segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

há mundo lá fora

Há mundo lá fora
(um conto de Natal para quem não gosta do Natal)

©Manuel Cardoso

A Maria João alinhou melhor um dos talheres de sobremesa, passou a ponta do algodão a limpar uma dedada que tinha ficado no Christofle. Suspirou. Olhou lá para fora pela janela, a cúpula da Basílica a brilhar ao sol frio desta manhã de Novembro, por outra o vermelho e amarelo das árvores do jardim da Estrela, o trânsito menos intenso de um sábado. Os filhos tinham saído e deviam estar a regressar para o almoço, o António também, tinha ido só comprar o Expresso, e depois seria a vez dos convidados, uns amigos e colegas da empresa. Era o último sábado com compromissos atrasados, depois viria a lufa-lufa do Natal, começara mesmo a fazer uma lista de que desistira com um sentimento de “hoje ainda não, terei tempo, não vale a pena já”. Acumulava-se à sua frente um montão de tempo. De tempo aflito de pressas e vazio de vontade. Seria preciso algo mais para o desalento? Na semana passada, na missa, encerrara-se o ano litúrgico, dissera o prior, estava-se na semana de início de um novo. Para si, de início de tudo outra vez, do fastio de existir, vontade de fugir sem querer ser covarde, mas presa a tanta coisa de que queria desistir. Esta coisa dos miúdos – quais miúdos? Na idade deles já estava casada! – não lhe saírem de casa nem assumirem um compromisso para a vida, a sua sensação de solidão permanente já desabafada com o António “Isso é da meia-idade, vais ver que logo passa!”, o ter de estar pronta para tudo e sempre, para toda a família, para os primos, para as tias, para os… farta, farta, farta! E não sentir vontade de nada, nem prazer em nada. Sobretudo isto, perder a alegria de ter prazer. Seja em quê. Fosse no que fosse. Aquela sensação de leveza ao dar um presente que alegrasse alguém, a euforia suave que lhe ficava depois de uma noite de amor, a excitação de dar uma boa notícia a esta a àquela, tudo isso se apagava nos dias solitários – ela achava solitários –, nas manhãs lentas de despertar para uma monotonia que a vinha corroendo, a desfazia para lá das lágrimas que disfarçava com make-up e para lá de todo o cinzento com que via toda a casa, os móveis, as pessoas e a sua alma.
Olhou outra vez pelas janelas.
Devem estar quase a chegar.
“O meu casaco? A minha carteira?”
Abriu a porta, desceu as escadas, saiu para a rua. Pôs-se a andar olhando só para o empedrado. E andou, andou, andou até se cansar, era já meio da tarde quando parou. Braços caídos.
Levantou o queixo, sentia fome e frio. Olhou à volta, entrou na primeira pastelaria que viu cheia de pressa.
A Maria João saiu da casa de banho com a resignação decidida de que iria enfrentar qualquer adversidade. A começar pelo cheiro da lixívia forte que se exalava naquele aposento escuro. Não que fosse um mundo novo mas que era uma situação de muitas com as quais queria aprender a lidar. O papel era asperíssimo, tinha tido que usar uma folha para conseguir segurar com menos nojo na pega de acccionar o autoclismo. A torneira da água (só havia de água fria) estava longe de reluzir limpeza num cromado que já há muito deixava ver o metal amarelo com verdetes. Não usara a toalha, nem lhe tocara, havia ao lado um dispensador de toalhetes de papel mas estava vazio. Sacudira as mãos, agitava-as ainda quando se sentou a uma mesa de canto. Notou perfeitamente que as quatro ou cinco pessoas que estavam ali, dois homens de idade que jogavam ao dominó e três mulheres que momentaneamente desviaram a cabeça da televisão, convergiam os olhares na sua direcção. Um homem que estava ao balcão dirigiu-se-lhe “ora boa tarde, se faz favor” e ela pediu um galão e uma torrada.
Lá fora passavam carros numa rua de empedrado irregular e começava o escurecer de fim de tarde. Pessoas cruzavam-se no passeio estreito diante da porta, todas encasacadas, todas desconhecidas. Do lado direito da porta havia uma máquina de cigarros com uma cena colorida de um amolador a arranjar o salto alto de uma bota de uma rapariga que esperava. “Também está sozinha, aquela ali da bota, apesar de vamp”, pensou. Levantou-se e foi buscar um maço. Voltou a sentar-se, abriu-o e acendeu um cigarro. Nesse momento o homem pousou-lhe o galão na mesa “a torrada vem já!”. Ela agarrou no copo com as duas mãos, aquecendo os dedos e a palma no calor do copo. Pôs-lhe o açúcar. Mexeu. O homem pousou a torrada mas ela preferiu acabar o cigarro, primeiro. Deu uns golos no galão. Estava agradável, muito agradável. Sentiu-se melhor. Mudou de posição na cadeira metálica, esticou a perna esquerda, cruzou a direita por cima, respirou fundo e apoiou o queixo na mão, cotovelo na mesa. Deu uma última passa. Apagou o morrão num cinzeiro de alumínio amolgado.
A parede ao lado era toda ela um espelho, um espelho acastanhado que fazia a pequena pastelaria parecer muito maior. Aqui e ali havia autocolantes, uns inteiros e outros rasgados, já antigos. Viu-se no espelho. Estava com ar cansado, lá isso estava, talvez com ar de frio, de certeza com ar de frio. Mas tinha uma expressão de desafio. Desafio de si própria. Um olhar exultante – como podia ter aquele olhar exultante?!
O homem pousava agora o estojo dos guardanapos de papel.
- Como se chama, esta pastelaria?
- A Flor das Natas.
- E esta rua? Que bairro é este?
- A senhora está perdida?
- Perdida, eu?! – sorriu, sorriu por dentro e por fora, diante daquela ideia de estar perdida.
- Não, que ideia! Tenho andado a passear, só isso.
O homem disse-lhe o nome da rua e o do bairro. Ela não fazia a menor ideia de onde era nem uma coisa nem outra. “Ora”, pensou, “também na vida não fazemos a menor ideia dos momentos que nos esperam”. Comeu a torrada, acabou o galão, ao pagar viu que tinha quase cem euros na carteira. Deu as boas tardes, saiu com um obrigado.
Tinha andado meia dúzia de metros quando reparou numa montra num papel “precisa-se de empregada”. Parou e leu outra vez. Espreitou para dentro pelo vidro embaciado.
