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domingo, 23 de janeiro de 2011

O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA

Quando foi apresentado em Lisboa, no dia 26 de Março de 2009, esteve ausente da sessão o apresentador! Mas enviou um texto que foi lido aos presentes. Esse texto é o post que hoje aqui colocamos, na íntegra. Do qual fiquei muito grato ao seu autor, o Professor Doutor Vítor Serrão.




LANÇAMENTO DE O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA,


ÚLTIMO ROMANCE DE MANUEL CARDOSO

Em jeitos de prolegómeno informal, apenas duas palavras introdutórias. A primeira é de justificação para uma ausência forçada, que é devida ao facto de ter tido de arguir, hoje mesmo, uma tese de Doutoramento na Universidade de Évora, alvo de um agendamento de última hora, com o subsequente serviço académico que me impede de estar de corpo presente neste lançamento; a segunda palavra, e porque estou (ao menos) de espírito presente, é de reconhecimento público, tanto à editora Sopa de Letras e ao seu responsável, o Dr. Henrique Mota, pela forte aposta editorial, como muito em especial ao autor do romance O SEGREDO DA FONTE QUEIMADA, o novo livro do muito estimado Dr. Manuel Cardoso.

Antes de mais, devo dizer que se trata de um livro fascinante, que cruza tempos e sugere interpenetrações histórico-culturais e afectivas, ao tomar como pretexto de narração a figura do famoso «Dr. Mirandela», médico na corte de D. João V, autor do Aquilégio Medicinal, livro de 1726 sobre as propriedades das águas de Portugal, de que um exemplar cheio de sortilégios reaparece dois séculos volvidos na biblioteca de um velho capitão, aristocrata depauperado, bibliófilo triste com estatuto de desmazelo, a morrer aos poucos entre o quarto arrendado no segundo andar do nº 93 da Rua do Diário de Notícias e as cervejarias do Bairro Alto e das Portas de Santo Antão. O que une ambos os personagens – o do século XVIII e o do século XX – é precisamente a ligação íntima ao tal livro sobre os segredos curativos e propedêuticos das águas de Portugal, «livro com classe», escrito pelo primeiro como se de um projecto de vida se tratasse, relido amorosamente pelo capitão perante auditórios de café onde explicava «os humores, o desopilar das obstruções ou o desinchar dos hidrópicos» a partir das propriedades das águas… Isto, na Lisboa do tempo de Almada Negreiros e em plena ditadura de Salazar – num sugestivo reencontro de tempos, de diálogos sem tempo.

É preciso lembrar que o verdadeiro herói deste livro é uma figura de carne e osso, uma personagem real. Real e, ainda por cima, ilustre. O Dr. Francisco da Fonseca Henriques, vulgarmente chamado «Dr. Mirandela», foi um ilustre médico, escritor e pedagogo da ‘entourage’ de D. João V, ligado a personalidades como o escritor Rafael Bluteau, o mecenas D. Rodrigo de Sá Almeida e Meneses, Marquês de Abrantes, o escultor Claude de Laprade e alguns outros nomes ilustres da sociedade lisboeta de antes do Terramoto. Para que conste – e melhor o situemos neste pré-circunlóquio –, ele nasceu em Mirandela em 1665 e morreu em Lisboa em 1731. Formado em Coimbra, foi médico privativo do Magnânimo, e autor de vários tratados científicos, de que o mais famoso é justamente o (citemos o título na sua integralidade) Aquilegio medicinal, em que se dá noticia das aguas de caldas, de fontes, rios, poços, lagoas, e cisternas do reino de Portugal e dos Algarves [...] dignos de particular memoria, lançado pela Officina da Musica em 1726. É este celebrado livro, várias vezes reeditado em Portugal e no Brasil, que constitui o leit-motiv da narrativa de Manuel Cardoso. É um tratado onde são descritas as qualidades (e impropriedades) das águas de todas as fontes de Portugal, desde os mais formosos chafarizes citadinos às modestas fontes de mergulho das aldeias. O Dr. Fonseca Henriques era filho de um abastado lavrador brigantino, morador em Carvalhais, e teve oportunidade de estudar na Universidade de Coimbra, onde se formou em 1688, numa época em que o Reino saía a custo da crise provocada pelas terríveis guerras do Portugal Restaurado contra as tropas de Castela. Muito jovem, foi médico em Chaves, abre consultório em Mirandela. O facto de ter um tio que era feitor dos Távoras, permite que cedo vá poder fixar-se na capital, onde conquista a clientela de mais alto estatuto social e ingressa na Academia das Ciências. Em 1706, ascende a médico privativo do novo rei D. João V, ganhando reputação, ainda que nem sempre livre de invejas, caso das rivalidades que manteve com outro famoso médico, o Dr. João Curvo Semedo. O tratado que dedicou às qualidades das águas, e que terá começado pela descrição das propriedades da Fonte de Golfeiras, na sua bem familiar aldeia junto à vila de Mirandela, conquista os públicos e será uma espécie de best-seller da época; nos séculos seguintes, é obra de referência, presente nas melhores bibliotecas e disputada pelos mercados.

