e autores e por alguns em especial, tais como Samuel Beckett, Walt Whitman e James Joyce, para os quais não basta um interesse simples pela literatura mas que exigem, para ser lidos, uma dose valente de inteligência e sensibilidade. A tal não terá sido alheio o seu casamento com Arthur Miller, que foi um dos seus três maridos. Este novo livro sobre MM e que se vem juntar a muitíssimos outros trabalhos já publicados sobre a actriz, vem trazer algo de novo – e não é pouco. Cobre um período que vai de 1943 até às vésperas da sua morte.

Segundo um artigo do Le Figaro, um dos principais jornais franceses, esta publicação fica a dever-se a Anna Strasberg, viúva de Lee Strasberg (fundador do Actor’s Studio e herdeiro de Marilyn) e que é a responsável pelo legado de MM. Ela terá confiado os textos a Bernard Comment, que trabalhou a edição e que é co-responsável por ela com Stanley Buchtal. O prefácio é de António Tabucchi, italiano bem conhecido dos portugueses, que refere que “no interior deste corpo vivia a alma de uma intelectual e poeta de que ninguém supunha”.

No fundo, trata-se de uma Norma Jeane Baker a vir à superfície, passados todos estes anos, e a surgir de forma nítida a recortar-se sobre os cenários de Hollywood e sobre a imagem de MM.

“Há uma certa melancolia no tom do livro, e o que é belo nalgumas das notas, é o modo como a elas se associam as ideias que estão espalhadas pelas páginas.”, refere Bernard Comment.

A lembrar agora em Agosto, que passam 48 anos sobre a morte de Marilyn, morta apenas com 36.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

VALE DE PRADOS

Vale de Prados é uma antiga freguesia do município e da cidade de Macedo de Cavaleiros, outrora e durante centenas de anos conhecida muito justamente como Vale de Prados-o-Grande, vila e sede de concelho. Hoje em dia é constituída pelas povoações de Vale de Prados e da Arrifana.


O seu povoamento é muito antigo, como o provam os registos medievais que se lhe referem, e bem assim alguns achados arqueológicos, como o de uma sepultura, pelo povo denominada “sepultura dos mouros”(1). Em tempos medievais houve outros núcleos de casas, a que se referem documentos velhos como as Inquirições do século XIII, então denominados Casas Queimadas, provavelmente relacionados com as guerras de então. E no Alto de Santa Catarina terá havido uma torre senhorial, erguida numa fraga gigantesca, entretanto arruinada e que os séculos foram gastando para pedra de construção. A própria fraga serviu para material de obra nos séculos XIX e XX e na década de cinquenta forneceu toda a pedra que em Macedo se gastou para a construção das instalações e do Bairro da Chenop (Companhia Hidro-Eléctrica do Norte), hoje conhecido como Bairro da EDP.

Por Vale de Prados passava uma antiquíssima via, milenar, vinda de sul para quem demandasse terras de Lampaças e de Bragança, aqui se encontrando com o “carril” que lhe chega de Nogueirinha e de Gradíssimo. Esta terá sido a razão da existência da terra, associada ao facto de o solo ser fértil e a Serra do Cubo ser um bom esconderijo furtivo e um bom poiso para vigia, lado a lado com o já referido alto de Santa Catarina. Ainda hoje perdura nas pessoas o saberem indicar por onde era a Estrada de Bragança… E vem a propósito referir que muito provavelmente por aqui e por Arrifana passavam os peregrinos a Caminho de Santiago, seguindo depois por Lamas, Corujas, Ala, no secular itinerário com que procuravam atingir Compostela e a remissão dos seus pecados…

D.Dinis deu-lhe carta de foral com que se apregoou até à extinção do concelho, ocorrida na primeira reforma do século XIX, em 1836. Por breves anos ficou integrado no concelho dos Cortiços, vindo este logo a desaparecer e passando definitivamente para o de Macedo em 1853.

O Pelourinho, monumento nacional, atesta estas prerrogativas municipais, erguido no século XVIII com orgulho no Largo, a substituir um anterior demolido pelo tempo, imponente como dos principais de Portugal, assim o rezam as crónicas de historiadores. Sobre três degraus octogonais de cantaria de granito e um sólido também octogonal e de granito, ergue-se um fuste monolítico oitavado, encimado por um capitel curiosíssimo: uma cruz deitada, decorada com figuras de animais, o sol, a lua e figuras humanas. Uma outra figura humana coroada abraça um escudo com as armas de Portugal.

O Pelourinho está lado a lado no largo com um fontanário muito interessante de granito, de sineta de avisos e pregões, carrancas a golfar a água e uma data de reconstrução: 1917. Na rua lateral à igreja, a Casa dos Capitães-Móres, tida como a Casa da Câmara, é também um testemunho histórico do passado, ainda com as suas belas cantarias clássicas nas portas e nas janelas. E o edifício do Tribunal, até há bem pouco ainda de pé, testemunhava materialmente, em pedra de xisto verde, os tempos de que ainda se contam episódios em que aos condenados era dado a escolher entre ir trabalhar para a Quinta do Bóbo, em Gradíssimo, ou ir para África, para o degredo… está-se a ver a alternativa escolhida… Ainda existe também, como uma reminiscência desses tempos, o Alto da Forca. Note-se que, ao contrário do que se diz, nunca nos pelourinhos se enforcava ninguém mas num campo aparte, normalmente nas imediações ou fora do povoado.

