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terça-feira, 18 de novembro de 2008

Uma ida para os Açores



Excerto de uma carta escrita pelo Tio Abel a contar a sua ida para Vila Franca do Campo. É natural que a grafia de alguns termos vá sendo alterada neste post ao longo dos próximos dias, conforme lhe fizer a revisão. Vou fazer com que fique tal e qual ele a escreveu.

DE LISBOA A S.MIGUEL

- No mar –

A hora de embarque estava marcada para as 10 horas da manhã. O “Açor” estava atracado à muralha do cais, em frente à Rocha do Conde de Óbidos, um pouco abaixo de Santos. Às 10 menos um quarto cheguei a bordo; estavam já quasi todos os passageiros; procedia-se ao embarque de bagagens. Soube-se que a hora de partida fora mudada para o meio dia por causa das malas do correio. Encontrei a bordo o delegado que ia para as Flores e um advogado de Ponta Delgada. Entabolamos conversa, como se fôssemos conhecidos velhos e passeámos no cais para nos despedirmos da terra que com muito custo íamos brevemente deixar.
O meu colega das Flores, formado 6 anos antes, de 30 anos de idade, dizia, mas parecendo ter mais 3 ou 4, estava inconsolável, porque deixava em Verride, próximo a Coimbra, mulher e dois filhitos. Conversando, foi-me dizendo que levava tantos com quantos pares de meias, etc. 5 ou 6 fatos, não sei quantos chapeus, etc.etc. e até quanto dinheiro (que só levava 200:000 £); insistia muito em que não receava as dificuldades no exercício do cargo, porque tinha advogado seis anos, tinha servido de delegado, que apesar disso tudo e do bom concurso que fez apanhou dois EE, isto é, passou pela tangente. Esta insistência na sua prática, etc., mais me fazia desconfiar da sua ciência. Enfim deu-me uma maçada bem razoável com minúcias e coisas que nada me interessavam e deixou-me de si uma fraca ideia relativamente a fósforo. Depois durante a viagem serviu-nos um pouco de bobo, saindo-se às vezes com uns ditos a tempo. As senhoras também se riam. Uma disse-me – este seu colega é duma ingenuidade... – Próximo ao meio-dia chegou o alferes Rosa e senhora (Rica, d’aí). Pouco depois dava-se o 1º sinal; os que tinham vindo despedir-se retiravam para o cais, enxugando os olhos; e não eram só eles; os que ficavam a bordo faziam o mesmo, até os que não tinham ninguém a despedir-se...
Enfim largou, era meio dia em ponto. De terra acenavam com lenços e chapéus, de bordo todos correspondiam. Aí vamos Tejo abaixo. O dia nublado não nos deixou disfrutar bem aquele belo panorama que se desenrola à vista de quem desce o rio até S.Julião da Barra. D’ali a pouco, Lisboa ficava envolta em vapores aquosos que mal deixavam desenhar os contornos e ver muito confusamente a casaria. Triste despedida! Esta vista de Lisboa deve ter muitos mais encantos quando, entrando a barra, se subir o Tejo. Oxalá eu o experimente brevemente. – A carga do navio era enorme; os passageiros cento e tantos. Em terceira, e creio que em 2ª vinham à cunha. Em 1ª éramos vinte e tal. Todos estavam no convés. O tal delegado das Flores, o advogado, já velhote, que vinha de Lourdes, onde, dizia, tinha deixado de ser neurasténico; alferes Rosa com uma criança e mulher; outro e filha de 11 ou 12 anos; um major, um fagulha que não estava quieto e metia o nariz em toda a parte, e filho, estudante de preparatórios, outro tal como o pai; um estudante de medicina, mulher e filhito; um negociante de Ponta Delgada; outro ilhéu; o meu companheiro de camarote, rapaz de 18 anos, pouco mais ou menos, que fazia muito bem o papel de mudo; uma velhota, toda amável, e uma neta dos seus 18 a 20, nada desagradável, que viveu em ponta Delgada e têm casa e muitas propriedades aqui, em Vila franca; e não sei se mais alguém. – Passámos a Barra à 1 hora e 10 minutos; nesta altura desapareceram alguns, isto é, foram recolhendo ao beliche. O mar fora estava um pouco picado; começava o balanço. Às duas passávamos o Cabo da Roca; foi lançada a barquinha para medir o espaço que íamos percorrendo. Comecei a não me sentir bem. Às duas e meia, pior e dirigi-me para o camarote, seguindo o exemplo de outros; o tal meu companheiro