O resumo diz assim: «Na biblioteca de um velho capitão solitário figura um livro raro escrito por um médico de D. João V. Que segredos encerrará esse Aquilegio Medicinal sobre as fontes e águas de Portugal? E que águas e fontes serão verdadeiramente aquelas a que se refere o seu autor? É o que nos propõe descobrir nesta aliciante viagem no tempo até ao Portugal do século XVIII».

Eu li este livro, O Segredo da Fonte Queimada (que é a segunda incursão do autor na área do romance, depois do interessante Um Tiro na Bruma) com um crescendo de prazer. Um muito grande prazer. E até devo confessar que tenho uma postura de reserva militante perante a «novelística de História», género em expansão de mercado nos dias de hoje e que permite muitas vezes (a maioria das vezes!) uma deriva contra-factual sem sentido, aliada a um elementar desconhecimento histórico, ou a extrapolações demagógicas. Só excepcionalmente surge, por exemplo, um livro integrado nesse «género» com a qualidade do Bomarzo, de Manuel Mujica Lainez (1962, recém-editado entre nós pela Sextante), onde de tal modo se recria o ambiente da Itália do século XVI que a obra mereceu ao exigente Jorge Luís Borges um rasgado elogio. Trata-se de tomar a História como o suporte artístico de uma literatura original, envolvente, criativa. Ora são estas valências que observo no romance de Manuel Cardoso: as «três histórias cruzadas» seguem o discurso cotejado de uma meta-narração em que Vicente, o herdeiro, o capitão Eduardo, tio daquele, e o médico-escritor da corte de D. João V, se irmanam para criar uma intriga veraz, poderosa e que, ademais, nos ilumina poderosamente sobre a Lisboa do século XVIII, essa Lisboa a dois andamentos que tão bem nos descreve: luxuosa e miserável ao mesmo tempo, pólo científico e de crendice supersticiosa ao mesmo tempo, urbe de palácios europeizados e de conventos de hábitos medievais ao mesmo tempo, centro de arte barroco-romana e de gostos anacrónicos ao mesmo tempo, capital de Império e urbe tradicionalista ao mesmo tempo, tempo de novos humanismos e de feroz esclavagismo e intolerância ao mesmo tempo… Ainda não há muito me deliciara ao ler o relato desta mesma Lisboa de antes do terramoto descrita com o rigor e a sensibilidade que permitem a extrapolação, na obra de José-Augusto França Lisboa – História Física e Moral (Livros Horizonte). A descrição que o Prof. França faz da Lisboa joanina, por exemplo no espaço de encosta entre a zona do Torel e a Calçada de Santana, incluindo a importantíssima igreja da Pena, igreja que era padroeira dos homens de artes e letras e ainda hoje nos oferece a beleza da sua talha dourada, da autoria de Claude de Laprade, e das pinturas de Jerónimo da Silva e André Gonçalves, faz jus ao ambiente criado no livro O Segredo da Fonte Queimada.

Creio que este livro de Manuel Cardoso se insere nesta mesma linha de reflexão criativa que legitima a contra-factualidade e o «probabilismo de evocação histórica»: basta ver-se a descrição muito credível da figura de D. Ana de Sá Sarmento, espécie de mecenas do Dr. Fonseca Henriques, entre a aldeia de Sesulfe, o cosmopolitismo de Lisboa e o sossego bucólico das terras quentes de Macedo. Dir-se-ia que as hipóteses que a liberdade criativa legitima ganham contornos de veracidade, lendo-se as páginas de Manuel Cardoso em que essa figura dessa amiga-protectora do Dr. Mirandela é parte envolvida. Tinha esboçado um «power-point» com imagens para acompanhar esta apresentação: o frontispício da primeira edição do Aquilegio, alguns retratos da sociedade quinto-joanina, uma possível efígie do Dr. Fonseca Henriques, imagens da igreja de Nossa Senhora da Pena e das artes na Lisboa barroca, etc, etc. Outros sortilégios impediram que tal complemento imagético pudesse ser apresentado. Outra vez será, quero crer, quando o livro chegar desejavelmente a uma 2ª edição.