Durante séculos houve notário, em Vale de Prados, e houve gente ilustre que daqui saiu e aqui viveu. Dos Castro Pereira, família que construiu o seu solar em 1828, em tempo de D.Miguel, há ainda memória recente para além da Quinta e Solar do mesmo nome, associado ao dos Lopes Cardoso por ligação familiar. Também a Casa dos Direitos lembra outros ilustres, das letras e de vida singrada com êxito fora daqui, como acontece com tantos que aqui nasceram e foram mundo fora descobrir o mesmo mundo e vencer na mesma vida.

A Fonte de Santa Catarina está junto à capela do mesmo nome. Com a construção da estrada nacional ficou soterrada, pelo que foi feito, no muro de suporte desta, uns degraus para acesso e o nicho para a água correr da mesma fonte, uma pedra lavrada com motivos vegetalistas em forma de arco, assente sobre uma outra onde uma concavidade permite encher um púcaro com a água virtuosa. Já em 1726, Francisco da Fonseca Henriques, no seu famoso livro Aquilegio Medicinal, se lhe refere (2). A festa a Santa Catarina faz-se no domingo seguinte ao dia 25 de Novembro. É muito concorrida e é típico nela se comerem sardinhas assadas.

Em Vale de Prados e na Arrifana há outras fontes e xafarizes com nomes sugestivos, a Fonte da Oliveira, a Fonte da Buraca, a Fonte do Bóbo e a Fonte da Quinta, na tapada dos Castro Pereira, nem por isso menos belas. Sobretudo outras ainda que estão feitas em xisto lavrado, com formas curiosas e artísticas. Este xisto, uma pedra que serve para muitas das construções destas duas aldeias, é um xisto verde e polícromo, com a cor variada segundo as horas do dia e o tempo que faz, de tonalidades diferentes em dias de sol ou em dias de chuva. Ainda existe a fonte de mergulho de Arrifana, em desuso mas um notável testemunho etnográfico, com vestígios ainda de nela se amolarem as facas e as machadas.

A Igreja Matriz de Vale de Prados é uma reconstrução do século XVII com decoração interior deste século e do século XVIII. Fachada simples e muito curiosa, dupla sineira e um portal sóbrio e elegante com um frontão triangular, nota-se a sua concepção erudita. É de uma só nave com retábulos laterais maneiristas e de decoração barroca. Imagens de Nossa Senhora, Santo Estêvão e São Jerónimo, este último o orago da paróquia. São Jerónimo, padroeiro dos bibliotecários e das secretárias, nasceu em Stridonium perto de Aquileia, Itália, e estudou em Roma. Foi baptizado aos 18 anos. Depois de ser ordenado viveu em Constantinopla, hoje Istambul, antes de retornar a Roma onde chamou a atenção do Papa Damascus, a quem serviu como secretário, tornando-se uma figura muito popular. Após a morte de Damascus, foi para Belém onde ficou com Santa Paula, Santo Eustáquio e outros, pregando. Foi um intelectual e um génio que deu uma grande contribuição para a área do estudo bíblico. Na arte litúrgica é por vezes representado como um cardeal com um leão ou ainda como um eremita. Outras vezes aparece como um escolástico. São Jerónimo morreu a 30 de Setembro, de doença. Vale de Prados comemora-o em festa, em Agosto.

Em Arrifana, na capela de Santo Estêvão, guarda-se uma antiga imagem. Nesta povoação viveram refugiados alguns frades aquando da extinção das ordens religiosas no tempo do liberalismo do século XIX.

Existe ainda uma outra capela, a de S.Cristóvão, um voto e uma memória de viagem com um santo padroeiro dos viajantes. Fica ao lado da Junta de Freguesia e perto do edifício da sede da Associação Cultural, Desportiva e Recreativa de Vale de Prados, uma associação que ao longo dos anos desenvolveu um trabalho louvável em prol dos habitantes.

A paisagem de Vale Prados e Arrifana é muito bonita, constituída por um mosaico em que o ecossistema mediterrâneo, oliveira, vinha e sobreiros, se mescla com o típico da montanha de Trás-os-Montes, lameiros, castanheiros e carvalhos. Onde pinga água, há uma horta, magnífica, de produtos soberbos. A Serra do Cubo e a Albufeira do Azibo, ambas lado a lado, proporcionam-lhe estar incluída em grande parte na área de Rede Natura, fazendo parte da Paisagem Protegida da Albufeira do Azibo. Estes factos abrem-lhe perspectivas de desenvolvimento no turismo. A requalificação urbana, a proximidade da água e a, para breve, construção da área de praia de Vale de Prados, possibilitam que os privados se sintam impelidos a investir não só em infraestruturas hoteleiras mas que os actuais operadores, com cafés e casas abertas, melhorem as condições de oferta aos turistas. Vale de Prados está no trajecto dos percursos pedestres da Albufeira do Azibo, encontrando-se os respectivos itinerários assinalados ao longo dos caminhos e com painéis informativos em vários pontos da localidade.

São gastronomicamente típicos desta aldeia as morcelas, os azedos e o folar doce. O artesanato tem fama além fronteiras com miniaturas de casinhas em xisto e em madeira, artigos, rendas e bordados de linho.


