sexta-feira, 6 de março de 2020

QUARTZO, feldspato e mica


Vidas de um veterinário no campo

©Manuel Cardoso

2.ª Edição, anotada e comentada, Lisboa, 2020.

Introdução


A primeira edição de Quartzo, Feldspato e Mica foi feita em Coimbra, em Dezembro de 2000, pela Quarteto Editora.[1] Foi uma emoção. O ter na mão aquele pequeno livro e ver, assim, materializada a possibilidade de dar a conhecer as histórias que o compunham a leitores distantes e, até, desconhecidos, criou uma expectativa que foi largamente ultrapassada pela sua boa recepção: “Manel, as tuas histórias estão fantásticas: apetece-nos ser veterinários e ir à tua terra!”, “Rimos à gargalhada com as tuas aventuras!” Impossível não sentir uma certa vaidade – uma salutar vaidade – em ver os outros contentes e, até, felizes por nossa causa.
Essa primeira edição esgotou-se rapidamente, apesar de ainda ter tido várias tiragens, uma delas patrocinada pela vontade e interesse do meu amigo e colega Pedro Franco, responsável por umas centenas de exemplares por si oferecidos, emitidos com a chancela da CROPSA, então a sua empresa de medicamentos e materiais veterinários.
O recente desafio de apresentar publicamente este livro no estrangeiro veio despoletar, há uns mêses, a necessidade de o rever e de o poder facultar, já que esgotado, a novos leitores interessados. Daí surgir agora neste formato, publicado neste blogue e em pdf, disponível gratuitamente a todos os que o queiram ler, com comentários elucidativos que tentam corresponder a muitas das perguntas suscitadas na leitura da edição anterior.
A revisão que pessoalmente aproveitámos fazer-lhe não lhe alterou nem a sequência nem a essência de nenhuma das histórias mas num ou noutro pormenor as suas frases foram reescritas como quem faz pequenas reparações num automóvel que já virou o conta-quilómetros. Tentámos não lhe mudar o estilo nem a semântica, a fim de respeitar a forma com que foi escrito, com as suas imperfeições e com os seus erros de estilo, inevitáveis na minha forma amadora de escrever, nessa altura muito menos reflectida e ainda hoje imperfeita. Foi um livro que não teve uma revisão profissional…
Ainda antes do prelo, lembro-me bem de o ler e dar a ler, em folhas de papel contínuo com margens perfuradas, escrito num antigo programa write do assist do computador que então existia na sala da nossa velha casa de Macedo, impresso ponto a ponto com um ruído de fritadeira de vai e vem! Guardava-o em disquetes com que também o abria no da associação de criadores de gado em que trabalhava. Essas folhas com bandas em verde-claro, agrafadas, acompanharam-me durante anos no UMM Alter e no Fiat Panda em que me deslocava profissionalmente. Foram sendo acrescentadas, anotadas, riscadas e, finalmente, escolhidas. Foram lidas com gargalhadas pela Mariana, pela Ana Cristina e pelo Afonso Ruano. Pelo Manuel Salgado[2] e pelo Álvaro Mendonça. Em tardes e almoços na Casa da Bouça, onde eu ia tanto para tratar duma vacada ímpar como atraído pelo magnetismo de inesquecíveis conversas, foram (não posso dizer apenas “lidas” porque foi muito mais do que isso!) comentadas pela Graça Pacheco de Amorim e pelo Jorge Andrade, com risos eruditos, com sugestões, com a expressão terminante de as mandar para impressão! Conversas sobre a vida, Trás-os-Montes e Portugal! Escolhidas, que haveriam muitas mais, algumas outras estão ainda nas papeladas do sótão de Latães a aguardar um dia… Tão bom, relembrar tudo isso! Medidas cheias de nos fazer levantar os ombros ao escrever dedicatórias, ouvir comentários, saborear opiniões risonhas e doutas como as da Beatriz e do Luís Serra!
Já não existe a vida das aldeias que lhes deram origem. Já não há os garotos nos largos a brincar, as vacas a dirigirem-se para as salas de ordenha, os porcos a roncar e a chiar pela comida, os carros de bois carregados de feno, nem mesmo os tractores a abarrotar de ferranha[3] para as crias e bestas! Apenas num ou noutro apontamento raro ainda se pode surpreender este mundo nalgum recôndito de Trás-os-Montes. São histórias que decorreram no preciso momento em que desaparecia todo o seu cenário. Retratando factos dos anos oitenta e início dos noventa do século XX, em que a nossa integração na Comunidade Económica Europeia matou de aparente fartura e despovoou para as cidades os actores que no campo zelavam pela nossa paisagem secular. Ainda bem, pelo lado de que terá acabado definitivamente a agricultura da fome – ainda mal pelo outro lado, o resultante da correcção desse desequilíbrio: o do despovoamento, do abandono, da solidão, do envelhecimento dos que ficaram. Tudo poderia ter sido diferente? Poderia. Esperamos que pelo menos algumas destas pequenas histórias possam despertar interesse e, mais do que isso, fazer renascer amor pelo campo, e consigam fazer voltar a criar raízes em Trás-os-Montes a algum dos nossos leitores!


A edição em papel tinha a capa que aqui vai. Dentro, uma dedicatória. Aos meus queridos amigos Mendo Castro Henriques e Branca Braga de Macedo – que foram quem me fez apurar o gosto por este tipo de contos: tardes, jantares e serões em Santos-o-Velho, ainda estudante da cidade e do curso de medicina-veterinária, num castiço andar de cuja varanda se via holisticamente a História e a Humanidade, a que não faltavam as suas ficções e razões de ser! Na contracapa, por isso, as letras de uma dessas short-stories:
- Ah, senhor doutor, estava a ver que nunca mais vinha!
Era quase meia-noite e o homem esperava-me à entrada de casa, em Macedo, no portão que fica em frente ao Restaurante Muchacho, dando de caras comigo ao baixar o vidro da porta do carro. Vinha dum dia extenuante e sem jantar ainda. Ele, das horas de espera com certeza rematadas à conversa ao balcão do Muchacho de que dava testemunho um forte cheiro a cerveja e um entaramelar de sílabas. Tinha que ir. Caso urgentíssimo, um porco a morrer já quase sem forças e que aparecera coberto de malhas. Era o recado que o homem dava. Fomos.
Entrei nos baixos da casa e dei de caras com o bicho, morto e esventrado, pendurado da trave mais grossa da adega, cheio de manchas de mal-rubro a pintalgar de losangos roxos a pele escarqueijada e branca.
- Mas?! O animal está morto e arranjado!
Apareceu a mulher, meio atarantada e estremunhada de um sono de espera, a apertar um lenço na cabeça.
- Oh, senhor doutor! Podia ter ficado para amanhã!...
- Bem, aqui o Augusto meteu tanta pressa, não me disse que o animal já estava morto!...
- É que ele quando saiu daqui para ir chamar o senhor doutor, de manhã, ainda o viu vivo e escapou-se logo, nem ajudou a agarrá-lo para o banco! Este calaceiro!...
       
  