Igreja de Nossa Senhora da Pena - Calçada de Santana
Resta dizer uma última palavra menos ‘técnica’ e mais pessoal. O Dr. Manuel Cardoso é um distinto médico veterinário estabelecido em Macedo de Cavaleiros, em cuja periferia reside. É, ademais, um empenhado militante na causa da defesa do Património cultural, fazendo parte da direcção da Associação de Defesa do Património ‘Terrras Quentes’, presidida pelo Dr Carlos Mendes. O facto de eu estar ligado, de há alguns anos a esta parte, ao inventário do Património artístico sacro dessa muito desconhecida região, permitiu-me conhecer bem Manuel Cardoso e apreciar as suas altas qualidades humanas, literárias e científicas. A sua probidade de escritor que se liberta de peias amadorísticas e vai afirmando um talento mais solto e amadurecido, levou-o a todo este trabalho de reconstituição de uma adequada «mentalidade de época» a fim de perscrutar os gostos, anseios, crenças e angústias dos lisboetas do primeiro terço do século de Setecentos; assim, o autor reenfocou essa sociedade, e fê-lo com acerto, a fim de enquadrar a intriga – de que não vou obviamente falar, para não privar os leitores do segredo. Apenas direi que existia, e existe ainda, uma certa fonte algures em terras fragosas de Sintra, entre brumas de mistério, que na edição de 1726 foi omitida por exigência régia…

Mas isso fica para o gosto prazenteiro desta vossa leitura.



Vítor Serrão

Historiador de Arte

Universidade de Lisboa

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Uma ida para os Açores



Excerto de uma carta escrita pelo Tio Abel a contar a sua ida para Vila Franca do Campo. É natural que a grafia de alguns termos vá sendo alterada neste post ao longo dos próximos dias, conforme lhe fizer a revisão. Vou fazer com que fique tal e qual ele a escreveu.