(1)Mas que de mouros deverá ter só o nome, já que tudo indica poder ser mesmo mais antiga ainda. Tinha uma laje de fundo, quatro lajes dos lados e uma outra a servir de tampa. Existiu no sítio que hoje é uma padaria, junto do cruzamento da estrada de Vale de Prados com a estrada nacional.




(2)Também no romance “O Segredo da Fonte Queimada” aparece esta fonte e há algumas cenas de um outro romance do mesmo autor, Manuel Cardoso, intitulado “Um Tiro na Bruma” que se passam também nesta povoação.

Um livro

Há momentos da história de Portugal que se transformam em fontes subterrâneas de actos políticos do futuro. Momentos de fractura. E um desses momentos foi o dia 20 de Abril de 1911, o da promulgação da Lei da Separação do Estado das Igrejas. A perspectiva histórica desse dia tem uma das suas linhas de fuga nitidamente desenhada desde o pombalismo e a expulsão dos Jesuítas em 1759 (que a nós, trasmontanos, nos prejudicou e sem nos ter dado nada em troca) e outra das suas linhas enraizada na extinção das Ordens religiosas feita pelo liberalismo e por D.Pedro IV em 1834 (que a nós, trasmontanos, nos prejudicou mais ainda e sem nos ter dado nada em troca, mais uma vez). E hoje, quando vemos governos com leis que mandam tirar os crucifixos das escolas (pormenor de intenção muito mais funda do que a mera remoção da parede…), assim como as atitudes e discurso de hipocrisia religiosa da nossa nomenklatura e da nossa inteligentzia, tudo isto tem o mesmo hálito de bafio porque bebe a água da mesma fonte subterrânea que esteve na origem da Lei da Separação do Estado das Igrejas de 1911.


“…na Europa de hoje (…) vem-se criando um sistema cada vez mais cerrado de limitações à expressão da fé, sobretudo da fé católica. Das limitações ao culto divino e à vida das comunidades cristãs, das limitações férreas à liberdade de educar, está a chegar-se à proibição de símbolos religiosos em lugares públicos ou a limitações à liberdade de expressão do magistério eclesiástico”.

Uma grande tese de Doutoramento de João Seabra veio dar origem a um grande livro sobre “O ESTADO E A IGREJA EM PORTUGAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX – A Lei da Separação de 1911”. Analisa e esclarece, de uma forma inteligente e lúcida, um dos temas de mais atrito na sociedade portuguesa: o do anticlericalismo, da militância anti-religiosa da classe política e da liberdade religiosa. O conhecimento profundo deste tema é importante não só do ponto de vista da curiosidade histórica (que é o que menos interessa) mas também do da liberdade católica (e este é o que mais interessa).

Não haja ilusões de que na mente de muitos dos nossos políticos de hoje é omnipresente um sentimento anticatólico e uma intenção política permanente de combate à Igreja e aos católicos. Um ludibrioso combate. Ainda hoje há uma “directa intencionalidade anticatólica até na forma como se interpreta a Lei da Separação”.

A liberdade religiosa em Portugal foi suprimida pela Lei da Separação. A luta pela liberdade religiosa em Portugal começou em 1911, quando a Igreja iniciou a resistência à lei.

A opressão da liberdade religiosa é uma opressão contra a liberdade de cada um de nós. Aprendamos a resistir a esta opressão começando por ler – e estudar – este livro que é e será marcante na história da Igreja e da cultura em Portugal.

A apresentação em Lisboa, com mais de meio milhar de pessoas, foi um êxito. Na sessão, Marcelo Rebelo de Sousa. Sem dúvida a sentir-se importante por apresentar um livro destes!

Um livro notável

De vez em quando aparecem obras que ficam para a posteridade como marcos na paisagem do mundo editorial. Isso é tanto mais válido quanto mais exíguo for o universo bibliográfico do assunto versado ou quanto mais elevado o nível da obra produzida. Aconteceu isso com a Ilustração Trasmontana (assim mesmo: trasmontana sem “n”, aliás como deve ser – não se escreve Trans-os-Montes mas Trás-os-Montes), para sempre uma autêntica jóia da nossa bibliografia, há cerca de cem anos, e acontece agora o mesmo com o livro Bragança Marca a História, a História Marca Bragança. Um livro notável.

Claro que houve outros, cada um deles uma obra do seu tempo, alguns de justa reputação, mas estes dois, que refiro em particular, tiveram e têm o condão de ficar como obras de referência. Daquelas que fazem boa figura na estante e que hão-de tornar-se tema de conversa e fonte de outros saberes por muito tempo.

Evidentemente que seria e é possível fazer uma leitura crítica do mesmo, tal é-o sempre nisto como em tudo, mas hoje não estou aqui para apontar pormenores ou omissões que só os não comete quem nunca nada escreve ou nunca nada faz. Estou aqui para dar um louvor. Vários louvores. Que bem podem começar pelo primeiro capítulo, o da Geografia, excelentemente explicada por Maria do Loreto e Tomás de Figueiredo, e terminar nas páginas finais de Armando Fernandes e de Luiz Filipe Pinheiro de Campos. Nunca houve sobre Bragança uma obra de síntese tão bem escrita, documentada e impressa. Praticamente, todos os aspectos em que se poderiam ter perspectivas sobre a urbe foram cobertos pelos sete capítulos em que se estrutura a obra. Recheadíssimos de ilustrações bem escolhidas, com um grafismo de Armando Alves que revela mestria na forma como soube compaginar diferentes soluções para diferentes problemas de formatação de texto, de variação de conteúdos e, até, de combinação cromática. Com o acréscimo de valor pelo facto de algumas das imagens que surgem nestas páginas serem autênticas revelações, documentos praticamente inéditos e desconhecidos para a maioria do público.