Hesitou um instante. Voltou atrás, entrou de novo na Flor das Natas – estranho, parecer-lhe familiar tão imediatamente aquela luz, aquele espelho, aquelas pessoas – e pediu um café ao balcão. Voltou a fumar outro cigarro. Depois saiu, desviou-se de algumas pessoas que circulavam na mesma nesga de passeio, andou a meia dúzia de metros até à porta de vidro embaciado, empurrou-a e entrou.
Estava quente, abafado, ruidoso, cheio de luz e de vozes, todas elas se voltaram para si e mediram-na de alto a baixo. Uma aproximou-se e perguntou “tem marcação?”. Com uma curiosidade e um atrevimento que lhe saiu com um prazer inédito, respondeu-lhe:
- Não, não tenho. Também não vim cá para isso. É que vi ali o papel a pedirem uma empregada e estou aqui eu, pensei…
A outra olhava para ela sem desfitar o olhar, incrédula, mais ainda, embasbacada.
- Dona Dina! – chamou na direcção de uma mulher ainda nova que estava de secador na mão apontado a uma das clientes – Está aqui esta… senhora, a perguntar… é melhor a dona Dina vir aqui…
- Sim, faz favor? – aproximou-se a dona Dina, direita, despachada, bata com uma pinça de dentes largos presa no bolso, aproveitando para puxar para trás uma madeixa ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Eu venho aqui por causa do pedido ali na montra de uma empregada…
- Como?!
- Sim, é que ia a passar e li o papel…
Ouviam-se os secadores, o som de uma televisão ao fundo, todas elas estavam mudas e a observar a cena.
- Bem, se é por isso… - a dona Dina não se conteve de a examinar outra vez da cabeça aos pés, não lhe escapava aquele casaco, toda a toillette, os sapatos que valiam um ordenado, a carteira que valia dois – Mas, desculpe, acho que deve haver aqui um enga…
- Não há, acredite-me. Queria muito que me deixasse trabalhar aqui. Não discuto o ordenado que me pague e não estou a brincar. Ponha-me a fazer qualquer coisa! A dona Dina fixou-lhe o olhar por momentos, uns olhos onde lia imenso, ela sabia ler aqueles olhares todos nas clientes e este não lhe escapava.
- Alzira! – chamou uma das ajudantes. Traz aí uma bata para esta… nossa colega…
- Maria João.
- …Maria João. Mas, olhe, vai estragar as unhas, de certeza!
- Corto-as!
- Está bem! Está bem! Sabe lavar cabelos? Aposto que sim!
- Sei!
- Então, olhe, pode começar! – voltou-se de costas e dirigiu-se como que a um auditório: Que é que estão a olhar para mim?! Vamos a despachar, que é sábado e não há que estar paradas! – E, em voz mais baixa, para uma cliente da há anos: Está a ver isto? Não é só nas novelas da televisão! Aqui no salão Beleza também acontecem coisas, às vezes! - Pelo espelho, ambas exprimiram a concordância da sua surpresa.
Uma empregada mais nova explicava à Maria João onde estavam as toalhas e como era a sequência dos shampoos e amaciadores. Ainda lhe perguntou:
- Não quer por umas chinelas de feltro em vez de estar com esses sapatos? Daqui a bocado não se aguenta de pé!
- Agora já não me aguento de pé!
Riram-se as duas. Foi o seu primeiro riso de cumplicidade.
Ao fim de uma hora de cabeças lavadas já estava tu-cá-tu-lá com as clientes. Duas, ao sair, meteram-lhe uma moeda de euro no bolso da bata. Tudo tão diferente! Nem era desagradável, aquela sensação dos dedos nos cabelos delas, massajar, passar o shampoo, passar a água, estar sempre com atenção à temperatura, escorrer, envolver com a toalha, satisfação de mais uma tarefa cumprida!
Conversa mole de revistas baratas, apartes de antecipações de saídas nessa noite, observações picantes sobre homens reais ou imaginários. Ria-se imenso com as bocas, outro tanto com as que lhe eram directamente dirigidas:
- Olhe, sabe que mais? Se se viu livre dele, não queira outro! Arranje vários, querida!
- Sim, que ainda está boa prás curvas, filha! Olhe, homens, só se forem às paletes que é para não ter que se ficar com nenhum!
- Pois a mim bastava-me um! – suspirava uma matrona ao fundo, sentada numa poltrona ao lado de uma begónia, unhas mergulhadas na tina da manicure, arfando o peito para cima e para baixo – Nem tinha que fazer nada! Tratava-o ali nas palminhas, garanto!
- Ó dona Márcia, não venha para aqui com esse enguiço! Credo, mulher, para que os queremos? Olhe, bem, se for assim para uma noite…
Maria João ria-se daqueles argumentos delas, fazia a todas um ar de neutralidade e divertimento, espiavam-na e mediam-lhe cada olhar, cada gesto, na esperança de uma denúncia.
Tinha tido que apanhar o cabelo com um elástico atrás, estava só a cair-lhe e a perturbar-lhe os movimentos da cabeça, ficava-lhe colado ao pé dos olhos e não a deixava ver bem o que fazia e o resto da sala. Sentia-se a transpirar. Sabia-lhe bem, estar a transpirar por fazer aquele trabalho!
O salão parecia não esvaziar, entrava ainda mais uma cliente por cada uma que saía. Era sempre cumprimentada:
- Temos cá uma cara nova!... Hm… não é aqui da Ajuda, pois não?...
Um medo fugaz de ser reconhecida assaltava-a mas logo passava, hipótese recôndita que afogava com o chuveiro a fazer escorrer a espuma do amaciador.
Só depois das dez é que saiu a última das clientes. Uma rapariga varria o chão, ela aproveitava para fumar um cigarro, ofereceu outros às colegas. Foi aí que a dona Dina disse:
- Bem, meninas, venham os cafés e vamos à nossa vez!
Uma delas foi buscar um tabuleiro de bicas quentes à Flor das Natas, sentaram-se por momentos e depois, cortinas corridas, desligado o néon cor-de-rosa e azul que intermitentemente piscava Salão Beleza, arranjaram os penteados umas às outras, experimentaram maquilhagens. Uma delas, com uma pinça, deu um jeitinho a uma das sobrancelhas onde tinha um pelo rebelde.
- Sábado à noite é sempre assim! A nossa semana acaba hoje!
Juntaram e dividiram as gorjetas e depois despediram-se.
- Sabe, Maria João, se quiser volte na segunda-feira mas ainda à experiência. Isto anda mal para todo o mundo mas qualquer coisa… veremos se se arranja.
- Também ainda vou pensar mas um muito obrigado, dona Dina, por esta tarde…
- Olhe, e agora, vai para onde? Que eu não tenho nada com isso…
- Ah, não se preocupe, tenho sempre onde ficar!
Saíram, apagaram as luzes. Andou umas dezenas de metros, deixou que as colegas desaparecessem, desceu até à Junqueira, mandou parar um táxi.
- Para a Estrela, se faz favor.

