Reeditado do EGGAS.
©Manuel Cardoso
Quando vivemos no Bairro Alto, em Lisboa, na Travessa da Espera, a nossa janela da sala no r/c estava a metros, do outro lado da Rua das Gáveas, da loja de vidros quadriculados, azulejos brancos, balcão de mármore sobre uma madeira pintada dum branco-farinha, e vinha de lá, em instantes benfazejos, o hálito envolvente do pão fresco a pedir para fazer parte de nós.
Na Póvoa do Varzim, há imensos anos, o nosso andar arrendado para férias ficava, nesse Julho e Agosto, por cima duma nuvem encantadora de papo-secos ou moletes, pãezinhos de leite e regueifas, que adivinhávamos nas prateleiras do piso, por baixo, da Padaria Cadeco, esquina transversal à Junqueira, e fizeram as delícias dessas semanas inesquecíveis de praia em que os trincávamos com fiambre que sabia a fiambre, queijo que sabia a queijo e panados com um pão ralado que hoje em dia não há – e até com chocolate, umas tablettes de comacompão, que se compravam aqui e ali, cuja energia de alta tensão ainda agora faz efeito só de as lembrar!
Na nossa vida profissional de veterinário de aldeias, esquadrinhando nos recantos menos prováveis, muitas vezes pudemos surpreender as fornadas de trigos e centeios a entrar ou sair de fornos antigos, acontecimento em que se misturavam os tons vermelhos e escuros do fogo, com os brancos e cinzas das masseiras e das bolas de pão para cozer, embrulhados em toalhas e panos aos quadrados, até ficarem sob a abóbada de barros queimados, encaixada em granitos ancestrais, tons de brasa branca do calor, arrumados com uma pá de madeira, manobrada por sombras negras dos lenços à cabeça das mulheres, que rezavam auspícios ou davam graças, os polvilhavam proferindo orações e imprimindo símbolos na massa ainda mole.
Tudo tão especial e tão
excepcional, mas que, por fazer parte das nossas rotinas, nem nos dávamos nem
damos conta a sério da sua especialidade e excepcionalidade: o podermos trincar
um pão. Deveríamos considerá-lo com muito mais importância: se já existisse no paraíso, Adão e Eva não se
teriam deixado levar a troco duma simples maçã! Impor-se-lhes-ia, mais alto, o
cheiro do pão cozido, algo que lhes saberia doce e muito mais agradável - e os teria mantido na linha!
Esse etéreo perfume, capaz de nos transportar, de imediato preencher todos os nossos sentidos, que nos permite fechar os olhos e abstrair do ruído envolvente. O duma padaria.
Em Macedo, toda a vida o
sortilégio acontece a quem passe na rua que vai do jardim para a estação: numa
porta discreta, com apenas um passo num degrau, entra-se num território
totalmente diferente. O ar morno, pairando nele a farinha com notas de tosta,
açúcar, amêndoa e, até, coco, elementos em gradientes leves e ponderados no
meio da predominância do de trigos e centeios, com côdeas que apetece logo
barrar de manteiga ou comer mesmo assim sem mais, impregna a nossa vontade de
um sentimento de dali não sair, jamais. E ver tudo, aspirar tudo. Os pães nos
cestos de vime e canastras de castanho, as prateleiras com biscoitos e bolos, a
decoração volátil no tempo, a porta aberta para o aposento mágico onde se misturam os
ingredientes, levedam as massas e cozem as obras de arte.
Ditas assim mesmo, obras de arte, porque nesta
padaria deambulou com afã uma peculiar artista portuguesa, a Túlia
Saldanha, que também serviu de mote a um outro post, O termómetro, a pastelaria e a arte.
O ponto do cérebro onde se
misturam os déjà vu com reminiscências, saudades e memórias, ganha
especial intensidade neste ambiente em que tantas vezes entabulámos conversa
com a Clarita e o Eduardo. Como se fosse o aleph de Borges, como se
fosse o dia em que tive o meu baptismo de voo num monomotor Cessna descolando
da pista de terra de Macedo, com o Eduardo aos comandos, o meu Pai ao lado
segurando o meu sobrinho Miguel ao colo porque estava com coqueluche, subindo
aos 10000 pés sobre a Serra de Bornes num largo círculo, descendo depois e
aterrando com a emoção que me dura até hoje. Que já era lendário na nossa casa,
o Eduardo, com as histórias que dele se contavam como piloto da Força Aérea
Portuguesa, as suas aterragens de emergência a merecer primeiras páginas de jornal, e de quando, no mesmo Cessna, também com o meu Pai ao lado, em
passagens razantes e repetidas, bombardearam, com pacotes de manteiga, açúcar e
farinha, um medeiro da casa da Maria Isabel Charula, nos Cortiços – tendo ela
que mandar desfazer e refazer a meda de palha para poder recolher os ingredientes
para o seu saboroso bolo inglês de nozes!
Que, nessa época, era na Padaria do Saldanha que havia uma estante luminosa SPAR com a melhor das manteigas Martins &
Rebelo, chocolate Lily’s, farinha Triunfo, refrigerantes, iogurtes a sério e
coisas afins. O Eduardo tinha uma peculiar perspectiva das coisas, frases de
ironia inteligente, mentalidade matemática aplicada à vida quer quando jogava
bilhar com o João Pires e o Luís Madeira, a ouvirem Fausto Papetti ou Sinatra,
quer quando zarpava para a neve no seu Porsche, sintonizado para as pistas de
ski. “Manel, quem te conhecia com esse cabelo?! Pensei que eras uma das tuas
irmãs!” e ambos nos ríamos, eu algo embatucado nos meus catorze ou quinze anos, enquanto
ele contava, para um cartucho de papel, os pãezinhos e os biscoitos de amêndoa que eu tinha ido comprar.
O Alcino, irmão do Eduardo,
salvou-nos, na nossa pequena cidade, de ficarmos sem a Padaria Macedense, gerida agora pelo seu
filho Nuno. Já com redecorações, arranjos, novidades. Sem perder o
encanto. Como a Brasileira, a Pastelaria Benard, a Nacional ou a Versailhes, em Lisboa,
todas lojas antigas por onde passou um sopro de progresso mas sem lhes alterar o
carácter nem o conforto dos velhos e novos clientes. Curioso porque involuntário, mas forçoso e verdadeiro, este
associar mental duma padaria com pastelarias de referência! Coisas dos espíritos da farinha!
Dir-me-ão que a Padaria resiste porque tem qualidade e a mantém, desde a época do bolo-rei no Natal para a época dos folares na Páscoa, de todo o ano nos pães, biscoitos e pasteis de nata originais. Nos económicos. Nos cocos. Nos amendoados. Em todos os outros. Resistirá, por isso, sim.
Mas também por uma razão simples e essencial: a de que é a partir de
todos esses produtos, daquelas paredes, dos sacos de papel sobre o balcão, das
folhas do vegetal de embrulho, daquelas máquinas e fornos, de todas as pessoas
que os manobram, que se desprende e fica a pairar no ar e no tempo o intangível
da alma especial das coisas. Intangível que chega até nós pelo cheiro inimitável
duma padaria. Que nos arrebata. E bem-aventurados os que se deixam arrebatar
pelo cheiro duma padaria!
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