Obra de síntese que, ao mesmo tempo, não deixa de trazer a novidade no esclarecimento histórico, rigor na documentação de suporte e uma nova abordagem à ciência feita sobre a cidade, sobre as muitas cidades de Bragança que se sobrepuseram ao longo dos séculos e ao sabor das vicissitudes e mentalidades. Por isso, este livro é um romper com tabus que pontificaram durante anos. É cheio de surpresas para o leitor em geral e saborosíssimo para os que quiserem sentir o gosto de ler e ouvir muitas outras histórias sobre as mesmíssimas pedras, ruas e ameias de que desde sempre lhes falaram – mas de outro modo.

Este foi o livro de Bragança-cidade aos 545 anos. Haverá outro para os 550 anos? Para já, sabemos que este Bragança Marca a História, a História Marca Bragança ficará para a história de que faz parte como um dos seus protagonistas: um livro notável. Parabéns.

Olá, Clara!

(a propósito de um livro da Clara Ferreira Alves)

Desculpe, eu sei que não se mexe numa carteira de senhora mas não resisti. Fui ali à Praça da Sé, à Rosa d’Ouro, e pedi que ma mandassem vir da D.Quixote. Veio numa segunda de manhã e fui, já com ela na mão, beber um café ao Flórida, a essa hora mais desempoeirado e cheio de sol. Corri o zip. Foi surpreendente.

Saíram de lá tantos conhecidos como quem passa numa porta de teatro em dia de estreia: Papini logo sôfrego a citar o Gog, Huxley de olhar no horizonte a ver a paisagem, muitos americanos que quase não conheço a declamar textos que apetece agarrar, Borges, ah, o meu Borges a escolher aquela palavra justa que a perfura até à sina, confesso que nem dei pelo café nem pelo resto da manhã nem sei o que se passou a seguir: a mesa ficou repleta, eu confuso, aflito de ter que arrumar tudo outra vez e não saber como iria caber.

É sempre assim com uma carteira de senhora: sai de lá muito mais do que o inesperado. Mas quando lhe peguei, fecho aberto para caberem primeiro os mais volumosos, os americanos, vi que, lá no fundo, estavam ainda dois objectos: um espelhinho biface de aumento de um lado e liso do outro ( tinha, até, uma dedada de blush de um dedo fino e leve – o seu, de certeza! ) e uma pluma.

O espelho aterrou-me: não se via ninguém! Ninguém! Olhei de um lado, do outro, nada! Até olhei para mim e à volta a ver se estava tudo bem. Estava, havia pessoas entretidas noutras mesas, nem reparavam na confusão que ia na minha. Pus logo o espelho lá dentro, temeroso de algum sortilégio mais estranho. Li uma vez algures que esses espelhos são perigosíssimos.

Peguei então na pluma, só faltava a pluma. Era uma pluma antiga com cheiro de antiquário e meticulosamente aparada. Roidita na ponta, não contava! Pensei então que, tanto que escreve, não deve ter por aqui só uma pluma, deve haver muitas mais! Mas não. Tirei o espelhinho outra vez, quase voltei o forro de seda… mas mais nada. Foi, então, que reparei que o espelho só reflectia a pluma. Nada mais. Era um espelho só de plumas! Aliás, só daquela pluma! E de repente ocorreu-me que era isso! O capricho daquela pluma era aquele! Ter um espelho só para si... que assim só reflectia a solidão. Só. Nada mais. E ao por de novo tudo dentro da carteira, fi-lo já um pouco triste porque notei então com clareza que todos aqueles objectos estavam sós, cada um por si, capítulo a capítulo, página a página.

Desculpe, Clara, ter mexido numa carteira de senhora. E não leve a mal que lhe diga que, num dia de pluma solitária pelo Chiado onde andamos no meio de tantas e tão diferentes pessoas, a mergulhe num tinteiro, nos Italianos ou na Encarnação, cuja cor, então, vista ao espelho, deixa de estar sozinha e passa para o outro lado, o lado do arco-íris onde até um capricho de uma pluma e de um espelho é uma realidade absoluta.

Olá, Clara! Que bom ter visto a sua carteira!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

“Dialectos de ternura”

Os sentimentos foram sempre – serão sempre – o âmago do coração. Pode haver Ovídio, Dante, Shakespeare, tantos outros, mas seremos sempre nós, os portugueses, os heróis dos sentimentos – e as suas presas!

Com Camões, com todos os outros até aos Damásio, até cada um de nós. Por causa de muitas coisas, por causa do fado, por causa dos Da Weasel! Por causa dos sentimentos.

Um dos sentimentos, que não o único, em que somos um povo perito, é o do amor (pretensão minha, começar logo pelo maior e melhor de todos – mas haveria de começar por algum outro?).

Ora, uma das expressões do amor é a ternura. A ternura faz-nos falta. Imensa falta. Sem ela, o amor é um quadro sem nada, um quadro de todos os possíveis, desde o ciúme ao ódio. Com ternura, o quadro tem tudo de bom escrito nele! Tudo.