Um - Razões de ser


Íamos calados, esbraseados, suados, poeira a entrar pelas janelas do UMM. Um céu ofuscante e um calor inclemente desabaram em minutos numa chuva de tempo das segadas, pingos grossos que começaram por levantar poeira mas logo ensoparam o estradão e deram ao ar o aroma agradável de terra molhada misturada com um cheiro de estevas mais forte e doce. A atmosfera limpou, o verde ficou mais verde e o Sol, a romper em raios rigorosos e pincelados, menos escaldante. Banhada desse ar especial de trovoadas esparsas, a paisagem caprichava de luz. Núvens além sobre Bornes, azul intenso em Ala e Latães, grandes manchas de sombra movendo-se pelos vales e tacteando as encostas de Ferreira e Comunhas. A Serra dos Passos envolvia-se numa luz cintilante ao fundo, abrupta e destacada como um dólmen sobre o chão escalvado da Terra Quente. Cordões de água cinzentos e a relampejar desciam do céu como uma cortina de um cenário gigante a fechar da vista o lombo das Arcas e o monte de Agrochão. Na direcção oposta, com uma solenidade bíblica, um arco-íris coroava as Alturas de Bousende. Mais uma bátega retardatária e breve reteve-nos dentro do jeep, já junto de um beiral que escorria farto. Uma mão e uma voz bradaram um sorriso de uma porta:
- Venham daí beber um copo dele fresquinho!
O acesso à adega era por uma porta esconsa de gonzos puídos. A soleira estava gasta em sulcos em que a madeira roncava com um ruído de séculos. Entrar ali era mudar de luz, de cores e de som. Até o ar era antigo e fresco. O chão tinha sido feito da rocha-mãe talhada até meia altura das paredes por um martelo picão que tinha riscado aquele xisto e deixado-o em estrias. Abafavam-se os passos de uma forma maciça e as próprias vozes ficavam com um timbre especial sem ressonâncias nem ecos. Uma lâmpada turva de teias e pó clareava ao lado duma velha candeia. Pelas paredes sobressaíam sombras irregulares das pontas de pedra iluminadas. Estas serviam de poiso a uma indescritível colecção de objectos que os anos e outros usos ali foram deixando descansar: espadelas[4] de linho, quadros de colmeia, aros de estribos, correias de selins, um troço de arcabuz, meleias[5], um molho de fusos, uma profusão de formas que primeiro surgiam indistintas e que depois o olhar destrinçava entre o pó, a ferrugem e as teias de aranha. Do tecto espairavam-se aromas de vários atados de ervas cujas diferentes qualidades brotariam mais tarde em infusões para as dores, as solturas[6] ou os abafamentos. Uma arca dividida a meio continha gradura[7] e ervanços[8] e ao lado, escorrendo humidades e ressumando, pequenas talhas bojudas e orgulhosas curavam azeitonas e alcaparras. Um pedaço de cartão rasgado, preso a um fio que o sustinha dum caibro, servia de tabuleiro a sementes de melão que secavam à espera do próximo ano.
Encostado à parede maior repousava um banco muito manchado, tosca tábua grossa de freixo, apoiado em quatro sólidos pés. Quando ali não estava ao recato rondava pela aldeia toda em que era o cadafalso de padecimento dos cevados[9], pelo mata-porco. Foi nele que nos sentámos, aliviando da caminhada da tarde, passando o copo de fresco palhete[10] que o Simões nos ia chegando. Em cima de um cêpo, tirada uma machada que nele cravava a ponta da lâmina, estendeu-se a alvura de um pano aos quadrados nas bordas, sobre o qual tomaram posições um farto centeio e um prato de louça com um salpicão ainda a pingar azeite. Este tinha saído de uma talha de lata escura que, desapercebida ao pé da pipa enorme, ainda guardava, preciosamente, dois molhos de linguiças.
Contaram-se histórias rebuscadas numa memória que os copos do palhete despertavam cada vez mais. E cantou-se quase ao desafio com vozes ali descobertas e afinadas ao som de um violão já meio rachado a que o Tio Zé, requisitado para a folia depois de ter deixado as vacas amanhadas, dedilhada as torcidas cordas de tripa.
Havia ali um ponto de intersecção, uma atmosfera de Borges. Entre a pressa e a calma, o velho e o novo, a ignorância e a sabedoria, a vida e a morte. Esse ponto extravagante e quase palpável brilhou por um instante. Foi dele que brotou a decisão de escrever estas pequenas histórias. Tecidas de uma realidade vivida e simples, o dia-a-dia de um trabalho de médico-veterinário feito com empenho e dedicação, também com sacrifício e esforço, e bordadas de uma fantasia quão simples quão vivida também. Nalgumas, há a serenidade de um ritmo de épocas passadas; noutras, a premência de uma pressa que urge a prender o presente. Em todas, a paixão pela seiva deste torrão precioso de Trás-os-Montes.
A trovoada passara. O Sol desaparecera e ficara aquela luz que atenua a nitidez das coisas e faz delas brotar o mistério. Que paz aquela! No entanto, segundos depois, uma chamada do rádio[11] fez-nos reencontrar a realidade. Já sob as estrelas, numa aldeia quase vizinha, numa eira descampada onde havia um tronco[12], fiz nascer um vitelinho mirandês.

Dois - Princípios


- Oh! Oh! Então vai prender o novilho aí à trave?!
-À confiança, senhor doutor, fica bem preso!
- Então não era melhor aqui em baixo, na manjedoura?
- Aqui fica bem! Pode botar!
- Mas olhe que ele leva uma espetadela da vacina e depois o brinco na orelha, com o alicate. Não atirará connosco?
- Ora, senhor doutor, não tenha medo! A corda é forte!
Era forte a corda mas não o era a trave. Quando se ouviu o estalido do alicate, o bicho deu um salto, a madeira partiu-se e foi num segundo que o dono fugiu pela porta, comigo atrás e atrás de nós o novilho, um mirandês de quase quatrocentos quilos. Sorte a nossa de estar um homem com um pau à saída que o fez desviar e me evitou apanhar com uma valente cornada no meu precioso traseiro!
Esta foi uma das minhas primeiras experiências profissionais em Trás-os-Montes, a minha terra.
Mas já semanas antes me tinha acontecido outra.
Canudo ainda fresco, teorias na cabeça, estado de graça, noite de cavaqueira no Café Central. Regressava a casa e reparei que, à esquina da farmácia, um polícia e um homem andavam para um lado e para o outro com o pescoço esticado na atitude de quem busca. Ouvi o primeiro dizer:
- Olhe, o senhor doutor vai ali!
O homem atravessou a rua e, nervoso mas sorridente, pediu-me para ir ver uma vaca que não conseguia parir.
Fiquei aterrado! Um primeiro parto! De repente parecia que toda a ciência se me tinha varrido da cabeça. Vaca? Que bicho é esse?! Mas lembrei-me do Ovídio. O Ovídio ainda estava no Central à conversa.
- Olhe, eu vou mas com o doutor Ovídio. Ainda mal cheguei de Lisboa e não tenho, sequer, uma injecção.
Avançámos para a aldeia. Duas vacas frísias tasquinhavam. O homem apontou para a primeira:
- É esta!
- Pegue lá no rabo! – disse o Ovídio com voz experiente e segura e ao mesmo tempo que metia a mão vaca adentro.
Ajeitou o ombro, fez sair o braço até ao cotovelo, voltou a meter o braço todo e olhou para mim de sobrancelhas franzidas e ar de riso.
- Que foi?
- Não tem cá vitelo nenhum!
- Não tem vitelo?!
- Não, nem placenta!
- Ah – diz o dono – mas ela já livrou!
- Já livrou?! Então, e o vitelo?
- Vitelo não lho vi. Como estava com puxos é que fui chamar o senhor doutor. Conseguiu deitar fora as libras[13] mas não conseguiu deitar o vitelo.
- Ó homem, se já deitou libras é porque também já saiu o vitelo. Tinha que ter saído primeiro.
Procurámos entre a palha. Em vão. Caso bicudo. Já nos vínhamos embora quando o homem desabafa:
- Bom, ao menos a outra que pariu há bocado teve dois, sempre dá para o prejuízo desta!
- Outra? Qual outra?
- Uma que estava aqui e que levei para outra loja[14] para estarmos mais à vontade.
- Deixe lá ver.
Fomos ver os “gémeos”…um era preto e outro castanho.
- Então como é que sabe que esta é que teve dois? Viu-a parir?
- Não. Quando entrei na loja para ver se já tinham parido estavam os dois a mamar nesta.
- Ah!
Viemos embora divertidíssimos.

Num outro parto também fiquei com uma história para contar.
Como o dono insistisse na urgência e eu estava também cheio de pressas, pedi-lhe que me aguardasse já com a vaca no tronco da aldeia. Cheguei de jeep que parei ao lado e meia dúzia de garotos que corriam por ali a brincar com aros de rodas de bicicletas vieram imediatamente na minha direcção. Puseram-se em cacho a ver o que fazia e um deles, nitidamente o líder, perguntava coisas e mandava calar os outros. Ficaram admiradíssimos de me ver enfiar uma luva até ao ombro e, em silêncio, na expectativa talvez de eu apanhar com uma patada, observaram-me a meter todo o braço para o interior da vaca.
Bolas! Ia demorar mais do que eu queria. A cabeça do vitelo estava mergulhada para baixo. De forma que tirei a luva, insuficiente para me proteger nas manobras que iria fazer, e desdobrei um sobretudo sanitário de plástico transparente, autêntico preservativo de usar e deitar fora que nos tapa todos e só nos deixa a cabeça de fora. Por cima enfiei ainda a luva da mão esquerda e, quando esticava os dedos da direita, os garotos acotovelando-se para me ver melhor com aquele aspecto couraçado, o mais espigadote não se conteve e proclama:
- Ulha! O hóme bai a entrar pra drento da baca!


Três – A Perspectiva


Começou a chover quando ia perto da Sobreda. O vento varria o planalto em vagas de água. O ocre era a cor dominante e o azul, que ao fundo pintava a Serra de Mogadouro, mergulhada em Sol, irisava-se nos pingos que brilhavam no bordo das folhas e das ervas secas. As cores de Trás-os-Montes! – Um quadro de Turner!, feitas de uma paleta que o acaso combina em irrepetíveis cambiantes: nas ervas, nas fragas[15], nas árvores e nas pedras dos muros, ora espantam pela profusão exagerada, ora pela suavidade. Prolongam-se com a distância. Não há nada que seja verde nem branco nem vermelho nem monótono: olha-se um prado, um lameiro[16] e o tudo verde é puro engano! Mais de perto distinguem-se cinzentos e amarelos, pétalas brancas e pólenes rubros. E há o momento. O momento do dia, o momento do ano, o momento da nossa alma. Dias em que não vemos nada e dias em que tudo aparece a meter-se-nos cá dentro brotando em lágrimas e em plenitude. E a música! Um silêncio quase molecular que deixa ouvir outros mundos e a que um simples melro harmoniza um tom que metamorfoseia o verde noutro verde.
O xisto e o granito são inseparáveis e eternamente inscrevem essa melodia como numa fuga. Uma fuga em que permanece um baixo contínuo. Que nos absorve na sua textura. Uma textura de quartzo, feldspato e mica.
Parou de chover quando chegou o som do Rio Sabor remoendo fraguedos. O pastor viu-me de longe e aproximou-se com as cabras que desceram a escarpa num chocalhar de guizos. Olhei o homem, semicurvado, manquejando agarrado ao bordão de freixo.
- O senhor anda com dores?
- Quase nem me posso dobrar. E deste joelho…
- Sua, durante a noite?
- E de que maneira! Têm-me acudido umas gripes…
O olhar rosadamente febril e húmido, a cara afogueada pelo rubor da moléstia que lhe emperrava os joelhos e lhe tolhia as costas eram inconfundíveis. O problema do homem era a doença das cabras. Todos tinham febre-de-malta. Ele e a família foram para o hospital – as cabras, para o matadouro.

