sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O Senhor David, Jardineiro

 

1.       Com as idas para a D. Ester, a nossa pré-primária de há sessenta anos, a Câmara Municipal ficava em caminho e, por isso, várias vezes eu aparecia na repartição onde trabalhava o meu Pai, a dos Serviços Municipalizados, então no rés-do-chão, no corredor da direita de quem entra, porta em frente da que nessa altura era a primeira das três do Registo Civil. Trabalhava lá, também, o Senhor Carloto, com paciência e sempre um sorriso para mim, disposto a responder-me às perguntas sem filtro que faz um miúdo de cinco, seis ou sete anos. O balcão era altíssimo e, ao nível dos meus olhos, tinha um pequeno orifício redondo por onde eu espreitava, mas nada via, e onde cabia o meu dedo indicador. Um dia, disparei a pergunta: “Porque é que há aqui este buraco redondo?”. Os dois entreolharam-se e foi o meu Pai quem mo revelou: “Esse buraco está redondo porque foi feito por um trado nessa tábua para se poder tirar uma bala de pistola que se encravou na tábua de dentro!”. Não vou explicar agora como é que eu já sabia o que era um trado, mas posso e devo dizer que o meu Pai foi sempre assim, sobretudo quando a minha Mãe não estava por perto, de dizer claramente as coisas e continuar as explicações sobre o que fossem as perguntas seguintes! Nessa época as minhas pistolas eram de fulminante ou sem fulminante nenhum, o som era o de dizermos “Tau! Estás morto!” nas brincadeiras de índios e cowboys nos nossos bandos da Praça, do Trinta, do Prado de Cavaleiros e da Bela Vista, e imaginado pelos filmes ou nos bonecos animados. Ali, de repente, eu estava confrontado com um tiro real, uma bala real que fora disparada e se encastoara no balcão da repartição, furando a primeira tábua de forro, um laminado de madeira. Tive, de imediato, as explicações pelo Pai e pelo Senhor Carloto. Que tinha havido um assalto à Câmara muito antes de eu nascer, que o ladrão estava no Registo Civil, que, ao ser descoberto, ele disparara uma pistola e um dos tiros tinha ali acertado. Claro que, a seguir, outras tantas perguntas minhas levaram a outras tantas respostas. Se era de noite, porque é que a porta da repartição estava aberta (teria que estar para não ter sido furada nem ter travado o tiro), que acontecera ao ladrão, quem o descobrira… todas as respostas que tive ficaram-me indelevelmente marcadas, tal como a imagem de ver o sítio onde tinha sido a “casa do guarda da câmara”, onde “ele vivia com a sua mulher”, no que era então o arquivo da repartição do Pai e, durante anos mais recentes, um dos aposentos da informática, no vão das escadas. E quem era o guarda? Era o Senhor David, jardineiro.


O Senhor David! Com que admiração renovada passámos a ficar especados ao vê-lo a regar o jardim, algo sempre agradável, os miúdos que fui levando a ver o buraco da bala e que, autorizados pelo Senhor Carloto, pelo orifício redondo sentiam, com a ponta do dedo, a madeira desfibrada no interior. Confirmação da verdade!

2.       O espaço do jardim, à época chamado Jardim Doutor Oliveira Salazar, era o fórum da vila. Todo o maior movimento diário passava por ali: o da Câmara Municipal, do Tribunal, do Registo Civil, do Notário, dos Correios, das bombas de gasolina da SACOR, dos táxis e autocarros (que paravam ao fundo, ao lado das bombas), das duas pastelarias da moda, a Arco-Íris, da Helena Tirone, e a Flórida, do Café Tirone (um café pioneiro com uma taberna anexa), dos talhos (na rua ao fundo), da barbearia do Senhor Moura e, ainda, nos dias especiais, as verbenas com música de altofalante, o fluxo de pessoas que se dirigiam à Associação para ver filmes, bailes ou conferências. Também se pode dizer que a Casa Paroquial ficava no jardim, tal como a nossa escola primária, a funcionar no rés-do-chão da Casa Moreno. Durante anos, a sirene dos Bombeiros e da Defesa Civil do Território estava por cima da fachada da Associação e era accionada por um interruptor na parede quase ao lado da barbearia. E sempre que havia visitas oficiais, de ministros ou figuras gradas, a comitiva parava na rua em frente à Câmara e depois percorria a pé o trajecto até aos degraus dos Paços do Município sobre tapetes de flores ou de motivos desenhados com serrim colorido. Fotografias de casamento eram tiradas no jardim, bandas de música acertavam passo e tocavam no jardim. Tinha bancos de ferro fundido com ripas de madeira pintadas a encarnado, noutras épocas a verde e, noutras ainda, a branco. Como havia um pavimento de cimento liso no espaço de protocolos em frente à Câmara, nalguns períodos de maior complacência de polícias e zeladores havia quem por lá patinasse, mas os verdadeiros momentos de glória eram as noites de Verão em que as meninas se passeavam a exibir toilettes e a exercitar os saltos altos, a que nós ainda éramos alheios. Toda a vila ia passear ao jardim, voltas e voltas aos canteiros, acima e abaixo, num sentido e noutro sob as tílias, olhares perscrutadores a surpreender cruzares de insinuação e namoro. Jardim que ficava mudo e silencioso sob os nevões que lhe realçavam as formas geométricas de Inverno, transcendente quando as lâmpadas de Natal coloriam as tuias e o abeto grande. Hoje em dia diríamos que o jardim seria um hotspot de biodiversidade e tal estaria certo.