Não vou aqui dizer de que amor falo nem de que ternura. Isso fica para quem ler. Para a circunstância de cada um, a situação e capacidade de cada um. Mas há que trazer a ternura ao nosso dia-a-dia. Ternura de gestos, ternura de conversas, ternura de atitudes, ternura de palavras e de demonstração para com o outro ou os outros.

A ternura não é só para os amantes, para os que dormem na mesma cama ou para os têm o mesmo tecto. A ternura deve ser para todos.

A ternura deve ser indispensável no nosso dia-a-dia. Ternura entre dois seres, entre muitos seres, entre humanos, entre todos os que tenham coração a pulsar. Porque a ternura é o alimento dos afectos. E os afectos são o alimento do amor. Que é o maior dos sentimentos. E devemos amar-nos uns aos outros.

Por isso, dialectos de ternura é e quer dizer mais do que o que diz uma simples música (“simples música” é uma forma de dizer, é claro que não é uma simples música…) em que um par de apaixonados se possam rever. É uma música em que Portugal se pode ver ao espelho!

Portugal? Talvez não. Talvez cada um de nós (cada um é mais do que Portugal), na fase da vida em que estamos, a olhar para si e para nós e a vermos que, de toda a nossa vida, aquilo que fica de perdurável, para lá do fado de Portugal – que já de si é eterno! – são os momentos de ternura que, algum dia, pudemos dedicar a alguém ou alguém nos dedicou a nós!

No fundo, e do que um dia restar de nós, da nossa vida tão fugaz e apressada, hão-de apenas ficar, como mais memoráveis, todos os dialectos de ternura que, por muito insignificantes que nos pudessem parecer ao exprimi-los, deles fomos capazes nos brevíssimos momentos de cada um dos nossos dias.

Não tenhamos, por isso, medo de dedicar um pedacinho de cada um dos nossos dias aos dialectos de ternura de que alguém, um dia, se lembrará que lhe demos!

ANTES QUE ACABE SÓ EM PIZZA

No Verão passado esteve em nossa casa, em Latães, a Rosalba Facchinetti, escritora, em trânsito numa ida e volta entre S. Paulo, no Brasil, e Angellara, lugarejo no Cilento, Salerno, em Itália. Esta rota do Brasil à Itália e que passa pela Serra de Ala, aqui em Trás-os-Montes, enche-nos a casa, periodicamente, de exotismo exuberante – a Rosalba fala imenso sobre coisas raras e interessantes – e apetecido encanto. Deixou-nos um livro seu, intemporal e cheio de carácter, “um pouco da minha alma ítalo/brasileira”, cujo título é “Antes que acabe (só) em pizza”. Em italiano: Sàngue non diventa àcqua mai!

(“acabar em pizza” é uma forma de dizer quase como “ficar em águas de bacalhau”. Digo quase porque as pizzas podem-se comer enquanto que ninguém pensa beber as águas de bacalhau...)

A Rosalba foi levada para S.Paulo com três anos e teve uma vida de “paulistana e 4 filhos ítalo-brasileiros”. Diz que entrou para a escola e nunca mais saiu até hoje, sempre escrevendo, do jornalismo à pedagogia, à ética, à filosofia e a títulos que aguçam a curiosidade como sejam “Palavra de Ordem”, “Carol & Daniel”, “Com os dois pés no mesmo sapato” e “Amor e saco”. “Mas a minha ligação com o Cilento, minha origem, é mais forte do que a distância geográfica e perdura no tempo. Eu não a perdi, faz parte do meu DNA, é memória atávica, veio no leite materno, na cantiga de ninar, nas histórias contadas nas festas, nas reuniões familiares… e quero passá-la adiante”.

Este passado não é importante por ser aquele paraíso perdido cujas amarguras os anos fizeram esquecer e cuja felicidade as recordações teimam em dourar. Neste caso esse passado existiu sem essas reminiscências, foi um passado anterior aos seus três anos de idade. E não deixa de ser importante, tão importante que a Rosalba quer evitar que ele não ‘acabe só em pizza’. Porque não é só o passado: é toda a cultura que vai com a bagagem e com a alma de quem emigra.

Os “imigrantes italianos vindos do sul da Itália para S.Paulo, em grande número da região do Cilento, não trouxeram apenas a receita da pizza em sua bagagem. Trouxeram também o molho e as ‘brasciolla’ para servir nas cantinas, o falar alto e gritado, a música, o amor à família, a vontade de vencer e o gosto de fazer qualquer reunião se tornar uma grande festa. Trouxeram a sua história para misturá-la com a daqui e tentar criar uma nova. Essa mistura é tão saborosa quanto a pizza”.

Conservar a memória da identidade anterior é uma forma de se sobreviver no tempo, de manter o carácter e celebrar o êxito. Testemunhar a experiência de uma vida. Ler este livro, infelizmente não editado em Portugal mas acessível aos nossos leitores que estão no Brasil, é ler um exemplo para trasmontanos que hoje estão por todo o globo, para celebrarem a sua cultura de origem. Antes que essa cultura fique diluída completamente tanto na vaga moderna do país que os acolhe como na transformação deste nosso torrão que lhe deu origem.

UM HOMEM E AMIGO

Um dia, no rescaldo do Verão Quente de 75, encontrava-me sozinho na Praça de Moncorvo a fazer um discurso político. Um grupo ouvia o que eu proclamava das escadas de granito, megafone na mão, entusiasmado pelos comentários e com a força que temos quando os nossos 16-17 anos (nem sequer votava ainda!) nos mantêm na inconsciência do que nos pode acontecer!