Quatro – O vitelo bicéfalo


O telefone tocava insistentemente naquela manhã com um timbre de pressas e trabalhos. Passei pelo Central num virote a beber uma bica e enfiei estrada fora a caminho de uma vaca mirandesa agitadíssima e a espremer-se, gemendo de dores. O caso não iria ser fácil: o vitelo que estava para nascer era uma daquelas raras aberrações que surgem inesperadas: era bicéfalo!
- Com duas cabeças, senhor doutor?!
- Com duas cabeças ou, melhor, com dois focinhos. Apalpam-se dois focinhos colados um ao outro, entende?
Não entendeu muito bem mas, por respeito, disse que eu fizesse o que entendesse.
Regressei a Macedo para me munir de material e de ajuda e, poucas horas depois, avançámos para o local. Era o dia do nosso jantar de Natal da ACRIGA, a nossa associação de criadores de gado, e, para apressar as coisas, uma autêntica task-force apresentara-se à chamada: os colegas Assunção e João Paulo[17] e o senhor Salgado, nosso chefe de secretaria mas sempre disposto a dar uma mão no que fosse preciso. Além de nós, juntou-se uma plateia atónita de espectadores: primeira cesariana na aldeia. Mais ainda: primeira vez que um veterinário, antes de um vitelo estar cá fora, garantia que o mesmo ia sair com duas cabeças! O veterinário dizia mas o bruhaha geral era ainda de incredulidade completa. Ver para crer…
O chão da loja onde estava a vaca era uma grossa camada de estrume com palha limpa por cima. Uma porta larga de castanho, que o gasto pusera desengonçada e ondulada de nervuras, abria-se e fechava-se rangendo. No tecto, não se distinguiam as traves das teias de aranha e um estrado tosco suportava palha e feno por cima, até às telhas. A luz foi fornecida por uma gambiarra, longo fio rastejante que se dirigia a uma casa vizinha e cuja lâmpada foi segura com atenção, durante todo o tempo do nosso trabalho, pelas mãos nodosas dum circunstante mais curioso.
A mesa para o material cirúrgico, foram dois fardos de palha sobre os quais se pôs uma toalha branca e a vaca, meia adormecida pelo anestésico injectado, estava presa por cordas a um espeque de madeira de zimbro que suportava uma trave. Três homens, à cautela, seguravam-lhe nos cornos e na traseira. A zona da incisão foi lavada, escanhoada e desinfectada. Ouviam-se vozes:
- No hospital também fazem assim!
- Bô, se calhar nem estão com tanto cuidado!...
Anestesiada a pele, incisos os golpes em sucessivos planos, afastado o mesentério, chegou-se ao útero. Demoradamente. Cada golpe, cada pinça, cada gesto exigia explicações e suscitava comentários.
Menos do dono, que não falava – suspirava. A cada momento acumulava receios e dúvidas, fungava e passava um lenço pelo nariz, metia a mão no bolso, fazia pequenos percursos pela loja fora, apoiava-se na parede.
Fez-se a incisão no útero. O João Paulo apressou-se a segurar numa das patas do vitelo que logo surgiu, casco amarelado à vista. O senhor Salgado ajudou a puxar a outra. A Assunção tentava conter as vísceras dentro do golpe operatório. Eu amparava o útero para evitar rasgões e conspurcação para dentro da cavidade abdominal. Tudo com ordens sonoras e palpites. O vitelo foi saindo. O dono olhava.
Primeiro apareceram os membros posteriores.
- Olha! É vitelo! – alguém exclamou.
Depois, o tronco. Mais devagar, os ombros… a cabeça a seguir… encravou no bordo do golpe. Puxões daqui, jeitos dali… saiu!
O dono, até ali silencioso, imediatamente grandes olhos para ver as duas cabeças, disse em voz alta como quem alivia um fardo, como quem tenta esconjurar um mal:
- Eu bem não queria que o touro saltasse[18] duas vezes na vaca!
Entreolhámo-nos com vontade de rir mas a conter-nos. Só que explodimos logo a seguir porque o senhor Salgado, explicativo e pedagógico, interpelou:
- Ó homem, até é vergonha dizer uma coisa dessas diante dos senhores doutores e está aqui a senhora doutora! Então não vê que isso não tem nada para o caso?! Se fosse assim, os garotos nasciam com mais de vinte cabeças!   

Cinco – O Pai das Garotas


Uma das coisas mais temíveis nos partos das porcas é o cheiro. Um cheiro muito desagradável que nos fica entranhado na pele, nos dedos, no calçado e no carro. Dois ou três dias depois, ao fumar-se um cigarro, tomar-se um café ou apoiar-se a cara na mão, ainda aquele aroma peculiar nos recorda o onde, o quando e o que se fez. Não que a porca em si cheire especialmente mal. Mas as lojas, oh! Que vontade de só tratar de vacas e ovelhas! O chão é um lodaçal em que a palha seca e amarela, que espalham para eu entrar, em minutos fica preta e molhada. Umas dimensões em que, geralmente, ou cabe a porca ou caibo eu, tectos baixos que obrigam a andar permanentemente curvado, uma iluminação duvidosa que nos faz temer a pontaria dos passos. É nessas lojas exíguas, sombrias e húmidas que temos de trabalhar, de bruços ou de joelhos no chão, muitas vezes quase deitados lado a lado com as parturientes.
Foi nesse cheiro e nessas dificuldades que pensei quando me vieram chamar para um desses partos. Andava meio cansado nesses dias e quando se está cansado pensamos mais no lado negativo das coisas. Mas, felizmente, uma vez chegado ao local, vi que nada do que eu temera acontecia naquela loja de porcos.
Construção recente em blocos de cimento, chão drenado e enxuto, arejamento bom e iluminação suficiente, faziam daquelas duas reboludas porcas duas felizardas no meio das centenas criadas e mantidas na região. E com que orgulho a dona (porque quando toca a porcos são sempre as donas as minhas interlocutoras) mas mostrou, cada uma em seu compartimento, separadas por um muro com cerca de um metro de altura. Uma, mexia-se desenvolta, focinho metido até aos olhos na pia da vianda[19], borbulhando a água com farelos ao rebusco das batatas que estavam no fundo. A outra, estendida e com respiração de parturiente, ora seguida ora entrecortada, tal como as senhoras aprendem na ginástica de preparação do parto, esforçava-se, inconsequentemente, em se despachar para pôr os filhos cá fora.
Luva obstétrica até ao ombro, tirei facilmente o primeiro filhote.
- É leitão, senhor doutor?
Era uma leitoazinha que logo se pôs às focinhadas na mãe em busca de uma teta das catorze que a porca tinha. Mediquei a porca para estimular a tonicidade do útero e rapidamente saíram mais uma, duas, três leitoas que, periclitantes mas decididas, se puseram ao lado da irmã chuchando o colostro avidamente.
Enquanto os minutos foram correndo, a assistência fora aumentando. Juntou-se meia dúzia de mulheres e havia também um velhinho curvado sobre um bordão a jeito de bengala, mudo e sumido no meio do mulherame. Conforme chegava mais alguém, havia sempre comentários e explicações, sobretudo da parte da dona que repetia, invariavelmente, ser a primeira vez que tinha um arampeço[20] daqueles, que todos os anos as porcas lhe pariam bem e acarinhavam os filhos, que não compreendia porque é que a esta havia de acontecer isto. E palpites não faltavam para achar uma causa para tal infortúnio:
- Se calhar é de estar gorda demais…
- Ele não, mulher, a minha pariu mesmo bem e está mais gorda do que esta.
- Mais gorda?! – retorquia uma vizinha com a malícia intrínseca das donas de porcas – Ainda a vi quando a tua Luísa me chamou para apartar os leitões e está muito mais magra!
- Agora! Havias de a ter visto quando pariu!
- Então, já há leitões? – disse uma recém-chegada, de dentro do grupo que se comprimia para ir cabendo.
- Isso sim! Só leitoas!
Como se lhe não bastasse o azar de ter de ter chamado um veterinário, ainda por cima a porca só lhe dava leitoas! Lá duas ou três, vá que não vá, vendia uma ou duas e ficava com outra para chegar ao porco e ter leitões mas todas, todas era demais! Um leitão é outra coisa. Para o espeto não há melhor. Medram[21] mais que as leitoas, vendem-se bem e, quando crescem, já na engorda para o mata-porco, não emagrecem como as porcas ao andar burliças[22]. Claro que é preciso capá-los mas crescem muito mais. Não há que chegue a um bom cevado. Um macho é um macho!
Entretanto nasceu mais um. Mais uma, aliás, outra leitoa.
- Quantos já são? – perguntou uma voz.
- Cinco.
- Aqui vem outro! – disse eu pendurando o bácoro pelos posteriores para o libertar das secreções nasais.
É leitão? – pergunta a dona com voz esperançada.
- Hummm… é leitoa – respondi depois de verificar.
- Seis leitoas! Ah, senhor doutor, não volto a querer esta porca para parir! Vejam lá, só leitoas! Ah, má raça! – desabafou a mulher desanimada e com a mão no ar como quem vai bater na porca.
- Ora essa, disse eu, a culpa de serem leitoas não é da porca. É do porco.
Um silêncio surpreendente estabeleceu-se na pequena assembleia. Ouvia-se o arfar da porca, os sons da pequenada a chuchar o leite e apercebi-me de que a minha afirmação estava a produzir um muito leve sururu como que a ser assimilada. Levantei a cabeça e reparei que as mulheres se entreolhavam franzindo a testa e erguendo as sobrancelhas. O velhinho sumido estava indiferente àquele silêncio activo, curvado na mesma, apoiado no pau, lábios fechados e constantemente a mascar com a boca sem dentes, um tique em que mexia o queixo para trás e para diante. Uma delas pediu uma confirmação:
- O senhor doutor que diz? Que é do porco?
- Sim. É o mesmo que connosco. Nascerem rapazes ou raparigas depende do homem e não da mulher – frisei sem entrar em mais detalhes.
- Ah, então é mesmo?!
A que falara, mulher dos seus cinquenta e muitos mas ainda bem constituída, braços de quem não lhe custava nada amanhar de sacho os regos da horta, dá um safanão ao velhote e diz-lhe bem alto, mesmo bem alto para que ele não perdesse palavra:
- Estás a ouvir, hóme!, estás a ouvir o que diz o senhor doutor? – e repetia os safanões mas de tal modo que o homem teve que dar dois passos para o lado, encaminhando-se para a porta ao mesmo tempo que era abanado pelos encontrões da mulher.
E, virando-se para mim:
- Ó senhor doutor! Tive quatro filhas deste homem e por cada uma levei uma sova porque o estafermo queria um rapaz e, afinal, (voltando-se para ele e dando-lhe um autêntico murro no braço) a culpa era tua! Ouviste o que disse o senhor doutor? A culpa era tuuua!
Pô-lo fora da loja.

