segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a nossa família do Douro - 1

© Manuel Cardoso

Fevereiro 2022

 

 


Queridos Mariana e filhotes, manos, sobrinhos e primos, ao escrever sobre este nosso antepassado, Joaquim Manuel de Barros Cardoso (Cotas, 14.12.1791-30.10.1848), faço-o com especiais motivos. Desde pequeno que me tinha habituado a olhar o quadro a óleo do seu retrato, pendurado com alguma ostentação mas também naturalidade na nossa sala de visitas da casa de Macedo, como alguém antigo – “é o seu trisavô, de Cotas, que casou com uma francesa” – que mereceria respeito e que teria tido uma vida interessante – “combateu nas lutas liberais” – mas do qual pouco ou nada eu sabia porque, facto que já mais vezes assinalei, o meu Pai morreu inesperadamente e antes de eu entrar na fase de me poderem ser confidenciadas as histórias de família com mais profundidade. Também soube, pela minha Mãe, que ele e um seu trisavô militar, o General Jacques Filipe Nogueira Mimoso, dos nossos antepassados algarvios, teriam estado em certa fase em campos contrários. Mas tudo vago, sem cronologia nem geografia, sem certezas, perdido na noite dos tempos. Ainda por cima, quando eu fazia alguma pergunta mais concreta, levava com a resposta repetidíssima “e tu para que queres saber isso?” que tanto podia esconder ignorância como o ocultar inconveniências tidas como tal à luz dos preconceitos familiares. O tempo veio a fazer-me ciente de que eram ambas. Nessa altura, ainda pela mão do Pai, eu tinha ido ao arquivo do Registo Civil consultar livros antigos sobre os antepassados de Macedo e pudera ler o assento de nascimento do trisavô Morgado de Macedo, o Bernardino José d’Oliveira, casado com a Josefa Rosa Pereira de Miranda. Aí despertou o meu interesse pela genealogia – que não mais desapareceu toda a vida! – e pela colecção de factos e anedotas familiares. Foi relativamente fácil desenhar um esquema sumário e primitivo com os Costa Borges Oliveira, os Sousa, os Falcões, os Pereiras. Contudo, saber coisas sobre “os de Cotas”, os Cardoso – que era o que mais me suscitava curiosidade! – era algo quase impossível de conseguir, tanto mais que nesse tempo nem havia as comunicações que há hoje, nem a facilidade de obter coisas com cliques, nem a possibilidade de ir ao Douro conhecer os locais de onde tinham vindo o Avô Amadeu e a Tia Eugénia, duas personalidades algo escandalosas para a família e demais parentela de Macedo (dele me ocupei n’ Um Tiro na Bruma, tentando ser-lhe fiel, e da Tia Eugénia basta dizer por agora que nessa viragem do século XIX para o XX, tinha estudado Farmácia na Academia Politécnica do Porto, o que fazia a uma rapariga ser olhada com desconfiança pela sociedade, e tinha sido a primeira diplomada, por ter estudos tinha vindo dar aulas de instrução primária para Vale da Porca e mais tarde casara com um homem uma dúzia de anos mais velho, o Tio José Caetano Ferreira Pinto dos Reis, abrindo a farmácia em Macedo e à porta da qual se sentava a apanhar sol e a fumar o seu cigarro – está-se a ver, anos 10, a reprovação da mentalidade arcaica e atávica daqui do pequeno burgo!). Ambos, Amadeu e Eugénia, eram filhos dum Padre, o bisavô José Étienne de Barros Cardoso (Cotas, 30.10.1846, Porto, 6.06.1905), filho mais novo do Joaquim Manuel. Mexer, por isso, nessas poeirentas memórias de família que tão quietas estavam em étagères escondidos seria o mesmo que levantar nuvens de pimenta que fariam espirrar e chorar. Havia muitas coisas, no entanto, que na casa de Macedo remetiam para o Joaquim Manuel: desde logo os quadros a óleo, pintados em Paris em 1834, o dele e o de sua filha Aspazie Clorinde (Toulouse, 12.07.1830, Cotas, 8.09.1886, solteira, sg), retratada com um colar que ainda me lembro de a Pilar usar, embora sem o crucifixo[1]; um mapa de parede do Douro, dos do Barão de Forrester; um relógio império em mármore e bronze que trabalhava dentro duma redoma de vidro e dava as horas com “plim”; uns quadros românticos com gravuras coloridas e molduras boas, douradas, sobre o