sábado, 11 de dezembro de 2021

MIRANDA do DOURO e MOGADOURO no Castelo de BRAGANÇA

Que o castelo de Bragança tenha história, lendas antigas e ainda muito por descobrir nos seus muros, quintais e recônditos, é coisa esperada e de que todos nós estamos cientes. Que é um dos sítios menos conhecidos e mais extraordinários de Portugal, também alguns de nós o sabemos, sendo que a sua justa fama esteja apagada por um trabalho de sistemático silêncio de séculos. Mas que na sua cidadela, ontem, tenha decorrido um evento vínico singular e exclusivo, a trazer Miranda do Douro e Mogadouro até Bragança, e para o qual tive o excepcional privilégio de ser convidado, é coisa inesperada, que não pode passar em claro, sem umas linhas. Para os que participámos foram umas horas descontraídas e cultas, em que provámos vinhos, cozinha de fusão e mérito, e em que à mesa conversámos de coisas sérias e coisas leves, historietas e trocadilhos, e cumprimos de forma alegre e em companhia o lançamento do Projeto Belfo da Arribas Wine Company.



A manhã estava fria mas o sol emoldurado pelas ameias da muralha deixou-nos estar ali perfeitamente, no Largo do Duque D. Afonso, Rua Rainha Dona Amélia, na esplanada do Contradição (o Duque para os de Bragança), enquanto dentro se faziam os preparativos. Frederico Machado e Ricardo Alves, donos e autores do projecto, António Picotês, seu compagnon de route, William Wouters, sommelier em Óis-do-Bairro, João Oliveira, da All Comunicação, o Emanuel e o Luís, da AEPGA. Quando cheguei, o Frederico segurava em algo invejável: uma caixa de vinhos da Filipa Pato e do William. Cumprimentos e apresentações, entrámos.

António e Óscar Geadas de anfitriões, acabámos por ficar instalados na mesa da entrada onde logo apareceram copos com dois dedos de Belfo, vinho de que já falei num artigo https://www.agroportal.pt/das-arribas-do-rio-douro-manuel-cardoso/ , cestinhos de pão (farinha de trigo barbela do Planalto Mirandês, especial como conduto do mesmo projeto) e bola de carne, tacinhas de faiança com azeite novo de santulhana, da Arvólea de Macedo do Mato. Num flash, a Diana Baltazar gravou um vídeo para o Viver Aqui da Porto Canal e que está online. E ficámos depois nós os oito mais os nossos guias e autores do repasto, intérpretes do que se ia passando: croquete de rabo de boi com puré de maçã granny smith de Carrazeda e mostarda savora; uma taça mágica que continha alheira grelhada e pelada, pickle de maçã, croutons de trigo (outra vez barbela), batata palha-frita, gema inteira de ovo a presidir… e que, uma vez misturada, se trincava em garfadas que apeteciam rapar até ao fundo!; grão de bico com salpicão e samos com umas lascas de bacalhau de fazer esquecer o que já tínhamos provado; lombelo de porco bísaro em pequenas fatias e que era dispensável porque o arroz em que assentava era por si um superlativo: carolino do Pepe, José Mota Capitão, da Herdade do Portocarro, cozido com cogumelos silvestres de época, cantarelos, boletus, lactários… que arroz! Nesta fase já tínhamos quase tantos copos em cima da mesa como na do Jacinto no 202, acrescentados num ritual explicado e cheio de observações pelo Frederico e pelo Ricardo, sempre com o António e o Óscar a acrescentar mais curiosidades, o António Picotês também, João Oliveira a tomar notas, Emanuel a explicar o que faziam na AEPGA e a tirar fotos, William e eu a conversarmos sobre a excelência de Portugal! Garrafas várias foram fazendo história: o Saroto branco, o Saroto rosé (autêntico vinho de lavrador, 12%, uma pena que só tenham sido feitas 1200 garrafas!), o Manicómio e o Manicómio G, o Raiola tinto… com um denominador comum a todos estes vinhos: uvas de vinhas antigas das encostas do Douro Internacional da freguesia de Bemposta, pisa a pé, intervenção mínima, leveduras indígenas, manipulações restritas “escola do Dirk”, álcool abaixo de 13% o que, para quem sabe, aumenta a perigosidade do vinho e de que maneira 😊 😊 😊!!! O Manicómio tem a particularidade de em cada ano ser feito com cumplicidades diferentes: com o Dirk o de 2019, o João Tavares de Pina o de 2020, Carmelo Peña Santana o de 2021. E o Manicómio G é feito à parte, estagiado numa barrica escolhida a dedo, G de Geadas. Nos doces voltámos ao Belfo, pois claro: uvas vindas de Peredo de Bemposta duma vinha em que há granito e calcite, mistura rara, field blend de muitas castas mas em que a predominante é a posto-branco ou barranquesa… para eruditos a discussão de sinonímias e encaixe classificativo!, e voltámos ao Belfo muito bem casado: pera fusionada em moscatel com gelado de café, brioche de laranja com creme de queijo,… chocolate… gelado de côco… … … Ninguém estava com vontade de vir embora e à porta cá fora, já nas despedidas e fotos, agradecimentos também à Cíntia, ao Ruben e ao Igor que mantiveram a nossa mesa em ordem com grande profissionalismo.