Seis – O Pré-Paleolítico


Construída no meio de campos férteis e fundos, a aldeia de Salselas teve ainda a sorte de ser beneficiada com uma rede de rega construída a partir da vizinha barragem do Azibo. Em muitos Verões é uma ilha verde no meio do tostado desta parte de Trás-os-Montes. Onde o verde e a água se juntam há vacas de leite e aqui não é excepção. Vou lá muitas vezes e a minha relação com as pessoas já há muito que deixou de ser meramente profissional para ter também uma sólida componente de amizade. Uma paragem no café é obrigatória.
É um local animado, principalmente à noitinha, hora do boletim meteorológico. Depois duma rodada de cumprimentos segue-se normalmente uma rodada de cerveja e nessa altura alguns aproveitam para me sondar sobre uma burra a que cai o pêlo, uma porca que não se levanta[23] ao porco ou um cão que come e não medra e em que eu me ponho a par de notícias da aldeia.
Dessa vez a novidade era a de mais uma exploração de areia. Os terrenos do termo[24] são antigos aluviões pós-glaciários, atravessados hoje por um pequeno riacho afluente do Azibo, e deverá ter existido nesta bacia um lago que terá sucedido ao derreter dos gelos dessas eras. Em qualquer parte, desde os barros das hortas e lameiros até ao cocuruto suave das colinas, aparecem calhaus rolados de naturezas diversas e tamanhos variados. Ora, desde que há uns anos passou a ser um produto muito bem pago pelos empreiteiros de obras, tornou-se rentável explorar a areia siliciosa nestes terrenos. Lava-se a terra com jactos de água que arrastam o barro para bacias a jusante, onde com o tempo crescem caniços e passeiam narcejas ao rebusco. A areia é crivada e separada em lotes e depois vai em camiões para as obras.
De tempos a tempos aparecem compradores de campos para essa actividade e era esse o facto comentado no café. Discutiam-se preços, custos, especulavam-se qualidades deste ou daquele terreno, da areia do mar ou desta do campo. Um homem mais velho, boné posto e faces coradas, deixando a argumentação técnica para os rapazes, virou-se para mim e comentou:
- Senhor doutor, porque é que aqui no termo há tanta areia? Nas outras terras não é assim!
- Bom – disse eu, procurando um modo fácil de explicar - , é que aqui nós estamos no fundo do que foi dantes um lago.
O homem franziu interrogativamente o sobrolho e houve outros circunstantes que se calaram para ouvirem melhor o que eu ia dizer ainda.
- Dantes, há muito tempo, havia aqui um lago como se fosse o que é hoje a albufeira do Azibo. Se, daqui a uns anos, se abrir a barragem, se escoar toda a água e se formos cavar no fundo do que é hoje a albufeira, encontraremos areia. Aqui em Salselas é a mesma coisa. Estamos a cavar no que é o fundo dum lago que existiu. Por isso aparece areia.
O homem tirou o boné e voltou a colocá-lo como que a arranjar espaço para compreender aquela grande informação súbita. Quis mais uma certeza:
- Mas isso, senhor doutor, já foi há muito tempo?...
- Sim – confirmei – foi há já muito tempo.
- Ah!, é que já não é da minha lembrança haver aqui essa água que o senhor doutor diz e nunca lho ouvi ao meu pai…

Sete – Raios de Acção


A vida do pequeno grupo que se forma quando uma consulta é um bocado mais demorada, é muitas vezes o colorido que faz desta profissão uma actividade em que a rotina é uma rara ocorrência. Juntam-se, desde fatalistas irremediáveis a fala-baratos que para tudo têm um palpite mas uns e outros aproveitam a ocasião para colher informações ou ensinamentos verdadeiros. E há ainda aqueles para quem o ser doutor é à partida motivo de desconfiança séria – “os doutores sabem tanto que até nos tiram todo o dinheiro que puderem” – merecendo-lhes crédito todos os profissionais das mezinhas cujos êxitos me habituei a ouvir, repetidos lado a lado com os insucessos dos veterinários, implicitamente os meus...
Ao fim de um ano ou dois fiquei a conhecer não só a maioria dos meus clientes como toda a “entourage” típica de cada um. Nisto há uma significativa diferença com o que se passa com um médico de pessoas: o nosso interlocutor nunca é o doente mas o dono.
É frequente cruzar-me com este último nos locais mais diversos e saber notícias do porco que não engordava, da vaca que tivera uma hipocalcémia[25], do cavalo que mancava ou das ovelhas que andavam tapadas dos narizes.
O sítio privilegiado para ter um eco de todas estas coisas é a feira de Podence[26]. De presença obrigatória e realizada todos os segundos Domingos do mês a sete quilómetros de Macedo, é um dos locais predilectos para essa troca de impressões e não é nada de estranhar que também aí se forme um pequeno círculo de gente numa sessão de perguntas e respostas, terminando toda a assembleia a beber rodadas de vinho ou de cerveja numa das tendas dos feirantes de petiscos.
Para muitos dos meus clientes a vida gira precisamente em torno de três polos: o da sua aldeia com a casa e os campos onde se enraíza, o de Macedo onde vai com fins burocráticos ou ao médico e o da Feira de Podence, para a compra e venda ou para o social.
Uma noite, um macho que estava para nascer de uma burra resistia aos meus esforços e manobras para o pôr em correcta posição de saída.
- Bô, esta já não volta a sulcar as batatas! – ouvia-se uma voz em surdina vinda do grupo de mirones.
A mãe estava visivelmente cansada e arfava quase sem forças, deitada de lado com a cabeça sobre a palha do chão da loja. Pelo silêncio em que caíra a assistência, observando imóvel os meus gestos já repetidos há mais de uma hora sem sucesso, avaliei facilmente a desconfiança em conseguir levar a bom termo aquele parto, tanto mais que, semanas antes, para um caso semelhante, eu recorrera a um colega mais experiente, o Guilherme França, a fim de concluir com êxito o que para mim era já uma situação quase perdida. Todo sujo, a transpirar, respirando mais sonoramente do que a burra, ali estava eu no chão, mão em manobras a tentar endireitar a cabeça do machito já morto.
- Isto já não vai dar nada – ouvia-se a mesma voz – , a um pobre tudo desajuda!
Ainda por cima estava numa aldeia muito perto de Macedo onde os moradores são célebres pelo seu feitio especial, dados a querelas e a ressentimentos.
Mas, conseguindo finalmente alcançar e fixar com um gancho a entreganacha do nascituro, agarrei-a e traccionei a cabeça para cima. Começou a deslizar e, ao fim de uns instantes, já a tinha sobre os membros, em posição direita e correcta.
- Vão ver – voltava a mesma voz – , vai-se a burra e vai-se o dinheiro para pagar a esse doutor.
Levantei-me com alívio. Os pares de olhos fixaram-se em mim duvidosos. Tirei as cordas do balde, despejei bastante lubrificante para as mãos e para dentro do canal obstétrico e amarrei os membros. Pedi a um dos circunstantes que puxasse pelas cordas enquanto ajudava a cabeça e, com uma facilidade insuspeita momentos antes, o macho saiu ao fim de alguns segundos.
Uma excitação de alívio percorreu a todos menos ao dono da burra e a um velhote que acenava com a cabeça e apontava para ela, caída, suada, ofegante e indiferente, sem sinais de recobrar forças. Dei-lhe um estimulante e um analgésico endovenoso e, surpreendentemente para todos, ela levantou a cabeça, esticou as mãos e com um balanço pôs-se em pé. Acto-contínuo sacudiu-se, foi para a manjedoura trincando logo no feno, orelhas levantadas e espertas, olhar asinino e pestanudo.
Então o velhote mais céptico, que todo o tempo tinha estado a desmoralizar, exclamou, desta vez em voz alta, como que uma pequena ode à minha ciência:
- Olhai, rapazes: não vos deixeis morrer estúpidos! Não vivais aqui sem ir conhecer mundo! Fazei como o senhor doutor que também já por lá andou a aprender para saber! Não vos deixeis morrer aqui sem conhecer mundo: ide até Macedo! Ide até Podence!