já lá estava encafuado no beliche: mal ali cheguei lancei os restos do almoço que ainda tinha no estômago e deitei-me. D’ali a pedaço lá senti ir alguns, poucos, para a mesa. Eu continuei enjoado, com vómitos muito frequentes, sem nada no estômago, lançando apenas água, outras vezes nada. Assim passámos a noite eu e o meu companheiro, um em frente do outro a vomitar ao desafio. O vapor dava balanços enormes, quase que se tombava; as ondas varriam o convés; nós como que navegávamos por baixo de água. D’aquele ruído contínuo sobressaía, de vez em quando e depois mais frequente, um estrondo que algumas vezes se me semelhava a um trovão; era o hélice que muitas vezes trabalhava em vão. Passei uma noite horrível e, mais que uma vez, pensei em que por aquele preço não valia aceitar o despacho. No dia seguinte, Domingo, o tempo e o mar não estavam melhores, no entanto o meu estômago, já um tanto habituado aqueles movimentos, estava um pouco mais sossegado, e aí pelo meio-dia piude beber talvez decilitro e meio de água de um caldo de galinha, que conservei. Era o primeiro alimento que tomava desde o almoço às 9 do dia anterior, nem água tonha bebido. Às 4 da tarde deste dia (17) bebi outra água de caldo que pouco depois vomitei. Na segunda-feira (18), apesar de ter passado a noite de domingo mal, porque o balanço foi medonho, já tomei dois caldos e à noite chá, tendo-me levantado um pouco à tarde. Até este dia (18) ao meio dia atrazámo-nos um dia na viagem. Desde as 2 da tarde de sábado até às 12 de domingo andamos 170 milhas,; até ao meio-dia de segunda (2º dia) 136 milhas. (cada três milhas regulam por uma légua). Nesses dois dias o mar foi tão forte que algumas ondas passavam por cima do cano da chaminé do vapor, entrando água para dentro. Na segunda à tarde tornou-se muito melhor, mas não bom, e assim se conservou sempre até à ponta da ilha. Até ao mei-dia de terça (19) andamos 230 milhas. Era neste dia que devíamos chegar a S.Miguel se não fosse o atraso que sofremos. Levantei-me logo de manhã bem disposto, tendo passado uma noite razoável, e fui para cima; já se podia sair para o convés sem perigo de tomar banho. Apareceu muita gente essa manhã. O almoço foi a refeição mais concorrida de toda a viagem. Eu comi, não muito, mas com apetite e sentia-me bem, só as calças me andavam a cair; efeitos daquele jejum de três dias. Tudo foi para a sala do convés. A velhota apresentou-me à sua neta. Houve cavaqueira animada até ao jantar, sem deixarmos de ir sempre razoavelmente embanados, o que fez com que as senhoras se retirassem um pouco antes do jantar, a que só assistiu a velhota. Vimos um vapor não muito longe, que devia dirigir-se talvez para o Estreito de Gibraltar. Não se chegou à fala. Eu jantei bem, à noite tomei chá e só fui para o beliche depois das dez horas. Enfim, se não fosse o ver-me só e a ideia de que cada vez mais me afastava dos meus, tinha sido um dia bom e eu considerava-me apto a andar assim embalado muitos dias. Demais tinha a consolar-me que, indo passageiros que tinham feito muitas viagens, todos enjoaram; até uns marinheiros da armada que vinham na 3ª classe; dos próprios criados e empregados de bordo, poucos escaparam; e mesmo o capitão confessou que tinha tido o seu incomodozito de cabeça. – Alguns passageiros diziam ter sofrido grandes tempestades e temporais mais violentos e não enjoarem; mas desta vez encontramos a mar assim picado logo à saída da barra, quando o estômago não estava ainda habituado ao balanço, e conservou-se assim constantemente quase três dias. Que nós não tivemos o que se chama tempestade, nem estivemos em muito grave perigo; foi o vento que levantou assim o mar, e que soprava contrário ao nosso rumo. Neste dia 19 ao meio dia tínhamos, desde o Cabo da Roca, 536 milhas andadas, faltando-nos 214 até à ponta da ilha. Sabíamos por isso que na manhã seguinte teríamos terra à vista. Efectivamente na quarta-feira todos se levantaram cedo para ver a tão desejada terra, que lá estava em frente coroada de nuvens. Para o Sul víamos também a Ilha de Santa Maria, uns picozinhos que se desenhavam vagamente e muito