terça-feira, 23 de novembro de 2021

AZEITE 3. Visitas aos lagares

Passar nos lagares, nessas noites frias ou de invernada que encharcavam de alpechim o empedrado e faziam poças com tonalidades à luz ténue da lâmpada da gordurosa e manchada porta de entrada, era bem mais do que um ritual de cumprimentos: dentro, estava-se num conforto húmido e quente, cheiro agradável a azeitona, azeite e lume. Logo à direita, a caldeira em que ardia baga continuamente e se aquecia a água que circulava pelas batedeiras e demais elementos, o barulho e o movimento encadeado de todos em grande azáfama, em contraste com a noite de fora, eram um pulsar de vida na estação mais fria do ano e às horas mais mortas da noite. Esses lagares, ainda de prensas, eram uma evolução tecnológica que já vinha do século XIX, accionados, primeiro, a vapor, depois, a diesel, finalmente, a electricidade, com um motor que gerava uma força rotativa comunicada a um veio de transmissão por uma correia e que deste, por mais outras, fazia funcionar todos os mecanismos que lavavam a azeitona, a moíam, batiam a massa e a espalhavam nos capachos, moviam os êmbolos da prensa de Pascal, bombavam os óleos e águas para o decantador e as centrífugas de onde, finalmente, escorria azeite para o depósito da balança. Nalguns, um dínamo, que também tomava a força duma correia a que se aplicava um giz para que o atrito se mantivesse, gerava electricidade que produzia a luz em grandes lâmpadas de incandescência, acesas sob reflectores de esmalte. Que os homens precisavam delas: para iluminar as pazadas de azeitona tiradas das tulhas e despejadas no tanque de as lavar, no sem-fim ou directamente na tina das galgas; para vigiar as massas e as espalhar nos capachos, sobrepor estes, levá-los de carrinho para as prensas onde ficavam a ser espremidos e a escorrer água e azeite. Quando chegava ao fim o aperto da pilha de capachos, e deles já não saía gota, o grande êmbolo descia, o carrinho era levado para ao pé duma porta e, um a um, como se fosse um separador de bolachas, um rapaz pegava, sacudia, com uma espátula soltava a baga para que o capacho voltasse a ir para mais uma pilha a que se punha a massa já batida. Era um movimento contínuo que durava todo o tempo, ininterrupto, apenas quebrado por uma avaria, por vezes mínima mas que fazia parar todo o lagar, suscitando urgência e, por isso, numa parede, em tábuas desenhadas com os seus perfis, as ferramentas de manutenções e consertos estavam bem visíveis como se fossem armas preparadas para acorrer a uma guerra. À esquerda da entrada, num compartimento com uma janela quadriculada de vidros manchados, uma escrivaninha de pé tinha um livro, blocos de guias e papéis, calendário na parede, untuoso e com rabiscos e notas, de cuja porta aberta se avistava, permanentemente, a balança do azeite. Ao lado desta, numa ardósia, riscos e traços deixavam contar ao longe a cadência dos quilos dourados e verdes passados ao longo da jornada. Durante o dia era frequente cirandarem por ali também os donos das azeitonas para azeite à maquia, tendo-as pesado na balança da entrada, ajudado a descarregar as sacas nas tulhas, deitando o olho como se fossem capazes, por misteriosa sagacidade, de impedir as flutuações de rendimento que todo o percurso entre as duas balanças, a das azeitonas e a do azeite, poderia permitir ao lagareiro menos escrupuloso ganhar mais do que a percentagem apalavrada. Que ganhava. Ou por uma fuga que ia parar aos infernos e cujos olhos de azeite seriam depois recolhidos, ou por uma partida de massa que ficara travada no meio da distração de reparar um desarranjo duma correia partida, ou pela água que correra quente demais e no decantador se tinham trocado no abrir das torneiras ou, grosseiramente, por uma saca de azeitona que ficara perdida no meio do monte de serapilheiras. Mas tudo de boa-fé. Porque ali no canto, à direita da porta de entrada, junto à caldeira onde ardia baga continuamente, torrava-se o pão para experimentar o azeite novo cujas qualidades se não poupavam a ser repetidas ao dono das azeitonas, comia-se em lascas ou assava-se o bacalhau, cozia-se o polvo, as batatas, a couve, regados duma almotolia de lata e decorados com muito alho, em pratos de esmalte, canecas de asa com vinho também novo, copos baços com aguardente que, naquela atmosfera, parecia nem ter álcool.

Muitos destes lagares têm-se modernizado, outros fecharam, a maioria evoluiu para lagares de ciclo contínuo. Quase todos eles com uma falha enorme: não têm um local, adequado aos tempos de hoje, cumprindo haccp e demais normas exigíveis, para que os visitantes possam disfrutar de provas de azeite como quem vai a uma adega disfrutar provas de mosto, possam adquirir conhecimento, possam apreciar e dar o devido valor a uma das mais antigas e tradicionais agro-indústrias de Portugal. Um local em que se possa, numa deslocação de fim de semana ou numa visita de trabalho, trincar uma inesquecível torrada com azeite novo!  

Sem dúvida alguma que uma das melhores torradas que comi na vida já há umas boas três décadas ou mais – que saudades e vontade de a repetir, mesmo que também repetisse ficar com uma das botas encharcadas por não termos visto bem a valeta, ao entrarmos! – foi uma de centeio, com azeite cru e alho, com uma lasca desfiada de bacalhau seco, com vinho do da Mina tirado dum garrafão, rescendente e escorregadio, num anoitecer frio e de vento agreste que batia muito naquele lagar de Castelãos, nesse ano trazido por conta do nosso amigo António Vila Franca!