Oito – Um Enigma


Numa noite de chuva de Inverno em que o vento fustigava os ramos nus do velho castanheiro do quintal e se fazia ouvir por toda a casa, bateram à porta de vidro da varandinha. Levantei-me de ao pé da lareira a adivinhar incómodos e nada me faria supor então a extraordinária aventura que iria viver nas horas mais próximas.
Dois homens vestidos de capotes antigos que pingavam, depois de confirmarem que eu era a pessoa que procuravam, explicaram-me de um modo polido e extremamente correcto que precisavam, sem demora, da minha ida à aldeia para fazer um parto a uma vaca.
Entraram comigo no jeep e encaminhámo-nos para a serra no meio do vendaval. Pouco depois de Edroso, já a subir para Bousende, disseram-me para enveredar à direita para um íngreme estradão ladeado de carvalhos seculares. Começou aí a minha surpresa já que, conhecendo minuciosamente toda a região, achava impossível ignorar aquele trajecto para algures e nem me lembrava de alguma vez me ter dado conta daquela derivação.
- Como é que foram para Macedo?
- Fomos a pé – responderam-me com naturalidade.
- Mas, com uma noite destas, porque é que não telefonaram?
- Não temos lá telefone.
Por momentos pensei “estou a cair numa armadilha” mas, como se me adivinhassem os receios, tranquilizaram-me:
- O seu Pai era muito nosso amigo…
- E ainda conhecemos o seu Avô.
- Afinal, para que terra estamos a ir?
- Moimenta. O seu Pai nunca lhe falou?
- Não, e nem sequer sabia haver para aqui uma Moimenta. É do concelho de Bragança?
- Nós nem somos de Bragança nem de Macedo…
De súbito o caminho deixou de ser em terra e passou a ser empedrado mas como eu nunca vira: lajes grandes de granito um pouco desniveladas que me obrigaram a abrandar para evitar solavancos. Passámos uma ponte que tinha um curioso marco redondo a meio de uma das guardas e instantes depois encontrávamo-nos no largo de uma aldeia mergulhada em vento, chuva e escuridão.
- Senhor doutor, faça favor de parar além naquele cabanal. Está vazio para poder meter lá o carro.
A arquitectura geral do conjunto não era fruto do acaso mas estruturada, curiosa, até, colunas redondas de granito suportando grossas traves que davam vão a um telhado imenso, prolongado em passagens para várias casas que se podiam alcançar a salvo das bátegas. Um candeeiro de archote pendendo de um vetusto cadeado no meio do negrume ardia espesso sob um capuz de latão, espalhando uma claridade feérica pelas paredes e dando às portadas e janelas, que se recortavam na pedra, o aspecto de aparições intermitentes de fantasmas. O chão era negro e exalava um cheiro forte e frio de limalha de ferro. Apetrechos de carros de bois estavam encostados pelas paredes e uma enorme forja, com um fole de tamanho capaz de libertar ventanias, misturava ao ar a essência ácida de carvão apagado.
De uma das portas vinha um vagido entrecortado que logo dava a entender onde se encontrava a minha doente. O encaminhar dos nossos passos provocou uma restolhada de palha ao chegar à ombreira e duas pessoas, que percebi serem mulheres, levantaram-se de um canto. A claridade era espalhada por uma candeia de azeite e a vaca estava de facto em dificuldades, estendida em decúbito lateral com contracções inconsequentes.
- Então boa noite!
- Boa noute nos dê Deus! – responderam-me compondo os xailes e o lenço preto na cabeça.
- Nós já lá metemos a mão e tentámos tirar o vitelo mas não dá para o pormos em posição.
Pude confirmá-lo. O pequeno animal ainda estava vivo.
Após as perguntas e as explicações do costume todos concordámos em que o melhor era optar por uma cesariana. Puseram-se logo de acordo e demonstraram uma tão grande confiança em mim que até me surpreendeu. Muito animado, foi em menos de uma hora que um vitelinho de orelhas pandas e largas se apresentou cá fora. Enquanto durou a intervenção, o vento e a chuva calaram-se e um frio, que o tempo a passar foi acentuando e que entrava pelas frinchas da porta, fez-me ficar a tremer quando me endireitei após ter dado o último ponto.
E não foi sem surpresa deparar-me com um nevão já grande quando se abriu a porta. Com a mansidão, a tristeza e o encanto descritos por Augusto Gil, a neve caía ali como mais um elemento de uma revelação, naquela noite e naquele instante. Arrumei todo o material no jeep por entre duas excitações: a de um sucesso clínico e a da neve.
Fomos para a cozinha. Eram cerca das três da manhã. O frio desapareceu ao fechar-se a grossa porta de castanho.
Enquanto as mulheres remexiam em coisas do lado mais escuro, nós ficámos num pequeno círculo bruxuleante de um lume quente.
Encostado a um braço do escano estava um pau ferrado de marmeleiro em que peguei e que tinha uma ponta muito bonita com bronze encastoado em espiral e um cravo de fixação que era uma cabeça esculpida e já gasta de um javali. Elogiei longamente aquele trabalho de artista, tanto mais que o artesão era da casa e me explicou com satisfação alguns detalhes daquela manufactura.   
Um cão felpudo e grande dormitava debaixo do escano encostado aos meus pés. Uma preguiçadeira[27] desceu diante de nós com uma toalha de linho cru que uma das mulheres estendeu e onde outra pôs um pão maciço de côdea aromática, uma malga de caldo rescendente e um prato com dois salpicões que só de vê-los se aplacava a fraqueza e afugentava a fome. Mas o que me assombrou foram os copos!
Três copos de vidro fumado e de um desenho extraordinário despertaram qualquer coisa de misteriosamente antigo no arquivo mental de todos os museus que eu já vira. Eram todos diferentes e peguei no meu observando-o cheio de curiosidade. Rebordava-o um círculo de cachos de uvas e sarmentos suportado por bacantes de braços estendidos, como se colhessem os bagos dessa latada cheia de movimento. Que perfeição e que ritmo naquela pequena escultura!
Quando fiz tenção de pegar noutro copo, disse um dos homens:
- Já o seu Pai e o seu Avô beberam por esse copo e ambos também o estiveram a ver como o senhor doutor agora fez!
- Não lhe podemos dar nenhum. Já só nos restam esses três.
- Mas ao seu Avô demos um prato…
- Um prato fundo, de cor azul…
-Ah! – disse eu – , sei perfeitamente qual é esse prato!
As mulheres aproximaram-se e manifestaram satisfação por saberem que ainda o prato estava, e está, intacto e na nossa sala de visitas.
- O seu Avô, que era médico, veio cá muitas vezes. Vinha a cavalo com um grande capote que o cobria a ele e à maleta.
- A mim tratou-me desta perna que se me tinha aberto duma machadada.
- Estou a vê-lo além, em pé, a escolher ervas daquele armário que é onde guardamos os chás e outros remédios.
Considerei o armário, de dois andares com ferragens de bronze e almofadas lisas, uma anacrónica preciosidade. E ao ver também um tocheiro que ao lado pendurava uma lâmpada de azeite, dei por mim a pensar, de repente, que nada daquilo tinha relação fácil com o Trás-os-Montes que eu tão bem conheço. Uma pequena incerteza aliada a uma não menor insegurança instalou-se-me interiormente. Ao mesmo tempo saboreava o excelente salpicão, bebia o vinho suavíssimo e cortava mais uma fatia rangente daquele pão centeio de côdea enfarinhada.
A conversa continuou como um ribeiro de Inverno em que cada cachão, cada fraga vencida, cada açude galgado era para mim uma revelação e um crescendo de espanto. A certa altura pareceu-me ouvir que uma das mulheres contava um episódio qualquer em que estivera a nossa trisavó D. Josefa quando esta mandara os criados contar, um a um, todos os castanheiros que a casa tinha na serra. Mas essa trisavó morrera em 1904!
Como aquele copo era tão bom para beber aquele vinho tão bom também! As histórias foram ficando dentro de minha memória como as velhas mobílias que se guardam no sótão: em desarrumação completa. E falavam-me de coisas extraordinárias e para mim inauditas: do rei D. João V prazenteiro a uma outra antepassada, de castelhanos corridos por outro, eu sei lá! E num momento mais calmo, o lume com chama mais branda, o copo descendo a um ritmo mais lento, um dos homens disse gravemente:
- É que, senhor doutor, nós já não temos idade. Nós vivemos aqui na serra desde o tempo em que as legiões aqui vieram por ouro e estanho. Nós somos Romanos que o destino se esqueceu para trás!
E eu, para meu grande espanto, disse com toda a naturalidade, considerando as brasas e sopesando o copo na mão, esta coisa bárbara:
- Ah, pois claro, então não admira que tenham conhecido a todos lá em casa. Mais do que eu!
Com uma familiaridade que já não me surpreendeu, uma das mulheres disse chamar-se Lígia e, a outra, Dulce, e que o meu Pai lhes dissera que haveria de pôr aqueles nomes a filhas, se as tivesse. Que já o Avô tinha posto a uma. Na minha cabeça já tão leve não fulgiu nem uma centelha de espanto pela coincidência daqueles nomes serem o de duas das minhas irmãs e de uma minha tia!
Ainda bebemos mais uns copos e comemos mais qualquer coisa.
Alguma claridade entrava já pela janela. Saímos. Não caíam flocos mas o céu estava fluorescente de neve. O vento, que estalava, deu-me a lucidez necessária para trazer o jeep de volta a casa, onde entrei com a cabeça zumbindo e repetindo mentalmente numa euforia sem nexo “alea jacta est, audaces fortuna juvat”.
Acordei normalmente sem sobressaltos nem dores de cabeça um pouco mais tarde do que o normal, cerca das nove horas. Que sonho estranho tivera essa noite! Cesarianas, Romanos, o Pai e o Avô, a Lígia e a Dulce, que coisa!, pensei enquanto fazia a barba.
- Correu bem o parto? – perguntou da cama a Mariana.
Parei com a lâmina olhando o espelho e considerando as incríveis implicações de responder àquela pergunta. Decidi-me por uma resposta neutra:
- Sim. Era um vitelo.
Mas fiquei confuso. Afinal não tinha sido sonho? Bah!, o melhor era passar adiante. Teria sido uma cesariana lá para Edroso e com alguns copos que bebera confundia os detalhes e o sonho.
Pus o jeep a trabalhar e liguei o limpa-pára-brisas para tirar a neve que caía outra vez com intensidade. Ao virar-me para fazer a marcha-atrás vi, colocado em cima do material de clínica, um pau de marmeleiro ferrado com ponta de bronze e um cravo que era a cabeça já gasta de um javali. No ferro havia umas letras: MDCC.[28]

Nove – Dois êxitos do acaso?