Para mais sobre o projecto pode e deve ir-se ao site www.arribaswine.com mas não posso terminar este post sem dar um outro link americano porque estão lá referências e um mapa eloquente https://thesourceimports.com/newsletter-december-2021/?fbclid=IwAR2xsQYPENKc-VDH14BJ-XuErIvJCpZ8RxxCglTxts64ztbvlzTCV3KGP3o que foram publicados este mês. Vale muito a pena lê-lo e interpretá-lo com detalhe, até porque foi escrito por quem nos está a ver de longe e não distingue as diferenças entre nós e que tantas vezes nos tolhem por estarmos próximos – e não deviam!

Escrever este post é um exercício de gratidão mas não só. A especialidade dos vinhos e do almoço já o mereceriam com justiça, mas há uma perspectiva mais importante, a meu ver, que tem a ver com todos nós. É que o realizar-se este evento significa que há esperança no desenvolvimento e na permanência de gente nova e empresas novas no interior. Cultivar vinhas nas Arribas do Douro, no Planalto Mirandês, em Montalegre, na Terra Quente ou seja onde for nestas bandas tão longe do mar, manter viva a agricultura com as Arribas Wine Company, com a Menina d’Uva, a Wine Indigenus, com todas as empresas de nome individual ou colectivo que têm surgido nas nossas aldeias, vilas e cidades de interior, é muito mais do que um negócio de vinho: é a sustentabilidade económica da região a afirmar-se, base fundamental para que a cultural, social e ambiental se possam afirmar e manter também. O próprio facto de ter decorrido em Bragança e não em Lisboa ou no Porto também é importante. Por tudo isso, na tarde de ontem, quando me dirigi à minha usada carrinha estacionada ao pé da igreja de Santa Maria no castelo, ao olhar para a torre de menagem (soberba e magnífica como nenhuma outra em Portugal!) pensei por momentos na transcendente importância dos copos que acabáramos de beber. Que também por ali já se bebiam no tempo dos Bragançãos, truculentos, feros e indómitos, teimosos em manter-se na sua terra! Ao arrancar e depois fazer a A4 (também lindíssima como nenhuma outra em Portugal!) senti-me sortudo e esperançoso. Frederico e Ricardo, Muito obrigado!!!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A Alma dos Vinhos de LISBOA The Soul of Wines

Há tempos, em Setembro, comemorando o aniversário da Mãe da Mariana, com missa e cocktail, no Rodízio, o meu cunhado João Ary e eu estivemos a conversar por largos minutos sob uma ramada perfumada de uvas tintas, castelão algumas, talvez moscatel pelo meio de toda a folhagem, anoitecia com luz atlântica. No dia seguinte, a Mariana e eu deixámos o sítio partindo para o nosso destino de Trás-os-Montes mas sem rota prévia, confiados no nosso instinto de aventura e sabor das estradas (sim, as estradas têm sabores, cheiros e cores, despertam aventuras e vontades). Parámos em Mafra, parámos aqui e ali, parámos em frente ao mar na Praia do Ouro a comer croquetes e bifanas e a beber um copo. Depois fomos para o interior, a  caminho das nossas serras, olhos com vontade de voltar um dia ao Oeste de Portugal, por onde o Favónio sopra abundâncias e pólenes, enchendo as velas dos moinhos e rodando as pás das eólicas, ondulando o mar até muito para cá da orla, fazendo-o galgar o Montejunto e Sintra para lá do Tejo. Esse Setembro passou, já foi há três meses. Só que o mês de Setembro é um mês de sortilégio, vindimas e âncoras, não tivesse sido ele o sétimo do ano clássico, remetido para a nona posição (9, número a reter a quem ler o livro a que nos vamos referir) por decisão de imperadores, estando na letra de canções, sous la pluie ou a outra de Bécaud, inesquecível e intemporal… e, por isso, reapareceu como um boomerang saído da bagageira dum carro, há meia dúzia de dias, entregue que me foi pelo Francisco Toscano Rico: quase três quilos de ciência, história, arte, flavour, terroir e beleza, tudo em forma de livro, comestível e muito bebível, trezentas e trinta e cinco páginas em pés de areia, barro, calcário, aluviões e húmus, escritas – que digo eu?! – cantadas em coro de vários naipes mas em que só por si cada cantor, solista afinado, tem a maestria de o fazer a capela porque todos eles afinaram pelo tom fantástico dado pela A Alma dos Vinhos de Lisboa. [1]