DE LISBOA A S.MIGUEL

- No mar –

A hora de embarque estava marcada para as 10 horas da manhã. O “Açor” estava atracado à muralha do cais, em frente à Rocha do Conde de Óbidos, um pouco abaixo de Santos. Às 10 menos um quarto cheguei a bordo; estavam já quasi todos os passageiros; procedia-se ao embarque de bagagens. Soube-se que a hora de partida fora mudada para o meio dia por causa das malas do correio. Encontrei a bordo o delegado que ia para as Flores e um advogado de Ponta Delgada. Entabolamos conversa, como se fôssemos conhecidos velhos e passeámos no cais para nos despedirmos da terra que com muito custo íamos brevemente deixar.
O meu colega das Flores, formado 6 anos antes, de 30 anos de idade, dizia, mas parecendo ter mais 3 ou 4, estava inconsolável, porque deixava em Verride, próximo a Coimbra, mulher e dois filhitos. Conversando, foi-me dizendo que levava tantos com quantos pares de meias, etc. 5 ou 6 fatos, não sei quantos chapeus, etc.etc. e até quanto dinheiro (que só levava 200:000 £); insistia muito em que não receava as dificuldades no exercício do cargo, porque tinha advogado seis anos, tinha servido de delegado, que apesar disso tudo e do bom concurso que fez apanhou dois EE, isto é, passou pela tangente. Esta insistência na sua prática, etc., mais me fazia desconfiar da sua ciência. Enfim deu-me uma maçada bem razoável com minúcias e coisas que nada me interessavam e deixou-me de si uma fraca ideia relativamente a fósforo. Depois durante a viagem serviu-nos um pouco de bobo, saindo-se às vezes com uns ditos a tempo. As senhoras também se riam. Uma disse-me – este seu colega é duma ingenuidade... – Próximo ao meio-dia chegou o alferes Rosa e senhora (Rica, d’aí). Pouco depois dava-se o 1º sinal; os que tinham vindo despedir-se retiravam para o cais, enxugando os olhos; e não eram só eles; os que ficavam a bordo faziam o mesmo, até os que não tinham ninguém a despedir-se...
Enfim largou, era meio dia em ponto. De terra acenavam com lenços e chapéus, de bordo todos correspondiam. Aí vamos Tejo abaixo. O dia nublado não nos deixou disfrutar bem aquele belo panorama que se desenrola à vista de quem desce o rio até S.Julião da Barra. D’ali a pouco, Lisboa ficava envolta em vapores aquosos que mal deixavam desenhar os contornos e ver muito confusamente a casaria. Triste despedida! Esta vista de Lisboa deve ter muitos mais encantos quando, entrando a barra, se subir o Tejo. Oxalá eu o experimente brevemente. – A carga do navio era enorme; os passageiros cento e tantos. Em terceira, e creio que em 2ª vinham à cunha. Em 1ª éramos vinte e tal. Todos estavam no convés. O tal delegado das Flores, o advogado, já velhote, que vinha de Lourdes, onde, dizia, tinha deixado de ser neurasténico; alferes Rosa com uma criança e mulher; outro e filha de 11 ou 12 anos; um major, um fagulha que não estava quieto e metia o nariz em toda a parte, e filho, estudante de preparatórios, outro tal como o pai; um estudante de medicina, mulher e filhito; um negociante de Ponta Delgada; outro ilhéu; o meu companheiro de camarote, rapaz de 18 anos, pouco mais ou menos, que fazia muito bem o papel de mudo; uma velhota, toda amável, e uma neta dos seus 18 a 20, nada desagradável, que viveu em ponta Delgada e têm casa e muitas propriedades aqui, em Vila franca; e não sei se mais alguém. – Passámos a Barra à 1 hora e 10 minutos; nesta altura desapareceram alguns, isto é, foram recolhendo ao beliche. O mar fora estava um pouco picado; começava o balanço. Às duas passávamos o Cabo da Roca; foi lançada a barquinha para medir o espaço que íamos percorrendo. Comecei a não me sentir bem. Às duas e meia, pior e dirigi-me para o camarote, seguindo o exemplo de outros; o tal meu companheiro já lá estava encafuado no beliche: mal ali cheguei lancei os restos do almoço que ainda tinha no estômago e deitei-me. D’ali a pedaço lá senti ir alguns, poucos, para a mesa. Eu continuei enjoado, com vómitos muito frequentes, sem nada no estômago, lançando apenas água, outras vezes nada. Assim passámos a noite eu e o meu companheiro, um em frente do outro a vomitar ao desafio. O vapor dava balanços enormes, quase que se tombava; as ondas varriam o convés; nós como que navegávamos por baixo de água. D’aquele ruído contínuo sobressaía, de vez em quando e depois mais frequente, um estrondo que algumas vezes se me semelhava a um trovão; era o hélice que muitas vezes trabalhava em vão. Passei uma noite horrível e, mais que uma vez, pensei em que por aquele preço não valia aceitar o despacho. No dia seguinte, Domingo, o tempo e o mar não estavam melhores, no entanto o meu estômago, já um tanto habituado aqueles movimentos, estava um pouco mais sossegado, e aí pelo meio-dia piude beber talvez decilitro e meio de água de um caldo de galinha, que conservei. Era o primeiro alimento que tomava desde o almoço às 9 do dia anterior, nem água tonha bebido. Às 4 da tarde deste dia (17) bebi outra água de caldo que pouco depois vomitei. Na segunda-feira (18), apesar de ter passado a noite de domingo mal, porque o balanço foi medonho, já tomei dois caldos e à noite chá, tendo-me levantado um pouco à tarde. Até este dia (18) ao meio dia atrazámo-nos um dia na viagem. Desde as 2 da tarde de sábado até às 12 de domingo andamos 170 milhas,; até ao meio-dia de segunda (2º dia) 136 milhas. (cada três milhas regulam por uma légua). Nesses dois dias o mar foi tão forte que algumas ondas passavam por cima do cano da chaminé do vapor, entrando água para dentro. Na segunda à tarde tornou-se muito melhor, mas não bom, e assim se conservou sempre até à ponta da ilha. Até ao mei-dia de terça (19) andamos 230 milhas. Era neste dia que devíamos chegar a S.Miguel se não fosse o atraso que sofremos. Levantei-me logo de manhã bem disposto, tendo passado uma noite razoável, e fui para cima; já se podia sair para o convés sem perigo de tomar banho. Apareceu muita gente essa manhã. O almoço foi a refeição mais concorrida de toda a viagem. Eu comi, não