Nas vésperas do concurso de gado uma vaca adoecera. Logo uma das melhores vacas, das que poderiam disputar o primeiro prémio. Mesmo assim se via que era um belíssimo animal, apesar do andar vagaroso e aspecto abatido com que se dirigia para o tronco onde o dono a prendeu pelos cornos ao ferro da frente. Não comia desde a véspera. Tinha parido um mês e meio antes. O homem lamentava-se. Que, quanto melhor tratava os animais, mais estes adoeciam. Que, quanto mais empenho tinha num, pior era. Só comia do melhor e, quanto a ração, até mandara vir uma saca da mais cara. “Sempre faz o animal parecer com melhor aspecto!”.
Não tinha febre mas a forma como apertara a comissura do ânus contra o termómetro não era normal. Reagiu bastante à introdução do braço e ao tirá-lo constatei que as escassas fezes no recto eram duras e parecidas com pequenos ovos cobertos de muco. Era grave. Peguei no estetoscópio e fui-a auscultando.
Entretanto tinham aparecido três homens a assistir e um deles perguntou-me:
- O senhor doutor ainda demora muito?
O homem segurava uma grande saca de papelão, das que se usam para farinhas e rações, apertada com as mãos como que para não deixar sair de lá qualquer coisa e com volume apenas no fundo.
- O senhor doutor está a trabalhar, não vê? – respondeu por mim o dono da vaca.
- Mas é que o pão esfria…
Ficou tudo em silêncio à espera que eu acabasse. Nesse instante eu punha a membrana do estetoscópio a meia altura do flanco direito e se não fosse o ferro do tronco teria apanhado uma valente patada. Ao percutir com os dedos, ouvia-se um barulho como quem bate numa lata de coca-cola vazia. Não havia dúvida. Era muito raro com uma mirandesa mas a vaca estava com um desvio do abomaso à direita. Expliquei-me muito bem, pus a coisa muito cinzenta, disse mesmo que se a vaca fosse minha iria para o matadouro antes de ter febre, mostrei dúvidas no êxito de qualquer tratamento tanto mais que já vira morrer algumas assim, mesmo com cirurgia.
O pequeno grupo escutou-me e o dono, emocionado, mostrava-se perfeitamente ciente mas insistia em tratar a vaca.
- Ó senhor doutor, se fosse com outro ia já para o matadouro mas assim não, quero que ma trate, o senhor doutor faz milagres!
- Caramba! Não faço nada, olhe que o melhor…
- …até me parece que só de olhar para ela e de ma escutar já está melhor! O olho dela já não é o mesmo!
- Tem o olhar mais vivo! – dizia um.
- Quando veio para aqui estava mais triste! – acrescentava outro.
A vaca nada tinha de alegre nem de olho vivo. Estava era já farta de se sentir presa e remexia-se no estreito espaço do tronco, incomodada também porque entretanto chegara uma novilha para prender e sentiam ambas o cheiro estranho uma da outra.
Mas pronto. Lá acedi e usei três ou quatro drogas potentes que se complementassem e potenciassem e expliquei ao dono a maneira de dar mais uma de seis em seis horas, injectável, que requeria uma pontualidade o mais exacta possível. Demos-lhe ainda uma garrafada[29] com um litro de silicone, estricnina, tártaro emético e citrato de sódio.
Tirou-se do tronco, avançou para a loja e, para grande surpresa, sem grande vontade mas farejando-o bem, meteu à boca um troço de feno. Os olhos do homem diziam mais do que tudo:
- Está a ver, senhor doutor, está a ver?
Entretanto os outros tinham ficado no tronco a prender a tal novilha. Tinha uns cornos um tanto ganchosos, palmo e meio, a crescer virados para a frente.
- Que é que lhe vão fazer? – perguntei curioso.
Um murmúrio circulou pelo pequeno grupo e o dono exclamou:
- Aqui com o senhor doutor não há problemas! Ele é um Portugal Velho que não tem medo que a freguesia lhe fuja!
Surpreendido com aquela exclamação, fiquei a saber que o homem do saco de cartão era um ferrador.
Os ferradores, mais do que a pura acepção que o nome indica, são homens que gozam da fama de tratar animais. A sua actividade é meio clandestina e são alvo de uma perseguição de mentalidade pelos meus colegas menos tolerantes. A par de grandes asneiras também conseguem alguns êxitos, sobretudo se em tempos foram ajudantes de veterinário e daí colheram algumas luzes empíricas. Não é raro chegar a um animal para ser tratado e este já ter sido medicado por um ferrador. Mesmo ao arrepio de alguma deontologia, que neste caso manda que se recuse o tratamento ao bicho, o que acho errado, tenho como mais importante conseguir concluir com sucesso uma tarefa já iniciada, bem ou mal, tendo em vista que há que minimizar os prejuízos aos donos. Até já cheguei a mandar recados a este e àquele para que da próxima vez façam assim ou assado quando adivinho a asneira feita e, no caso das capações aos leitões e porcas, consegui melhorar fortemente as condições em que ficavam as vítimas quando dei instruções aos práticos no sentido de acrescentarem uma injecção de antibiótico no final das intervenções. Estabeleci com isso algum clima de mútua colaboração que foi vantajosa para todos.
Fiquei ali, por isso, a ver o que se ia passar. E, se não tivesse visto, não acreditava.
Tirou dois pães de quilo da saca e espetou cada um em seu corno da novilha. Ficou cómica com aqueles dois pães de trigo de cada lado como se fossem dois adereços de vaidade feminina. Os pães fumegavam ainda, acabados de cozer. Quando a novilha começou a sentir o calor no âmago dos cornos mexeu-se vigorosamente. Seguraram-na com dois dedos no focinho, tiraram-lhe os pães e com as mãos entortaram-lhe os cornos para o lado e para cima de modo a que ficassem com a curvatura tradicional da raça mirandesa. Fiquei boquiaberto!
No dia seguinte, logo de manhã, tal como combinara com o proprietário da vaca, o telefone tocou.
- Então, deu-lhe as injecções?
- Dei sim, senhor doutor.
- E ela comeu?
- Comeu sim, até já a vi remoer!
- E estercou?
- Borrou a loja toda!
Safou-se a vaca. Ficou entre os primeiros lugares no concurso de Macedo.