amor, o desejo e o prazer, de há duzentos anos; bacias e jarros de faiança e porcelanas de Sèvres, umas peças de Limoges, serviços de chá já desirmanados; um florete de aparato com punho de prata com que às vezes brinquei no quintal como se fosse um dos três mosqueteiros; um óculo inglês que era óptimo para ver ao longe; fotografias, algumas com anotações no verso, felizmente, por exemplo uma do Victor Napoleão Cardoso (n. Cotas, 1.12.1855), mandada do rio Grande do Sul, para onde emigrara em 1869 e de quem descendem muitos primos Cardoso brasileiros e uruguaios; ignoro que mais bugigangas, mais seriam com certeza, e, ainda, livros: as “Lettres de Voltaire”, gramáticas e dicionários… Hoje penso que o Joaquim Manuel deve ter deixado um grande espólio escrito pelo seu punho e uma biblioteca razoável cujo destino não sei. A Macedo não chegou a não ser meia dúzia de volumes. Manuscritos, nada. E para tal deve ter concorrido, como se verá a seu tempo, o facto de, quando morreu, apenas com 56 anos, em Cotas, o seu filho José Étienne ter só 2 anos (o seu pai morreu neste seu aniversário) e, portanto, os seus bens mais pessoais deverão ter levado caminho para o filho mais velho, Joaquim Francisco Adolfo de Barros Cardoso (Escrivão da Comarca de Vila Real, n. Toulouse, 24.08.1832, Cotas, 4.01.1910), já com 16 anos, que mais tarde usou o nome de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão (vindo a deixar cair o Falcão, como explicaremos), e que, tendo este tido filhos de pelo menos quatro mulheres mas não tendo casado com nenhuma, facilmente tal terá contribuído para que algumas coisas pessoais tenham levado descaminho. E facilmente daqui se compreende também que a existência de todos esses primos, os “de Cotas”, como em Macedo se dizia, apesar de Joaquim Manuel de Barros Cardoso Falcão ter vivido uma boa parte da sua vida em Vilarinho de São Romão, que hoje por esse mundo fora serão Sousa Botelho, Campos da Costa, Cardoso, Cardoso Calçada, Cardoso Medeiros, Cardoso Reis… , terão feito com que uma cortina de silêncio e de distanciamento os tenha ocultado do meu raio de conhecimento e investigação durante quase toda a vida! De facto, só recentemente, há uma década, consultando os inventários por morte desses Joaquim Manuel, pai e filho, no Arquivo Distrital de Vila Real, me pude dar conta da extensão do problema que teria levado a que a querida Avó Micas, tarde demais, tenha visto com tanto desgosto o seu casamento com o Avô Amadeu. Não terá sido só o ser filho de Padre, que o soube antes do dia de darem o nó, nem a sua vida aventurosa mas o facto, que não é de somenos, de haver uma necessidade permanente de cortar amarras ou nem as atirar, a uma boa parte dessa sua família do Douro. Que pena tenho de os não conhecer a todos pessoalmente, aos descendentes que nossos primos são! O relacionamento dos de Macedo manteve-se com alguns dos mais próximos, descendentes da Tia Eugénia, com um hiato depois da morte do meu Pai, e a quem pude visitar com os Pais da Mariana, meus futuros sogros, no Verão de 1984, quando, a partir da Pousada Barão de Forrester em Alijó, um dos locais onde ficáramos num raid de investigação genealógica que nos levara a vários pontos do País, fizemos uma incursão a Cotas. Nessa tarde conheci a prima Maria Natália e o marido, António Campos da Costa, que descobrimos ser primo também, ele dos descendentes de Vilarinho de São Romão. Mostraram-nos a casa , “a casa das francesas”, conversámos, indicaram-nos um quadro a óleo, da mesma série dos nossos de Macedo, moldura igual, com o retrato do Joaquim Francisco Adolfo em menino. Na igreja explicaram-nos o sítio onde estão enterrados o Joaquim Manuel e a sua mulher, Adélaïde Malenfant, no adro, do lado esquerdo de quem entra pela porta lateral. Numa consulta aos livros de assentos, que mais tarde o meu sogro e eu fizemos na sacristia, pudemos tomar apontamentos essenciais para o que se veio a descobrir e encontrámos, guardada no meio de papelada, uma caixinha ricamente pintada com as armas dos Barros na tampa e um escudo