muito, mas com apetite e sentia-me bem, só as calças me andavam a cair; efeitos daquele jejum de três dias. Tudo foi para a sala do convés. A velhota apresentou-me à sua neta. Houve cavaqueira animada até ao jantar, sem deixarmos de ir sempre razoavelmente embanados, o que fez com que as senhoras se retirassem um pouco antes do jantar, a que só assistiu a velhota. Vimos um vapor não muito longe, que devia dirigir-se talvez para o Estreito de Gibraltar. Não se chegou à fala. Eu jantei bem, à noite tomei chá e só fui para o beliche depois das dez horas. Enfim, se não fosse o ver-me só e a ideia de que cada vez mais me afastava dos meus, tinha sido um dia bom e eu considerava-me apto a andar assim embalado muitos dias. Demais tinha a consolar-me que, indo passageiros que tinham feito muitas viagens, todos enjoaram; até uns marinheiros da armada que vinham na 3ª classe; dos próprios criados e empregados de bordo, poucos escaparam; e mesmo o capitão confessou que tinha tido o seu incomodozito de cabeça. – Alguns passageiros diziam ter sofrido grandes tempestades e temporais mais violentos e não enjoarem; mas desta vez encontramos a mar assim picado logo à saída da barra, quando o estômago não estava ainda habituado ao balanço, e conservou-se assim constantemente quase três dias. Que nós não tivemos o que se chama tempestade, nem estivemos em muito grave perigo; foi o vento que levantou assim o mar, e que soprava contrário ao nosso rumo. Neste dia 19 ao meio dia tínhamos, desde o Cabo da Roca, 536 milhas andadas, faltando-nos 214 até à ponta da ilha. Sabíamos por isso que na manhã seguinte teríamos terra à vista. Efectivamente na quarta-feira todos se levantaram cedo para ver a tão desejada terra, que lá estava em frente coroada de nuvens. Para o Sul víamos também a Ilha de Santa Maria, uns picozinhos que se desenhavam vagamente e muito distantes. S.Miguel fez-me lembrar um pouco a nossa Serra de Bornes, vista de longe. Apresentou-se-nos pela extremidade leste e por isso com pouca extensão, pois que o seu maior comprimento (18 léguas) é de leste a oeste, podendo apreciar-se pelos lados norte ou sul. – Mesmo á nossa frente estava uma povoaçãozita a meio da encosta com as casinhas muito brancas, que subindo pelo monte pareciam os degraus de uma escada. Tomamos pelo sul da ilha, eram 10 horas e meia, para nos dirigirmos para Ponta Delgada, que fica na cista sul a 25 milhas por mar, e aí a 12 léguas por terra, da Ponta de Nordeste, que primeiro se encontra, indo de Lisboa. No centro da ilha picos bastante elevados, depois vêm outros mais baixos, depois outros até à costa que em parte é muito alta. Assim é a copsta leste e a do sul até próximo a Vila Franca; apenas onde há ribeiras é acostável e aí em geral há uma povoação. A aparência geral é agradável; muita vegetação e as casas todas a branquejarem, nas mais pequenas aldeias.
Fomos passando em frente da costa sul. Além de outras povoações, lá estava o Faial da Terra, aldeia com a aparência de uma vilazita, e bonita, com a sua igreja com torre, muito bem situada num valezito ao pé duma ribeira. A vila de povoação, não tem tão boa aparência e dizem-me mesmo que é feia; fica situada numa poça muito apertada, cercada de montanhas que nela despejam as suas águas, com uma única saída para o mar; por isso está sujeita a perigosas inundações. Depois d’outras aldeias pertencentes à comarca de povoação, aparece-nos a Ponta Garça que parece um interminável carreirão de formigas brancas. È uma rua só, mas com uma boa légua de comprida; está situada num campo ao correr das montanhas, compreendido entre o sopé destas e a costa que é alta. Adiante abaixa mais e forma uma baía ao princípio da qual temos a Ribeira das Tainhas e Ribeira Seca, povoações que já pertencem à freguesia de S. Miguel de Vila Franca. Esta ocupa o resto da baía e apresenta do mar uma vista lindíssima, com a casaria branca, as igrejas, torres e outros edifícios maiores a sobressaírem; estufas dentro, em volta, por toda a parte, (são de lá os melhores ananazes da ilha). Aqui o campo até ao sopé dos montes é muito mais largo. A vila ocupa bastante extensão tanto em comprimento como em largura. Ao fim (poente) da vila a terra faz uma pequena ponta que termina a baía, e que parece ser continuada pelo ilhéu, que fica um pouco desviado da costa. Este ilhéu parece ter estado unido á ilha e que talvez os tremores de terra e erupções vulcânicas, que ela muito sofreu, o fizessem separar. Para além da ponta temos outra baía; mas esta, das suas três léguas, e vai tyerminar a Ponta Delgada. Antes, porém, fica Água de Pau, com a sua serra de muita e boa água que abastece a cidade; Vila de lagoa, povoação importante, cabeça de concelho, pertencente à comarca de Vila Franca, é tão grande como esta e tem uma boa fábrica de destilação de batata doce que aqui se cultiva em grande escala. Depois Rosto do Cão, etc., e por fim a cidade que é bastante grande e que do mar tem uma linda vista. Para lá da Serra d’Água de Pau a ilha é muito menos montanhosa, elevando-se mesmo o centro a muito menos altura. – Chegamos finalmente ao porto pouco depois da 1 hora deste dia 20, quarta-feira, demorando quase três horas desde a Ponta de Nordeste. O vapor apitou apitou, lançou ferro e deu um tiro de peça, como costuma fazer para anunciar a chegada. Começaram a enxamear os barcos e depois de feita a visita médica houve um extraordinário movimento a bordo: os que vinham esperar os seus parentes e amigos, entravam, abraçavam, beijavam, cercavam os recém-chegados que tinham a alegria no rosto; outros iam desembarcando e seguindo nos escaleres para terra. Que animação!... que alegria, que satisfação, especialmente nos que chegavam a suas casas, ao pé das suas famílias! Mas…, que tristeza!..., eu também chegava e… não tinha ali ninguém: nem família nem amigos; tudo estranhos! Pelo contrário, a chegada dava-me a certeza da grande distância que me separava dos que me eram caros. E em volta de mim tanta alegria!...