 

domingo, 7 de novembro de 2021

AZEITE 2. O preço das azeitonas

Em Elvas, em Abrantes, em Torres Novas, em Montemor ou em Évora e noutras cidades e vilas do Sul, havia em cada uma um ponto fulcral de discussão e acerto. Em Trás-os-Montes, há meio século, era no círculo do Mira, do Paulino, da Caixa Geral de Depósitos e das esquinas do pequeno largo da Pensão Praia, em Mirandela, com um vai-e-vem de atravessar a rua no meio do trânsito (passavam ali mais de metade dos veículos do Distrito!), que entre lavradores, negociantes, informadores do Cachão, candongueiros, chapéus, apertos de mão e samarras, ao frio, vozes e olhares, sob sombreiros abertos se a chuva insistia, se fazia, nas últimas feiras do ano, definitivamente na de 23 de Dezembro, o preço da azeitona da Terra Quente. Os vidros embaciavam e o fumo do tabaco, misturado com o vapor das máquinas de café, davam uma atmosfera de lagar ao Mira e ao Paulino, a que as botas acrescentavam o cheiro. À mesa ou em pé, ao longo da manhã, fechavam-se negócios, com argumentos da funda que constava que já tinham dado os bagos dos olivais de S. Pedro ou dos do Cabral de Guribanes, que em Abreiro isto ou na Torre aquilo, ou com mitos de compradores fantasma. Havia alguns pequenos lagares que já moíam desde a Santa Catarina e as filas para descarregar nas Cooperativas e no Cachão já se iam formando no seu ritual anual (que com estas o preço era outro, o rendimento só no fim da safra se determinava por médias e os escudos e tostões só eram fixos quando o azeite saía, às vezes mêses após, podendo os lavradores por conta ir levantando produtos para grangeio ou alguma importância para despesas prementes).

Com os lagareiros, o dinheiro começava logo a girar. Em Macedo havia dois, três e quatro preços diferentes, conforme: o Cóque adiantava, às vezes ainda antes do Natal, simpático, em preços fixos por baixo, em notas, conversadas no Café Central, sobre olivais de que sabia os rendimentos de memória de campanhas passadas; o Artur Moreno era mais circunspecto e, até, quase secreto nos complexos negócios de acertos de contas para os quais a azeitona era apenas o lastro ou a garantia; os de Castelãos, de Chacim, dos Olmos, de Lagoa, de Vinhas, de Peredo, do Lombo, de Morais, de Talhas, dos Cortiços, tantos outros, valiam-se da premência dalguns proprietários em traduzir em metálico a sua melhor azeitona, levando a outra para as tulhas das Cooperativas ou do Cachão. E notava-se que o dinheiro já corria em sentido inverso ao do azeite quando a afluência e o tom ficava mais animado nas vozes no Germano, no Flórida ou no Tótó, no Campos de Vila Flor, no Saldanha de Peredo ou no Montemel em Macedo. Coisa algo diferente mas também parecida era o que se passava em Alfândega, em Moncorvo, em Freixo, em Mogadouro, onde os primeiros valores eram sempre díspares por causa dos negócios em grande de casas maiores mas, depois, ao terminar o ano, vinha o diapasão da feira de ano, fazendo eco no Montanha ou no Central de Moncorvo: em Mirandela corre a tanto! E, a partir daí, o valor da safra deixava a discussão dos lavradores e passava mais para a dos azeiteiros e negociantes de grosso trato. 

Passava para estes, com o lado divertido ou por vezes dramático que criava histórias e lendas de negócios, tão abundantemente bem sucedidos, que a euforia os levava a escoarem-se nos casinos de Espinho ou da Póvoa ou com pasodobles e tangos, dançados com espanholas em Verín, em Vigo… que não começavam ao acaso: havia anzóis com engodo para fisgar estes peixes mais graúdos quando em trânsito na ronceira Nacional 15, a caminho de Rio Tinto, colocados expressamente em restaurantes já para lá do Marão, em Amarante ou na Lixa, lábios pintados e olhar fulminante, amostras em que só um truta muito seguro de si não deixaria de trincar. E ainda os negócios mais discretos e rendosos dos carregamentos de bidons de 200 litros, às dezenas e centenas, que atravessavam a fronteira miraculosamente invisíveis, em camions que, jurados não ter saído de casa em Macedo nem de nenhum armazém de Mirandela ou de Rebordelo ou das Lamas, tinham feito meia dúzia de horas de quilómetros cobertos de oleados verdes, com as cargas saldadas em Benavente. O câmbio da peseta era estável e, por isso, a repercussão do preço da feira de Mirandela era verdadeiramente internacional. Não por acaso o velho Granjo, meu amigo, em Macedo, e outros em Mirandela, tinham sempre notas do Banco de España disponíveis para as passar, gordos maços nos bolsos de que as contavam, uma a uma, e no-las davam para a mão a troco de escudos, quando as precisávamos para ir a Zamora às tábuas ou aos caramelos. 

Estivesse a chover ou tivesse caído a mais severa geada, houvesse temporal ou fosse uma manhã de sol de Inverno, a feira de ano dos 23 de Dezembro em Mirandela era infalível para os lavradores, fossem eles de Vale de Asnes ou de Vale Benfeito, de Valbom ou da Bouça, de Grijó ou das Múrias, de Suçães ou de Alvites, de Abambres ou Lamalonga, de Ala ou Vila Flor, de todo o lado: a convergência unânime na vila do Tua, nesse dia, traduzia o tangível valor das azeitonas no seu preço em dinheiro,  escasso.