distantes. S.Miguel fez-me lembrar um pouco a nossa Serra de Bornes, vista de longe. Apresentou-se-nos pela extremidade leste e por isso com pouca extensão, pois que o seu maior comprimento (18 léguas) é de leste a oeste, podendo apreciar-se pelos lados norte ou sul. – Mesmo á nossa frente estava uma povoaçãozita a meio da encosta com as casinhas muito brancas, que subindo pelo monte pareciam os degraus de uma escada. Tomamos pelo sul da ilha, eram 10 horas e meia, para nos dirigirmos para Ponta Delgada, que fica na cista sul a 25 milhas por mar, e aí a 12 léguas por terra, da Ponta de Nordeste, que primeiro se encontra, indo de Lisboa. No centro da ilha picos bastante elevados, depois vêm outros mais baixos, depois outros até à costa que em parte é muito alta. Assim é a copsta leste e a do sul até próximo a Vila Franca; apenas onde há ribeiras é acostável e aí em geral há uma povoação. A aparência geral é agradável; muita vegetação e as casas todas a branquejarem, nas mais pequenas aldeias.
Fomos passando em frente da costa sul. Além de outras povoações, lá estava o Faial da Terra, aldeia com a aparência de uma vilazita, e bonita, com a sua igreja com torre, muito bem situada num valezito ao pé duma ribeira. A vila de povoação, não tem tão boa aparência e dizem-me mesmo que é feia; fica situada numa poça muito apertada, cercada de montanhas que nela despejam as suas águas, com uma única saída para o mar; por isso está sujeita a perigosas inundações. Depois d’outras aldeias pertencentes à comarca de povoação, aparece-nos a Ponta Garça que parece um interminável carreirão de formigas brancas. È uma rua só, mas com uma boa légua de comprida; está situada num campo ao correr das montanhas, compreendido entre o sopé destas e a costa que é alta. Adiante abaixa mais e forma uma baía ao princípio da qual temos a Ribeira das Tainhas e Ribeira Seca, povoações que já pertencem à freguesia de S. Miguel de Vila Franca. Esta ocupa o resto da baía e apresenta do mar uma vista lindíssima, com a casaria branca, as igrejas, torres e outros edifícios maiores a sobressaírem; estufas dentro, em volta, por toda a parte, (são de lá os melhores ananazes da ilha). Aqui o campo até ao sopé dos montes é muito mais largo. A vila ocupa bastante extensão tanto em comprimento como em largura. Ao fim (poente) da vila a terra faz uma pequena ponta que termina a baía, e que parece ser continuada pelo ilhéu, que fica um pouco desviado da costa. Este ilhéu parece ter estado unido á ilha e que talvez os tremores de terra e erupções vulcânicas, que ela muito sofreu, o fizessem separar. Para além da ponta temos outra baía; mas esta, das suas três léguas, e vai tyerminar a Ponta Delgada. Antes, porém, fica Água de Pau, com a sua serra de muita e boa água que abastece a cidade; Vila de lagoa, povoação importante, cabeça de concelho, pertencente à comarca de Vila Franca, é tão grande como esta e tem uma boa fábrica de destilação de batata doce que aqui se cultiva em grande escala. Depois Rosto do Cão, etc., e por fim a cidade que é bastante grande e que do mar tem uma linda vista. Para lá da Serra d’Água de Pau a ilha é muito menos montanhosa, elevando-se mesmo o centro a muito menos altura. – Chegamos finalmente ao porto pouco depois da 1 hora deste dia 20, quarta-feira, demorando quase três horas desde a Ponta de Nordeste. O vapor apitou apitou, lançou ferro e deu um tiro de peça, como costuma fazer para anunciar a chegada. Começaram a enxamear os barcos e depois de feita a visita médica houve um extraordinário movimento a bordo: os que vinham esperar os seus parentes e amigos, entravam, abraçavam, beijavam, cercavam os recém-chegados que tinham a alegria no rosto; outros iam desembarcando e seguindo nos escaleres para terra. Que animação!... que alegria, que satisfação, especialmente nos que chegavam a suas casas, ao pé das suas famílias! Mas…, que tristeza!..., eu também chegava e… não tinha ali ninguém: nem família nem amigos; tudo estranhos! Pelo contrário, a chegada dava-me a certeza da grande distância que me separava dos que me eram caros. E em volta de mim tanta alegria!...