Abel Thomaz Aquino Oliveira e Sousa nasceu em 8 de Julho de 1876 em Vila Nova de Foz Côa e foi baptizado em Macedo de Cavaleiros em 31 de Julho, tendo por padrinhos o seu tio Abade de Macedo, Padre Thomaz Aquino de Miranda e sua avó, D.Josefa Rosa de Miranda. Era filho do Dr. José Felizardo Rodrigues de Sousa e de sua mulher Dona Cândida Augusta da Conceição Oliveira de Miranda, filha mais velha dos Morgados Oliveira, em Macedo de Cavaleiros. Morreu com tuberculose em 27 de Junho de 1904 em Macedo, solteiro e sem filhos. Estudou na Universidade de Coimbra. Estava-lhe reservada uma carreira pela magistratura, que encetou, e depois pela política, estando já acertado o seu ingresso numa futura lista de deputados quando a tuberculose o veio surpreender e vitimar aos vinte e sete anos. O desgosto que tal causou na família terá sido a causa próxima da morte de seu pai, o Juiz Sousa. A sua curta vida foi socialmente intensa e preenchida. Numerosos acontecimentos na Foz, no Porto, na Póvoa de Varzim, em Vila do Conde, em Espinho e na Figueira da Foz contaram com a sua presença animada, sendo sócio de vários Clubs e agremiações destas localidades onde aparecia com as irmãs e em que era figura conhecidíssima. Sabia música, como todos em casa, e tinha uma grande cultura geral, interessando-se sobretudo por poesia. A família sempre teve horror às doenças e, formada com as notícias das descobertas de Pasteur e de Koch, que chegavam a este recanto de Trás-os-Montes com a Lectures pour tous e o Ilustrated London News, olhou sempre com imenso receio para “as coisas do Abel”, encerradas numa arca defumadíssima com eucalipto antes de ser fechada com quilos de cânfora e naftalinas, temerosíssima de dela poderem sair micróbios e gérmenes de morte. Durante dezenas de anos ninguém lhe mexeu, objecto relegado para um sótão. Um dia foi aberta para umas partilhas mais utilitárias do que reverentes e que desprezaram “os papéis do Abel” como coisa de somenos valor, sem o brilho de uma encadernação ou o colorido das fitas de Coimbra. O conteúdo da arca ficou espalhado pela primalhada toda, sem nexo, destituído para sempre do seu sentido de unidade. E agora aparecem por aqui e por ali umas folhas soltas de correspondência e apontamentos. Estas, da famosa ida do tio Abel para os Açores, foram-me deixadas copiar pela Prima Maria Fernanda Falcão. Um muito obrigado. Espero que, difundidas agora pelo “hiperespaço”, tenham adquirido o condão de uma certa forma de eternidade e não se percam mais, para grande satisfação dos sobrinhos-netos, bisnetos e etc. que nelas encontrem motivo de interesse!