Passada meia hora e entrado no período de perguntas e respostas, vejo um VW Brasília dar duas ou três voltas à Praça e o condutor de cara surpreendida, sorriso franco. Saiu da viatura e ficou por ali, à espera que eu acabasse, braços cruzados, falando com este e aquele, sorriso escancarado e a acenar com a cabeça num gesto de “este tipo faz cada uma!”. Era o Dr. José Manuel Ruano, que conhecia de Macedo, onde conversávamos muitas vezes numa tertúlia de que eu era o júnior e que se juntava na mesa do Dr. João Pessoa Trigo, no restaurante Montemel.

- Você está tonto de todo! Então vem para aqui fazer um comício sozinho?

- Que é que tem?

- Que é que tem?! Tem que ainda o zurzem, estes comunas todos!

- Comunas?

- Para estarem aqui a meio da tarde e sem trabalhar, claro que são comunas! Vá, venha daí, vamos ali beber qualquer coisa!

A amizade que, durante anos, mantivemos, foi daquelas que quanto mais o tempo passa mais duram. Sofreu embates que a fortaleceram e sobreviveu ao longo de três décadas mesmo aos períodos de ausência ou de afastamento. Quando nos encontrávamos, era como se tivéssemos estado na véspera, apesar de meses terem passado.

Inteligente, culto, informado e atento, era dotado de uma força que sabia usar e incutir aos companheiros. Claro que tinha defeitos como todos nós mas as suas qualidades de liderança fizeram com que fosse eleito para cargos que desempenhou com reconhecidas vantagens para a lavoura em geral e para a trasmontana em particular – apesar dos costumeiros desfazedores de café, sempre mais atentos ao que é negativo e menos esclarecidos para elogiar o mérito.

Apesar dos que vaticinavam que o seu mandato de governador civil iria ser uma lástima, o certo é que ao fim do mesmo lhe choveram elogios quer dos seus apoiantes quer dos seus anteriores detractores. Estava precisamente no exercício deste cargo quando certa vez fui vítima de uma deslealdade absoluta de um conhecido comum. Custou-me imenso engolir em seco a desfaçatez com que me tinha sido urdida uma trama. Mandou-me chamar a Bragança, que lhe tinham chegado ecos. Conversou comigo longamente e fiquei a conhecer-lhe uma faceta madura: a do conhecedor do comportamento humano, da capacidade de antecipar as atitudes dos outros para com as suas próprias atitudes. Foi preciosa, essa conversa. Depois disso, estivemos ainda muitas vezes mas esse dia foi marcante, para mim. E deu-me uma mão que me ajudou a subir um degrau quando eu precisava desesperadamente. Vários tentaram, por diversas vezes, quebrar a lealdade que mantivemos entre nós. Nunca o conseguiram.

Zé Manuel Ruano, obrigado por ter sido sempre meu amigo!

ARTIGOS DIVERSOS

Reparei que tenho em arquivo umas centenas de artigos que foram sendo publicados nos últimos anos em diversos órgãos de comunicação. Acontece que muitos deles não estão on-line pela simples razão de que alguns jornais ainda não tinham, na altura, versões on-line das suas edições ou ainda pelo facto de que outros não colocam na net os artigos de opinião. Decidi-me, por isso, e a partir de hoje, publicar neste blogue alguns, bastantes, desses artigos, dando-lhes uma ou outra revisão. Impossível colocar a referência de onde foram publicados porque isso obrigar-me-ia a um trabalho fatigante de folhear jornais ou de classificar e-mails enviados e não tenho tempo para tanto!

domingo, 20 de junho de 2010

Externato Trindade Coelho - Memórias e Outras Histórias

Os livros de memórias são dos géneros mais interessantes de literatura.


Na realidade, em todos os livros está sempre algo da memória do seu autor mas nos que são de memórias, mais ainda do que num diário, está a perspectiva de quem escreve, focada precisamente num tempo que a passagem dos anos não apaga, flashs esclarecidos de episódios e vivências, a que a posteridade vem dar uma coesão especial. De outro modo ficaria deturpada na informação que o autor quer deixar.

Nos livros de memórias não há só a intenção de registar factos, emoções, datas: há o sabor de os recordar e o saber de os transmitir.

O interesse dos livros de memórias é diferente para quem os escreve e para quem os lê. Quem os escreve tem a preocupação de neles verter a sua intenção; quem os lê rebusca neles com a sua curiosidade. E muitas vezes ambos misturam a visão de quem escreve, a visão e a memória do autor e do leitor, surpreendido pela perspectiva alheia sobre acontecimentos de conhecimento comum. E esta diferença de paralaxe, este autêntico jogo dos possíveis, tem o surpreendente de dar uma dimensão diferente, uma dimensão fecunda que torna atraente de forma invulgar este tipo de literatura. Aliás, reside no desfocar da nossa perspectiva face às realidades vividas por outros, o âmago do atractivo desta literatura, como num perfume reside no ressoar de uma molécula de benzeno a capacidade de impressionar o olfacto. Este palpitar, fruto da dinâmica que se forma por causa de uma mesma memória ser evocada de pontos de vista diferentes, este desfasamento entre o outro e nós, é que cria o lado tão emotivo desta literatura. E quando acabamos um capítulo, um parágrafo ou uma simples passagem em que se nos descobre uma outra forma de ver ou de recordar um facto, logo no nosso espírito surge uma dinâmica de pensamento que nos solta um inspirado suspiro, um vislumbre inédito sobre o tema, uma novidade que, de alguma forma, nos traz felicidade.

