quinta-feira, 29 de maio de 2008

EMÍLIA

Em 11 de Dezembro de 1917 nasceu em Coimbra, primeira filha de um militar de carreira cujo casamento seria em rotura com toda a família dele e que o isolou. Nasceu quase escondida, na Messe de Oficiais do Convento de Santa Clara. Os isolou: a si e a todos os filhos que vieram a ser os irmãos da Emília. Estudou nessa cidade e em Lisboa, onde frequentou o liceu e teve uma formação republicana, do tipo bandeirinha na mão aquando da inauguração da estátua do Marquês, tendo sido companheira e amiga das filhas do Afonso Costa. Indo à Versailles e ao Jardim da Estrela, passeando na Baixa. Educação laica que lhe dizia que os seres vivos, como as pessoas, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Imortalidade, só a da escala humana, a dos nomes nas lombadas dos livros, nas letras das canções e nas placas das ruas. Os anos trinta foram o seu turning-point: essas amigas de infância e juventude abandonaram Portugal, morreu a sua mãe, teve de sair de casa (onde tomava conta dos irmãos) para ir para o Sanatório da Guarda com a sua irmã Aida, ambas em tratamento de tuberculose, onde se apaixona por um homem onze anos mais velho e clinicamente considerado um caso sem retorno. Respirou liberdade de obrigações e medos, brevemente, mas com a sensação de que o mundo ia acabar ali e agora, que tudo valia e que seria o fim de dificuldades e pontos negros - é talvez o melhor resumo desta sua fase, com o pano de fundo da guerra, das restrições impostas, do cenário sombrio na casa paterna, da desesperança instalada. Que é também o momento em que, com surpresa e graças a um tratamento inovador vindo de Itália, se cura o homem que ama, com quem casa, e que lhe sorri, por breves momentos, o bem-estar material. Religião? Até ali nem por isso, só com lógica, muitos argumentos ouvidos, estudados e vezes sem conta desmontados, teimosia de repelir e não aceitar o diferente, o incompreendido por natureza. Primeiro vieram os ritos e a necessidade aflita, contra a parede que aparece à frente, sempre a dúvida de que seja só a parede e nada mais para além dela. Depois vieram aquelas coincidências e partidas da vida aqui e ali, a paz de Fátima, sinais a que prestou atenção e que submeteu à mesma lógica aprendida no liceu, com o pai, com as amigas. A fé só veio depois, uma fé violenta, algo intolerante, de obrigações sentidas, sacrifícios desejados e de imposição aos outros – recuperar tempo perdido? A partir de então, aceitou o seu futuro como uma aventura, viveu-o como numa ficção, um passeio em que se misturou o pão de cada dia com a desilusão do inatingível, o quase desespero de ver uma dificuldade que um demónio lhe fazia surgir de cada vez que um anjo lhe retirava da frente uma outra dificuldade resolvida, sempre com espaço para o misticismo, cada vez com mais espaço para o misticismo. Teve os filhos com as alegrias e as tristezas que os filhos dão mas como se, estranha coisa!, os mesmos filhos o fossem mais do pai do que seus. Conforme os anos foram passando, a vida foi-a privando de tudo o que, só na aparência, lhe fora dado então. Até a privou da realização dos seus sonhos. Foi deixando ficar pedaços dos sentimentos vividos, como testemunho ou como militância, em versos e contos escritos, alguns verdadeiros sobressaltos amargos ou em fases mais serenas, quase todos publicados, escritora quase ignorada mas nem por isso menor. Muitos foram escritos como se de orações se tratasse, olhos nas frases, coração em Deus. Todos os dias a persistência de procurar na Fé o conforto e esperança dos problemas e dificuldades. Anos seguidos. Começou a morrer com a morte súbita do seu companheiro de quatro décadas, trinta e um anos antes de si. Desde esse dia, nos anos setenta, que a vi estender as mãos a agarrar-se à velha parede mas a deixar-se escorregar para o fundo, a querer não ser uma sobrevivência anacrónica. Nunca mais deixou de se colocar à beira do precipício – não a querer saltar mas a querer que o precipício a puxasse, qual abissus abissum, a levasse para onde um dia tivera a certeza de que tudo era um nada e agora tinha a certeza de que afinal era tudo. Mesmo tudo, que nada valia o resto. Demorou, como se a essa demora fosse obrigada como expiação ou um preço a pagar para se chegar lá. Mas porque não vem a morte e me leva, porque estou aqui onde o meu interesse não mora? Porque não era só da morte de que estava à espera mas dessa outra vida, a que rezara, a que pedira, aquela em nome da qual suportara esta vida – vida? : o amargo fardo da vida, que não há coisa mais amarga do que suportar anos sem fim a desilusão e a tristeza! Morreu no dia 17. Foi a última dos irmãos a morrer. Está, neste momento, finalmente, do lado de lá da parede, na imortalidade que a Fé lhe deu. E que ela viu. Foi por isso que, apesar do sofrimento dos seus últimos tempos, fez um sorriso ao fechar os olhos. Um sorriso que já não era para nós mas o primeiro de quem quer que chega a qualquer lado. Adeus Emília, adeus Mãe! Até que Deus nos queira juntar outra vez!

Texto escrito dias após o dia em que a minha Mãe morreu, 17 de Maio de 2008.