Abel Thomaz Aquino Oliveira e Sousa nasceu em 8 de Julho de 1876 em Vila Nova de Foz Côa e foi baptizado em Macedo de Cavaleiros em 31 de Julho, tendo por padrinhos o seu tio Abade de Macedo, Padre Thomaz Aquino de Miranda e sua avó, D.Josefa Rosa de Miranda. Era filho do Dr. José Felizardo Rodrigues de Sousa e de sua mulher Dona Cândida Augusta da Conceição Oliveira de Miranda, filha mais velha dos Morgados Oliveira, em Macedo de Cavaleiros. Morreu com tuberculose em 27 de Junho de 1904 em Macedo, solteiro e sem filhos. Estudou na Universidade de Coimbra. Estava-lhe reservada uma carreira pela magistratura, que encetou, e depois pela política, estando já acertado o seu ingresso numa futura lista de deputados quando a tuberculose o veio surpreender e vitimar aos vinte e sete anos. O desgosto que tal causou na família terá sido a causa próxima da morte de seu pai, o Juiz Sousa. A sua curta vida foi socialmente intensa e preenchida. Numerosos acontecimentos na Foz, no Porto, na Póvoa de Varzim, em Vila do Conde, em Espinho e na Figueira da Foz contaram com a sua presença animada, sendo sócio de vários Clubs e agremiações destas localidades onde aparecia com as irmãs e em que era figura conhecidíssima. Sabia música, como todos em casa, e tinha uma grande cultura geral, interessando-se sobretudo por poesia. A família sempre teve horror às doenças e, formada com as notícias das descobertas de Pasteur e de Koch, que chegavam a este recanto de Trás-os-Montes com a Lectures pour tous e o Ilustrated London News, olhou sempre com imenso receio para “as coisas do Abel”, encerradas numa arca defumadíssima com eucalipto antes de ser fechada com quilos de cânfora e naftalinas, temerosíssima de dela poderem sair micróbios e gérmenes de morte. Durante dezenas de anos ninguém lhe mexeu, objecto relegado para um sótão. Um dia foi aberta para umas partilhas mais utilitárias do que reverentes e que desprezaram “os papéis do Abel” como coisa de somenos valor, sem o brilho de uma encadernação ou o colorido das fitas de Coimbra. O conteúdo da arca ficou espalhado pela primalhada toda, sem nexo, destituído para sempre do seu sentido de unidade. E agora aparecem por aqui e por ali umas folhas soltas de correspondência e apontamentos. Estas, da famosa ida do tio Abel para os Açores, foram-me deixadas copiar pela Prima Maria Fernanda Falcão. Um muito obrigado. Espero que, difundidas agora pelo “hiperespaço”, tenham adquirido o condão de uma certa forma de eternidade e não se percam mais, para grande satisfação dos sobrinhos-netos, bisnetos e etc. que nelas encontrem motivo de interesse!