São sempre felizes, os livros de memórias, em preencherem o que nos vai cá dentro, mesmo os mais tristes que nos suscitem tristezas, os mais dramáticos que nos ponham contritos, os mais violentos que nos obriguem a fechar algumas páginas ilegíveis ou medonhas. São uma superior forma de felicidade porque à partida não são uma felicidade solitária: à partida são uma forma de felicidade partilhada. Mesmo os que se desfaçam – e nos desfaçam – em lágrimas, essas formas tão líquidas que temos para exprimir momentos extremos.

Este livro do Dr. Garcia, em que são recordados momentos marcantes da sua vida – e em que está muito de uma faceta militante de um homem que soube dosear o seu conformismo e inconformismo ao longo da vida, é um livro com passagens notáveis duma simplicidade literária pura, densamente preenchida por testemunhos cheios de significado. Mas é, também, um livro que, em muitas passagens, é um testamento moral. Não tem frases inúteis. Cada uma delas tem um propósito subjacente: o de ficar para a posteridade como uma marca tão indelével quanto possível. Para quem o quiser ler? Sim e, sobretudo, para os netos, que o autor sente manifestamente capazes de, combinando genes e a interpretação do seu testemunho escrito, se libertarem daquilo que o meu amigo Dr. Garcia não fez ao longo da vida: fugir ao destino. Se se atrevesse a um recomeço, o autor forjá-lo-ia…

Das páginas do livro fica um remorso que se lê mais na luz dos momentos do que na letra das frases: o remorso de não ter querido, ou podido, ou ambas as coisas, fugir ao destino, obrigá-lo a um outro modo de diferença do que foi a sua vida vivida (vida vivida, é mesmo isto).

O Dr. Garcia foi meu professor em 72/73 e 73/74. Aprendi muito com ele, então. Não apenas a matéria das disciplinas, de que ainda faço uma vaga ideia, mas um testemunho de presença, de que ainda tenho a imagem nítida. Estou a vê-lo entrar na sala de aula, sempre de blazer com botões (às vezes o blazer tinha cotoveleiras) segurando uma pasta preta, uma vasta pasta preta, pousá-la na secretária, abri-la, tirar livros e folhas. Depois de nos cumprimentar, olhava pela janela que dava para a rua (a rua Almeida Pessanha, a “rua dos talhos” como então se dizia). Ficava um breve instante sério e pensativo após o que, fitando-nos com um ar vivo, nos dizia:

- Então, que tal?

E começava uma conversa mais ou menos informal, mais ou menos divertida, com histórias e opiniões, com mensagens mais explícitas ou mais implícitas. O tempo ia passando. A certa altura entrava-se na matéria. Pegava no giz e fazia-nos uma demonstração de uma fórmula ou explicava, tracejando números e letras, uma resolução de uma equação.

Durante muitos anos o meu rasto não mais se cruzou com ele, embrulhados ambos em vidas diferentes, entrevistando-o esporadicamente num passeio ou num atravessar de ruas, sempre muito fugaz. Mas eu sabia, mera intuição, que me reservaria, nos reservaria, mais esta lição. Uma lição de vida.

Bem sei que este livro de memórias e outras histórias está, também, eivado de passagens de proclamação marxista, ideologia muito diferente do meu modo de pensar, e eu não venho aqui questionar esse marxismo professo pelo autor. Mas tenho a perplexidade de reler essas proclamações marxistas de um modo estranho: é que não estão ali nas frases ao serviço do mesmo marxismo que as terá inspirado mas de uma forma muito antiga de humanismo. De um humanismo não católico, segundo o autor, mas de um humanismo de quem tem fé em Deus, tem horror à injustiça e à iniquidade deste mundo, das pessoas deste mundo, um respeito escrupuloso pela dignidade das pessoas, sensibilidade perante o belo, a música, a arte. Indignação profunda perante a pusilaminidade e mediocridade de carácter, a falta de companheirismo, a falta de solidariedade social. E quer que todos partilhemos desse seu humanismo. E mesmo se há passagens em que coloca nas palavras uma mais veemente intenção subversiva, a da via armada de uma revolução, a de querer correr a tiro uma certa clique, tal não é um imperativo bélico de um atirador a querer liquidar pessoas: é mais uma vontade (um remorso?) de que não haja mais uma oportunidade desperdiçada, como terá sido outra ou outras, das de mudar o mundo. Há sempre uma idade para se querer mudar o mundo. Felizmente o Dr. Garcia não a perdeu: deixa um incitamento a que outros o façam e de tal sejam capazes.

Todo o tom do livro é o de um homem tranquilo que se indigna perante o lado negativo das pessoas. Todo o tom do livro é o de um homem que agora, ao fim destes anos, sente um sobressalto de intranquilidade pelas mesmíssimas razões. Só que estas razões são as mesmas que levam qualquer homem de boa vontade a sentir-se intranquilo e indignado. Não só aos marxistas e, até, sobretudo aos não-marxistas. Aliás, apesar das proclamações marxistas, a história demonstra que em matéria de sensibilidade social não é o marxismo o bom exemplo a seguir.