Dez – Visitas e Visitantes  


Não há rotina na vida de campo de um veterinário. Além das surpresas a salpicar, há também os aborrecimentos que enervam, a interminável luta contra a estupidez, o esforço constante para vencer a desconfiança ou conseguir calar o atrevimento da ignorância. Vivemos, de facto, “num mundo infestado de demónios” sempre presentes num dia a dia em que a ciência se tenta impor mas em que tal é difícil e será sempre difícil. Quando uma doença se declara, muitas vêzes o pior não é diagnosticá-la nem dar-lhe solução – é lidar com o dono do animal. Há-os dificílimos. E há-os terrivelmente marotos – inclusive para eles próprios! Nessas alturas, quando aparece mais um pela enésima vez “ó senhor doutor ando lá com as cabras a amover[30] e foi desde que lhe deram as vacinas” ou então “diz o médico que estou com a brucelose, para o senhor doutor me ir lá ver o gado, e foi desde que lhe tiraram o sangue que elas ficaram doentes”, nessas alturas o melhor é desopilar, nem responder, pegar no carro e partir para ocupar o tempo noutra coisa – porque é perdê-lo a tentar explicar ao pastor que está errado. Ele vai ficar na dele e nós vamos ficar aborrecidos para o resto do dia.
É muito melhor ocupar o tempo com um visitante – e aparecem muitos. Os mais frequentes são os delegados de propaganda médica. Muito obsequiosos, muito solícitos, muito penteados, muito perfumados, muito engravatados, muito informados, muito bem-falantes. Cada um traz sempre o melhor produto, o mais eficaz, o mais barato, o mais conveniente. E trazem presentes. Agendas, calendários, cassettes, relógios, gravatas, blocos, porta-chaves, cinzeiros, garrafas, ingredientes de um marketing virado para uma insinuação que quase nem disfarça a fronteira entre a amabilidade e o suborno. Alguns vêm regularmente. Outros, só quando lhes cheira que estamos para fazer compras. Há excelentes profissionais, competentes no seu ramo de tal modo que perceberam a partir de quando se risca o vidro que separa o bom relacionamento pessoal com o estrito mundo dos negócios. Para alguns esse vidro é sólido e transparente, respeitam o nosso modo de ver as coisas, de que há muitos valores acima dos cifrões e de que é possível fazer perdurar um negócio sustentável que acabe por dar mais lucro: a eles porque conquistam um amigo e a nós porque ficamos com um fornecedor certo para um produto certo que satisfaça as necessidades da bicharada.
Não são apenas esses os nossos visitantes. Além dos delegados comerciais há inspectores, colegas de laboratórios, funcionários do Ministério da Agricultura, amigos de longe, gentes que na sua maioria são pouco experientes desta zona comprimida entre o vale cavado do Douro e as sobras a sul dos Montes de León. Há, também, estrangeiros, uma lufada de ar fresco, exotismo urbi et orbi qb. É óptimo recebê-los com o nosso alicerce gastronómico a compensar as energias gastas na correria, na altitude, no ar puro. Um amigo nosso, da Bayer, conhecia bem os meandros dos nossos roteiros: sopa seca ou de espargos, posta de mirandês, alheira da Terra Fria, perdizes com presunto de cebolada, tudo coisas que o colesterol não conhece, derretíveis com um branco picante a temperar um pudim de ovos no tempo das neves ou doces de amêndoas para tirar o sabor a salgado… o que eu sei é que ele quando cá vinha preparava sempre de antemão uma estadia nas termas do Gerês. Se seria para recuperar do itinerário ou preparar nova arremetida, nunca o soube até hoje.
Além do alimento do corpo também por cá há emoções que extravasam para a alma. Uma tarde íamos ver umas ovelhas a Talhas, um pedaço de Alentejo que Deus deixou cair entre os dedos e ficou ao pé do Sabor, e parávamos aqui e ali. Para ver umas cegonhas em Limãos, apreciar a geologia e a flora do Monte Morais, no miradouro a ver a paisagem. E mesmo assim, ao continuar, o Miguel Fevereiro intimava: “Ó Manel, pára aí! Ó Teresa, já viu isto?! Não se vê uma casa! Que maravilha!”. Via-se o horizonte grande, ondulado, mais do que com a dimensão dos quilómetros – com a surpresa e imensidão de quem descobre um mundo novo!
Uma noite recebemos um telefonema da Alex a dizer que ela e o Mike nos vinham ver. O Mike, algo anglo-luso pelo casamento e porque é um apreciador culto dos nossos vinhos portugueses, queria conhecer a região e andou comigo nas consultas. Estupefação total! Sobretudo pela enormidade da nossa pequenez, pela obstinação encontrada nesta sobrevivência pobre. Tínhamos ido tratar de um porco e entendíamo-nos em inglês. Surpreendido com o sítio, perguntou-me, ao ver-me saltar por cima de umas tábuas mal-amanhadas que limitavam o espaço vital do bicho, onde estavam os outros porcos. Quais outros?! Naquela aldeia, “one family, one pig”. Um fleugmático “oh!” fez-me imediatamente realizar o que o nosso primo não exprimiu. Ainda hoje penso como deve ter sido nítida a imagem que o impressionou. E não podia ter sido mais eloquente. Desde que foi esculpido o porco da Torre de D. Chama até hoje, o salto não é muito grande para todos os que continuam no seu dia-a-dia a não conseguir mais do que o estritamente necessário para a sobrevivência. Quando regressaram a Inglaterra mandaram-me um livro que foi mais do que um presente – um gesto de solidariedade! O “Vet in a spin”, de James Herriot.
Alguns pormenores são a chave de muitas experiências inesquecíveis como foi a de um meu amigo, amante como eu de histórias do arco-da-velha, quando fomos à Sobreda. É uma aldeia quase minúscula (quase, porque ao lado lhe fica Paradinha de Besteiros que é mais minúscula ainda) que se aguenta por misterioso milagre no meio de um chão avaro até ao heroísmo como se por castigo a tivessem feito construir no meio do Monte Morais, agreste e seco até ao tutano. Eu ia ver uma vaca mirandesa que não comia. “Será da boca-rasa?[31] Nós já lha abrimos mas não vimos nada”. Disfarçadamente fui-me aproximando de um poço coberto que ali há.
Os poços cobertos já de si são interessantes, escavação curiosa cujas paredes continuam chão acima por mais metro e meio e levam um capuz de xisto a modos de pala de boné de tal maneira que se espreita lá para dentro de pé, sob a pala. O meu amigo considerava o poço, tecia conjecturas, mas eu olhava para o lado, para uma pia de granito cheia de água, morto para que ele a notasse. Quando a viu, até deu um pulo:
- Mas, e isto?! – e deu dois passos em volta, boca aberta de espanto.
É que aquelas vacas tinham o privilégio de beber água num túmulo medieval. Dos ossos do fidalgo que lá repousou não sobra sequer uma falange mas o caixão de pedra lá está e a dar a vivos o que já de nada serviria a mortos. Como se houvesse ali um sortilégio, já ao lusco-fusco íntimo do adormecer do sol, quando nos vínhamos embora, uma rapina passou rente ao capot do UMM e caçou um rato na berma da estrada.
Aconteceu o mesmo em Corujas com uma águia filando uma cobra que se contorcia e o meu sobrinho Miguel extasiado:
- Lindo! Lindo!...
Há visitas que ficam para antologia. Uma manhã telefonou um amigo a pedir-nos para usar a sala grande da associação para reunir uma delegação de cooperativas com um Secretário de Estado. Tínhamos então poucas cadeiras pelo que ao arrumar a sala tivemos de mobilizar todas as disponíveis para ficarem à volta de uma mesa grande e eu pus uma que estava meia perneta, com um pé quase dessoldado, encostada ao canto menos provável de alguém se sentar. Os visitantes entraram, instalaram-se e, qual não foi o meu espanto logo transformado em angústia, precisamente naquela que eu até tinha posto no lugar mais discreto, contra a parede, tentando com que fosse a última a ser usada – nela se sentou o Secretário de Estado! Foi uma hora (o tempo da reunião) de hesitações. O senhor percebeu que havia algo de anormal com a cadeira mas, ou por cavalheirismo ou por que temesse ter sido o causador da avaria, não se descoseu. Equilibrou-se o melhor que pôde, de vez em quando encostava as costas à parede mas sempre muito disfarçado, discretamente, muito natural, nada de denunciar a falha. Agora que tudo passou tem piada relembrá-lo mas na altura foi um tanto dramático viver aquela situação. A partir daquele dia passei a ter outra consideração por aquele governante que, voluntária ou involuntariamente, não nos manchou a reputação de bem receber.
Visitas verdadeiramente especiais são-no as dos jornalistas, gente algo mágica que de pequenos nadas faz parecer o tudo. Aparecem tão imprevistos como uma trovoada e se alguns não passam de um castelo que ameaça mas não se resolve, outros são autênticos raios que fulminam o assunto como se fosse a um carvalho roble numa tormenta de Junho: aberto de alto a baixo, a arder e a fumegar. Se alguns primam pela simpatia, outros cultivam de tal modo um artificialismo intelectual que repulsa, pela arrogância e convencimento. Se a alguns interessa a notícia e o tema, para outros está primeiro a consequência de difundir um prisma se pela face se pela aresta. No fim de uns contactos, de uma troca de informações, há sempre espaço para alguma amizade e âncoras para o futuro, telefonemas a saber novidades, interesses sinceros que se reatam com um aperto de mão numa segunda vinda ou nalgum encontro fortuito numa conferência ou congresso.
Alguns são profundos, estudam os assuntos, confirmam-nos, inteiram-se de pormenores antes de lançarem ao teclado o seu ganha-pão. Outros precipitam-se. Olham o rebanho e não vêem as ovelhas, disparam ao bando.
Certo dia fizemos uma reunião de colegas da região para debatermos assuntos de sanidade animal e em especial o controlo da peste suína africana, doença vírica que é o terror dos donos de porcos, incurável, difícil de erradicar e que para os veterinários é lendária de fracassos e vicissitudes. Controlar uma doença é uma coisa para a qual bastam meios, vontades e know-how mas erradicar é uma outra bem diferente, ultrapassando em muito as melhores intenções e toda uma panóplia de possibilidades. Sobretudo com porcos e particularmente com esta peste. Contudo, com a disposição com que estávamos, seria possível controlar o nosso efectivo num mês. Telefonei a um amigo meu a dar conhecimento público da reunião. No dia seguinte apareceu no tablide: “Peste suína erradicada num mês” e, em letra miúda, “quem o afirma é um médico-veterinário de Macedo de Cavaleiros”, fulano de tal,… fiquei aterrado!!! É claro que o telefone não parou durante uns dias: “Manel, como é que consegues essa proeza de erradicares a peste num mês?!”.
O máximo para o pagode é aparecer-se na televisão. Uma vez fui porta-voz do grupo. Depois de uma reunião importante fui a casa num ápice fazer a barba (o Luís dizia que era importante porque os pêlos notam-se muito na TV a cores e eu não queria ter o aspecto do Arafat), pôr um blazer e pelo caminho preparei duas ou três frases sobre o assunto a modos de cocktails molotov. Quando voltei já a equipa me aguardava, a jornalista pediu-me que estivesse o mais descontraído possível e inteirou-se minimamente do conteúdo da nossa mensagem para poder fazer perguntas. Todos me viram prestar as declarações, colocados atrás da câmara para não projectarem sombras, e foram-me acenando que sim enquanto eu respondia, nem dei pelo tempo a passar. No fim, o Raimundo Maurício e o Luís Feio até me deram os parabéns. O pior foi depois a edição do telejornal! O editor devia andar preocupado com uma coisa bem diferente da nossa e assim, em vez de eu aparecer com ar veemente a defender os nossos princípios – sorriu a minha cara num momento em que eu fazia ironia com um assunto a título de exemplo e que era meramente marginal. Lidar com quem trata da informação tem que se lhe diga!
E há equívocos tremendos. Ao fim de alguns anos de trabalho na associação havia já resultados do esforço feito ao longo desses anos. Queríamos dar a conhecer às pessoas em geral uma consequência prática do dinheiro que gastáramos. A brucelose baixara, a tuberculose desaparecera, a peripneumonia estava contida a meia dúzia de focos, o rendimento dos lavradores aumentara. Preparei um memorandum com uns números, aí vai fax para dar à estampa. Oh, infeliz ideia! Uns dias antes tinha havido uns casos duma doença no Douro Litoral, muito difundidos pelas coberturas noticiosas que durante dias bateram no assunto como em claras em castelo. De um jornal telefonaram-me a pedir um esclarecimento adicional, o artigo estava já composto. Pedi que mo lessem pelo telefone. Ó premunição bendita! Ó intuição certeira! Todo o artigo, da primeira à última linha, parecia uma premeditada manipulação contra nós – e não o era porque eu conhecia muito bem o autor, pessoa honesta e bem intencionada. A peça falava dos casos mórbidos positivos registados e omitia os ultrapassados; no valor dos prejuízos em vez dos benefícios; enfim, fazia pairar uma bruma de pestilência onde nós, precisamente, abríramos uma brecha airosa de espairecimento! Felizmente consegui desvalorizar a importância da nossa nota informativa e, assim, adiar qualquer publicação, fazer esquecer de momento o assunto.
Uma das coincidências mais curiosas que tive na vida foi com um jornalista, o Vítor Cunha. De vez em quando, quando havia alguma novidade palpitante de que eu pudesse ter alguma dica, telefonava-me para o telemóvel, então um matacão de quatro quilos!, um Siemens da TMN, a saber que bocas corriam pelos bastidores. Ficávamos uns minutos na conversa e apreciava bastante aqueles instantes em que eu, de pés assentes num pequeno lugarejo de Trás-os-Montes, ficava preso ao outro lado do fio, decerto numa redacção fervilhante na capital. Nunca escondi a ninguém este meu contacto e de tal modo que me trouxe injustamente alguns dissabores com pessoas a quem foi dito, mentirosamente, ter sido eu a expô-las nos jornais. Mas adiante. A coincidência a que me quero referir esteve em que numa vez em que o Vítor me ligou eu estava perto de Vale de Prados com o UMM completamente atascado, diferenciais enterrados, água por cima das jantes, à espera de um reboque. Até lho contei e rimos com o assunto. Depois passaram-se meses e numa tarde em que meti por um corta-mato voltei a ficar completamente na lama, as portas nem podiam abrir, estava já um tractor com as correntes preparado para me içar do atoleiro quando o telefone do jeep tocou. Era o Vítor!