com as cinco chagas no interior. O Pai da Mariana, tendo nós sido mutuamente compagnons de route de investigação genealógica e heráldica, repetiu-me inúmeras vezes que “este seu ramo da família tem de estar ligado ao vinho do porto”, e tinha toda a razão. Vim a poder comprová-lo – e quanto! Com a sua morte, verificada muito cedo na Páscoa de 1993, as investigações ficaram interrompidas durante anos e só muito depois as retomei, numa época já de internet e recursos imensos comparados com o esforço que tivéramos de fazer nessa década de oitenta. A imagem que hoje é possível do trisavô Joaquim Manuel de Barros Cardoso é muito mais completa e nítida e deixa-nos estupefactos o quanto desconhecemos durante tanto tempo, o quanto nos terá sido ocultado pelas razões já expostas: nascido no século XVIII numa família com terras no Douro, produção de vinho de Feitoria e outros bens, sendo o mais novo de pelo menos quatro irmãos, criado, tal como estes, com educação e cultura, ficou órfão de pai aos 18 anos, estudou gramática, habilitou-se a Familiar do Santo Ofício, acompanhou a mãe (que deve ter sido uma senhora de fibra) nos negócios, foi feito Cavaleiro da Ordem de Cristo mas quando surgem os alinhamentos nas novas e velhas correntes políticas inscreve-se nas milícias com o liberalismo na cabeça, combate e é ferido em Coruche da Beira e acompanha a primeira tentativa liberal no Porto mas, doente, consegue embarcar e fugir a bordo do navio inglês Belfast com o então ainda Marquês de Palmela e restante comitiva, desembarcando em Plymouth e seguindo posteriormente para França, onde casa com uma rapariga dezassete anos mais nova do que ele, Marie Adélaïde Malenfant (Rambuillet, 23.02.1808, Cotas, 18.12.1882), tem os primeiros dois filhos em França, residindo em Saint-Étienne de Toulouse, chegando-lhe a notícia do assassinato de sua mãe pelos Miguelistas e do incêndio da sua casa e armazéns no Douro, dirigindo daí uma carta à Rainha D. Maria II a pedir meios de forma pungente porque o seu cabedal se tinha ido “na quebra do Van-Zeller” e nas despesas da sua emigração, regressando depois a Cotas onde reconstrói tudo o que pôde, refaz a sua produção de vinhos, se relaciona com o Barão de Forrester, escreve cartas, artigos e pelo menos um opúsculo e é eleito Presidente da Câmara de Favaios, cargo que desempenha até à sua morte precoce, tendo tido entretanto mais quatro filhos de sua mulher, já cá em Portugal. Numerosas publicações sobre vinhos e sobre o Barão de Forrester se lhe referem. Continuo a juntar materiais sobre este notável antepassado e creio bem que a Torre do Tombo ainda guarda alguns dados importantes que ainda não descobri. Mas, chegados aqui, acho que já é interessante dar a conhecer esta aventura no nosso passado familiar. Por isso, queridos filhos, sobrinhos e primos, estão a ver que especiais motivos há para escrever sobre Joaquim Manuel de Barros Cardoso e a sua família ascendente e descendente. Não por prosápia vã ou glória alheia ou snobismo, porque, como uma vez disse Paulo Portas e repetiu aquando da apresentação d’ Um Tiro na Bruma em Lisboa, o nascimento não se escolhe e na vida o que conta é o que se escolhe, mas para sentimento de satisfação íntima de que é de vidas reais como estas que são escritas as sagas familiares de grandes romances e filmes. A nossa dava para isso, aliás, é um exemplo disso. E lhe pertencemos. Conseguiram ler de um fôlego esta introdução num parágrafo propositadamente único? Então apertem os cintos porque a viagem, e que viagem, ainda só começou! Até breve!               

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[1] Estes dois quadros a óleo estavam em estado algo decrépito na tela e o Pai da Mariana ofereceu-nos como presente de casamento uma cópia de cada um para nós, executada pelo José Bénard Guedes e que desde então mantemos na nossa sala de estar, na que o foi em Macedo e na de Latães, já neste século. Os originais regressaram a Macedo onde estão, reentelados e restaurados respeitando o craquelé. A imagem acima é do original.