A Maria João respirou duas vezes antes de abrir a porta. Meteu a chave, rodou. Ao mesmo tempo que a luz do hall a atingiu, este encheu-se. O António e os filhos envolveram-na num abraço e olhavam-na com espanto e incredulidade.
- Estávamos preocupados. A tua mãe deve estar a ligar para tudo o que é hospital!
- E ligou para a polícia!
- Até os primos não param de telefonar a saber se já tinhas aparecido! Que aconteceu?
- Onde foi, mãe?
Ela fez um sorriso de que não se lembrava desde o colégio. Fitou-os um a um como se fosse uma primeira vez, sentiu que o seu brilho no olhar podia ir longe de mais para o que queria e disse logo, sem mais delongas, as frases que resumiam o estar ali:
- Estou aqui sã e salva, não estou? Olhem, estou aqui como se fosse o vosso presente de Natal! Eu quero mesmo ser o vosso presente de Natal! Deixam-me ser?
No dia seguinte, à saída da missa, multidão de cumprimentos, beijos cheios de pressupostos e naturalidade aparente. Corria um ventinho que a fez voltar-se por causa do cabelo não lhe ir para a cara. Deu de frente com as árvores do jardim, cheio de sol, folhas a atravessar as grades, a virem para o passeio e a rua. Reconheceu aquele vento e aquela luz. “Apetece-me tomar um café! Vou só ali à bica”. Foi dando alguns passos, o grupo estava ainda nos cumprimentos, foi andando pelo passeio, as vozes foram ficando para trás, o barulho do trânsito, apesar de raro, meteu-se entre si e o da porta da basílica. Olhando para o empedrado, deixou de contar os passos. Foi simplesmente andando, andando, atravessando ruas, descendo as calçadas. Será que iria conseguir que a deixassem ser um presente de Natal?