Na silhueta do seu entorno, pontificava o velho cipreste, ao lado do canteiro da estátua da Maria da Fonte e entre esta e a Fonte do Paço. Bordaduras de relva aparada, buxos cortados que poderiam examinar-se com régua, canteiros escavados sem uma erva estranha e onde cresciam maravilhosas rosas, simples, dobradas, repolhudas ou abertas, rescendentes de aromas ou mais discretas, em dezenas de cores e variedades, elogiadas por todos, ao ponto de um jornal da época referir “O jardim em frente aos Paços do Concelho é já um oásis acolhedor onde a vista, cansada da monotonia de todos os dias, repousa, deleitada, sobre a alacridade das relvas e das roseiras floridas“.[1] Coleccção de árvores de troncos rugosos e lisos, castanhos e cinza, coníferas e caducas, faias e um álamo, um abeto. Uma hévea. Ao pé dos Correios e pelo passeio acima, castanheiros da Índia, carvalhos americanos e áceres que nos encantavam pelas sementes a voar em helicóptero! Flores! Lírios brancos, azuis, amarelos, jarros, violetas discretas num cantinho, até de Outono havia flores, mais tímidas, com as geadas a vir. E sempre mais rosas, de todas as variedades e cores!

3.      


O ponto magnético de Macedo era o jardim. Foi-o, durante décadas. Quem passava todo o tempo a cuidar deste orgulho colectivo? O Senhor David, jardineiro. Sempre me lembro de o ver de sacho mais longo ou mais curto a cuidar da terra ou a misturar estrumes preparados, ancinho a arrastar folhas mortas ou a alisar um canteiro de que nasceriam surpresas, pequena lâmina curva de cabo com que afagava o encosto duma roseira a crescer mais torta e que ele forçava a ficar mais direita. Tesoura grande de aparar o buxo e a relva, tesoura de poda mais curta com que cortava caules com espinhos ou ramos indesejados com golpes certeiros e decididos. “Temos que as cortar agora para que rebentem outra vez!”, explicava-me um dia em que eu, ignorante, senti certa pena ao vê-lo fazer desaparecer pela base, à tesourada, uma série de roseiras que ainda há pouco enchiam de amarelos, vermelhos e brancos todo o espaço a seguir ao relvado do passeio em frente à Helena Tirone, onde eu tinha ido comprar um imperador. E todo o movimento relacionado com a mangueira, que arrastava para perto duma das torneiras de amarelo polido que sobressaíam da terra, era um cerimonial: ligar a mangueira, abrir a torneira, ir premir o botão que ligava o motor eléctrico para bombar a água do poço (que tinha uma tampa verde, de ferro, fechada a cadeado), depois senti-la a encher a borracha do tubo, a brotar com espasmos de ar, ele a segurar na ponta e colocar o dedo para espalmar o esguicho para que não magoasse as plantas nem sulcasse a terra, apontava metodicamente para este e aquele canteiro, lavava a poeira dos buxos que reverdeciam e agradeciam a frescura enchendo o ar de perfume, a humidade a pouco e pouco despertando todas as folhas e flores, transmitindo-lhes viço e alegria que nos contagiava a nós. Fazia tudo sozinho, mas não era um trabalho solitário porque imensos transeuntes metiam conversa, perguntavam segredos e nomes, pediam pés de roseiras para plantar. Tratava do jardim, mais dos canteiros da Avenida da Estação, do triângulo em frente à Estalagem, do grande e comprido da nossa rua (a que os detractores políticos do Padre Faria chamavam “a manjedoura”!) e dos da Casa dos Magistrados. Era o executante duma praxe, boa praxe, de Macedo: quando era colocado cá um novo Juiz, ou Delegado, ou Notário, ou Conservador, ou Delegado da Junta Nacional dos Serviços Pecuários ou outro cargo daqueles que, na verdade, contribuíam para o povoamento do interior, a Câmara mandava-lhe a casa, aquando da chegada, sendo o David o portador, incumbido pelo Presidente, uma grande canastra nova com um garrafão de azeite, outro de vinho, um pão centeio, outro de trigo, e… um grande e magnífico ramo de rosas e flores, por si composto!