Para se ler apropriadamente, tem de se abrir de início uma garrafa de vinho leve, pelo menos de Colares nas partes mais eruditas, apurando num copo o sentido das frases, em mais outro a qualidade das fotografias e ilustrações, noutro ainda – podemos já ir num Bucelas – para a surpresa do que se aprende, conduzidos pelo António Ventura, reconduzidos pelo Vasco d’Avillez no emocionante se non è vero, è ben trovato, a justificar um Premium duma das quintas ou herdades de Arruda, de Alenquer, de Ourém... Já com esse lastro e antes de irmos às aguardentes da Lourinhã, há que espairecer um pouco pelas praias, pelas salas de museus e pontos de interesse, dançar em arraiais e subir e descer as ruas de Lisboa, inspirar ar e luz e deixar actuar a absorção dos doces e receitas – uma completa folie! – para nos capacitar a não deixarmos nenhuma página por ver, digo, nenhuma DO por provar! Sim, que se é já uma verdade indesmentível, a de que em Portugal pode haver todo o Mundo em vinhos, na região de Lisboa, na alma dos vinhos da Região de Lisboa, há quase toda a História do vinho de Portugal! Não sou eu quem o diz, são as testemunhas convocadas, além dos que já mencionei: José Bento dos Santos, Patrícia Serrado, João Valente, João Pedro Rato, Ricardo Bravo, Ricardo Junqueira, André Teodoro, Andrea Ebert, Sara Quaresma Capitão, Florbela Baptista, António Alexandre, João Rodrigues, João Simões, José Avillez, Miguel Laffan, Paulo Morais, Pedro Mendes, Sancho Esteves, Tiago Velez.

O livro é um monumento esteticamente bem conseguido e testemunho justo da região: setenta produtores de vinho dão pretexto e vontade para umas centenas de copos ao longo do tempo que se quiser e pelo espaço que se preferir. E podemos revisitar todos, não nos ficarmos por uma primeira vez, já que o tema pode ser glosado em rimas várias e interpretado em tocata e fuga, sinfonicamente ou em música ligeira! Para se ser fiel à matéria e argumentar devidamente, teríamos de escrever um livro a propósito deste livro. Mais vale gastar o tempo a sorvê-lo! Seria tão bom que um dia a Família e Amigos pudessem experimentar dos vinhos de Lisboa em série e em festa, explicados e bebidos… pelo que seria interessante que a minha Prima Beni, na Picanceira, se lembrasse de organizar uma tremenda prova dançante, memorável mas que, ao mesmo tempo, nos fizesse esquecer, pelo menos por um instante, estes tempos complicados que vivemos! Não é por acaso que tal lembrança ocorre: é que o subtítulo deste tomo de enoturismo da Região de Lisboa exprime elegantemente que Entre o mar e as serras há um território vinhateiro a descobrir, a provar e a ficar.

Meu caro Francisco Toscano Rico, bem haja por nos recordar, quase nas festas de Dezembro e de Ano Novo, que a surpresa, a boa surpresa, pode sempre estar onde menos a suspeitamos! Parabéns!                        



[1] A Alma dos Vinhos de Lisboa The Soul of Wines, gestor de projecto André Teodoro e coordenação de Patrícia Serrado, textos de Francisco Toscano Rico, António Ventura, João Valente, João Bento dos Santos, Patrícia Serrado e Vasco d’Avillez, edição da CVR Lisboa, Julho 2021, ISBN 978-989-33-2080-8.