De certo modo, este livro é uma declaração de guerra e um pedido de armistício. Com quem? O autor sabe-o e diz-no-lo: com todos aqueles de quem não guarda ressentimentos. Coisa elevada e de uma profundidade que só raros conseguem. Tal como só raros escrevem um livro assim.

Defeito do livro: curto.

sábado, 15 de maio de 2010

As Pedras de Orense





Piedras de las calles de Ourense,

Piedras, viento e lluvia:

Viento que sopla,

Como um fluido de tiempo;

Lluvia que es agua,

Interminable hilo de vida e mistério;

Piedras de quartzo, feldspato e mica.



Piedras de las calles de Ourense,

Pisadas por sandalias, botas, tacones lejanos,

Por pies que se mojam en las aguas de Ourense,

Que pisan el granito.



Piedras de las calles de Ourense

Hechas de agua,

De la alma de Ourense,

Que se mira en los ojos,

Ojos de la gente,

De la gente que pasa en las calles de Ourense.



Ojos de colores de aguas profondas,

Colores antiguos que se escurren del cielo,

Que suben del suelo.

Calientes como la agua,

Del fondo de la tierra

- Donde un dios secreto

Os acalentura en su corazón.

Las piedras de las calles de Ourense.

terça-feira, 4 de maio de 2010

A Paula e o António

Há uns tempos, depois de mais um Câmara Clara, escrevi um artigo sobre um tema tratado. Apetece sempre escrever qualquer coisa depois de se ver o Câmara Clara...

É impossível ficar indiferente à voz e ao olhar da Paula Moura Pinheiro. Captam-nos a atenção desde o primeiro instante como se nos perseguissem. De tal modo que agora, ao ler seja o que for de PMP, nas linhas parecem estar, escritos como marca de água sub liminar, os símbolos do som de toda a força desse seu olhar e dessa sua voz. Digamos que dão mais força aos seus argumentos!

Tal como era impossível, no século XVII, ficar indiferente ao que pregava o Padre António Vieira. Não conhecemos dele a voz, nem o olhar, nem o gesto. Mas conhecemos a força do seu testemunho, o valor dos seus argumentos, a importância de tanta persistência na “perseguição do seu objectivo celeste” (para usar uma expressão de PMP). Há uns anos, em Lisboa, no Cinema Roma, numa concorrida sessão de homenagem da Casa de Trás-os-Montes ao Professor Doutor Adriano Moreira, um actor emprestou a voz, uma belíssima voz, para o Sermão de Santo António aos Peixes. Foi magnífico poder ouvi-lo à beira do palco como se o fosse da balaustrada de um púlpito. A voz de Vieira poderia ser diferente mas ali, entoadas daquela maneira, as frases que nos fazem humilhar a ponto de reconhecermos não prestar para sermos o sal da terra e que ao mesmo tempo nos fazem crescer para querermos mesmo e muito ser esse mesmo sal da terra, foi como se Vieira, ele próprio, nos interpelasse com força e determinação.

O ponto de vista feminino, sempre para lá da lógica da análise e muito melhor do que a lógica da análise, vê até onde esta não chega: o fundo dos corações, o valor emocional de um argumento. Para descobrir facetas de um homem, não há, pois, como uma mulher. Daí que tenha sido com uma enorme curiosidade e surpresa que li o artigo de PMP sobre o Padre António Vieira escrito na Brotéria, uma síntese no âmbito do Encontro Fé e Justiça, realizado em Lisboa em Fevereiro, sob o tema “Padre António Vieira: os mesmos desafios quatro séculos depois”.

Tal como Vieira “nunca vacilou na perseguição do seu objectivo celeste”, também PMP se mostrou convicta na incansável militância de S.Paulo em afirmar que “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher…”.

Espero sinceramente que PMP nunca deixe de nos perseguir nesta descoberta da verdade pela voz – que digo eu? – pelos sermões e pela vida do nosso Padre António Vieira.

sábado, 10 de abril de 2010

impressões dos que estiveram por aqui - 1

"Bragança, 11 de Novembro de 1973"

"Vou ao correio. Mas é domingo. Portas fechadas. Só nos cafés a gente aperaltada discute temas de ocasião. Fala-se de gasolina, do fim do mundo, das grandes carestias. Procuro, na farmácia de serviço, o tal remédio infalível e lusitano, importado da América, meio milagre, meio droga, que me cure a filharada, febril e doente de serra e frio.
Isto é um poço, diz-me o boticário. E vai aviando, com presteza, uma medicina obscura que mata todas as lombrigas. Assim garante a uma brigantina de oito ou nove anos, enfezada, anilada, pobre flor que me emociona todo o ser eu, apenas e afinal, um Portugal de bolso. Adeus".

in Diário, vol II, João Palma-Ferreira

Tenho vindo a coleccionar, sem objectivo declarado mas com intenção de vir a ser qualquer coisa, textos publicados de gente que andou por aqui, por estas nossas terras. Tenho descoberto coisas inauditas! Exactamente: inauditas! Inauditas entre nós, bem entendido, e muito curiosas de se ler...
Fantástico, vermo-nos no espelho dos outros ou, verdade seja, surpreendermos os outros a verem-se ao nosso espelho!
Este mini-texto de hoje é uma mini amostra. Muito legível. Sobretudo nos subentendidos de um diário...