4.      


No dia 27 de Setembro de 1953, às quatro horas da manhã, um audacioso gatuno arrombou uma das portas do salão nobre que dão para a varanda do edifício da Câmara Municipal, para onde terá trepado pelo tubo condutor da água. Dali terá ido para a repartição do Registo Civil e o guarda do edifício, David Ferreira Ramos, e a sua mulher, Maria dos Anjos Gaspar, ouviram os ruídos e tentaram intimidar o ladrão com um pau de vassoura. O que conseguiram, se bem que o criminoso tenha desatado aos tiros, atingindo-a com uma bala que lhe acertou no tórax e ficou alojada na região sub-clavicular. O gatuno fugiu, entretanto, dando ainda mais tiros já fora do edifício, o David foi buscar socorro e a sua mulher foi hospitalizada de seguida. Para trás ficara um molho com quase cinquenta chaves e uma chave de fendas e o assalto correra mal: apenas tinha roubado selos de pouco valor. Chegou a pensar-se que teria agido com cúmplices, mas não sabemos se terá sido assim. Cerca de quinze dias depois, nas Arcas, deram por sinais de haver um moinho que teria sido assaltado. Dois sobrinhos do dono montaram guarda e detectaram que haveria alguém escondido num outro moinho. Apareceram com surpresa e determinação e detiveram o intruso, que estava armado de pistola. Ainda tentou fugir, já desarmado pelos valentes rapazes, mas um deles acertou-lhe com uma pedrada que o tombou. Foi conduzido a Macedo, preso. Confessou o crime do assalto à Câmara assim como outros de que também fora autor. Ficou preso. Era de Chaves, casado, 24 anos, pai de um filho ainda pequeno…

5.       Hoje em dia uma grande e excelente equipa de jardineiros e ajudantes zela pelos canteiros que fazem o orgulho da terra. Há um trabalhão para os manter viçosos e bonitos a que devemos dar o devido valor. Quando se vê algum menos cuidado, não falta quem diga “Se cá estivesse o David não estaria assim!” – e não estaria! Lembrar o trabalho e o excelente desempenho que teve uma das figuras mais conhecidas em Macedo vem a propósito em particular este ano, que se constrói e planta um significativo parque ajardinado que ficará magnífico (e que não demore a ser ligado ao velho Jardim e ao largo da velha Igreja!) e esplendoroso. Que por ele se venha a sentir o orgulho e brio, profissionalismo e competência de que o David Jardineiro foi exemplo!



[1] Há dias, ao folhear antigos Mensageiro de Bragança, deparei-me com a notícia do assalto e os dados reportados à época e baseio-me nesses apontamentos e nas notas que amavelmente me deu o meu amigo e Presidente da Junta Sérgio Borges, que também me enviou as fotos com que se ilustra este post, para os dados mais factuais. Maria dos Anjos Gaspar (18.11.1915-14.11.1972) era natural de Vale de Prados. David Ferreira Ramos era natural de Águas Santas, Maia, onde nasceu a 19.02.1914. Era filho de Augusto Ferreira Ramos e de Rita Moutinho. Veio para Macedo nos anos trinta. Morreu a 15.11.1997, em Macedo. A foto do casal é de 1952; com o David a regar, 1974; com o seu neto Sérgio Borges, junto a um dos seus esplendorosos canteiros com as omnipresentes roseiras, 1984.   Esta versão deste post, de 5.08.2022, está na sua forma provisória e será revista oportunamente.