Onze – As Tábuas


Chuva miudinha irritante, manhã irritante também na Acriga com gente a chegar com assuntos igualmente irritantes. Se há dias em que não apetece sair de debaixo de telha são os de chuva miudinha – mas não aquele dia. Estava impaciente para que viesse uma chamada – e veio. Um carneiro a que tinham inchado os testículos: “Um grão nem por isso mas o outro, senhor doutor, está quase do tamanho dum pão!”.
Lá fomos no meu carrito da altura, um Panda 750 CL a gasolina de que tenho saudades.
Ao chegar à aldeia fui directo à casa, atravessando uma rua de empedrado incerto e derrapando ligeiramente ao descrever uma pequena curva por causa de um monte de entulho e estrume que se acumulava contra uma parede. Parei ao lado. Ao abrir a porta senti aquele frio suficiente para se chamar Inverno. Chovia pouco mas inabalavelmente. Sabia que me tinha de dirigir por debaixo de um cabanal para ter acesso ao quintal dos que me esperavam mas por uma incrível nesga que uma fracção de segundo proporcionou, sob a aba do capuz do meu impermeável vislumbrei uma tábua que saía do monte de entulho e estrume. Era escura mas tinha numas letras em grafia antiga: “S. Vicente”. Tratámos do carneiro, claro. Mas não abalei dali sem libertar aquela tábua. Havia mais! Que tristeza e desolação vê-las ali assim sem glória nenhuma!
- Estavam a servir de forro à cozinha. Pusemos telhado novo e agora estão praí!
Fez-se um rebusco. Faltavam umas que tinham ido para destino incerto – acender o lume, soube-o depois. Mas as que ali estavam vieram para Macedo naquele momento. Atámo-las na capota do Pandinha que ficou cómico, bagageira aberta, tejadilho avançado, vidros também abertos, confusão de baraços de fardos a prendê-las, manobras cuidadosas e vagar até casa. Mangueirada no quintal para lhes tirar a bosta agarrada e surgiu então: um braço do S. Vicente com o corvo a velar, um pedaço da Santa Catarina, um Santo de crucifixo que não sabemos quem é, uma Santa chorosa que é a tristeza estampada! Estão agora todas a seco e a salvo, esperando nós que, um dia, aqueles que eles representam, desde os inícios do século dezoito, também nos salvem da desolação e da tristeza.
Contei depois que as tinha posto na sala e que gostava muito delas. Os ex-proprietários gostaram de o saber mas ficaram tristes por terem desperdiçado algumas:
- Se nós soubéssemos que o senhor doutor tinha empenho nelas, tínhamo-las guardado! P’ra que é que as queríamos? Umas cousas tão velhas!...
Dias depois vieram entregar-me mais duas.
- Vêm já limpas para o senhor doutor não ter o trabalho!
Mirei e remirei as duas tábuas, nervuras da madeira escovadas e alvas, sem sombra de tinta nem de um lado nem de outro.
- Se aparecerem mais, mandem-mas como estiverem, está bem? Eu limpo-as, sempre é um entretém…

Doze – Um Porco



Os figos são excelentes no Brinço. Amadurecem num Verão que seca o planalto e onde o verde grande das parras das figueiras parece uma pincelada áspera de brocha de encontro à terra, ao xisto e ao amarelo torrado. Em nossa casa são lendários há gerações e ainda hoje salta de relação de bens em relação de bens um artigo de matriz que reza ser “uma figueira, sita no Vale da Pássara”. Todos os Outonos uma mulher vinha de lá entregar-nos a casa uma saquinha de linho recheada de figos secos enfarinhados. Eram deliciosos, comidos pelo frio do Inverno adiante, trincados com uma noz a que se juntava o cheiro forte de uma aguardente de alquitarra ou de uma jeropiga mais doce.
Há-os aos montes e todos os comem. Os miúdos colhem-nos da árvore depois de lhe avaliarem a madureza com dois dedos e as mulheres apanham-nos do chão para dar aos porcos. Aquele porco tinha comido mesmo muitos.
- Ele este ano há tantos, senhor doutor! Ele até os tem comido mesmo bem. Hoje é que lhe deu para isto. Nem sequer veio à pia!
O porco, reboludo e focinho enfronhado na palha, gemeu ao aproximar-me e ao bater-lhe a luz intensa que entrava pela porta. Levantou-se quando lhe dei uma pancada ligeira no lombo mas logo voltou a deixar-se cair, cambaleando e deitando-se de lado com um suspiro fundo. Deu uma baforada quando eu me inclinava para o examinar melhor mas… mas… aquele hálito era inconfundível!
- Onde é que tem os figos?
Era uma adega fresca e vasta, chão de cimento, cheiro agradável e doce. Volitavam meia dúzia de abelhas em volta das pirâmides de figos que se erguiam de cada um de meia dúzia de baldes. Esvaziei um no chão. De imediato um cheiro de piso de lagar nos envolveu. A compressão, o calor e o açúcar dos sícones tinham feito tudo – o álcool da fermentação recente tinha feito o resto e chegava agora aos nossos narizes.
- Olhe que o porco só precisa de água e que o deixem dormir. Não lhe volte a dar destes figos!
Valente bebedeira, a daquele porco!

Treze – Um Gado


Mas há casos em que os figos são dramáticos como numa manhã de Domingo em que a nossa porta foi batida freneticamente. Um rapaz aflito e ofegante mal se explicava para que eu fosse depressa a Castelãos.
- O gado está lá todo como morto! Venha depressa, senhor doutor!
E estava. Quarenta e sete ovelhas mal se levantavam, inchadas e pernas flectidas, movimentos incoordenados e cabeças pendentes, quase inertes.
- Ó senhor doutor, senhor doutor! Deus nos acuda!
Choravam todos. Os garotos e as ovelhas, na véspera, tinham comido figos – e muitos!
Começámos a dar as injecções. Passei as seringas das intramusculares ao pastor e eu fui aplicando, uma a uma, as endovenosas. As ovelhas caíam para trás sob o efeito do medicamento no sistema nervoso central, pedalavam e, instantes depois, rompiam numa diarreia redentora. Já tínhamos tratado umas vinte quando as primeiras começaram a levantar-se e a mulher, sob ordens minhas, fungando com um lenço às riscas laranja a que limpava as lágrimas, ia-as encaminhando para umas manjedouras improvisadas onde se pusera feno. Primeiro, hesitante, depois mais decidida, uma deu algumas trincadelas, logo seguida de outra e depois outra e depois outra.
Como cresceu a alma daquela gente! Já se riam, louvavam os remédios, refaziam promessas ao S. Zenão.
Não morreu nenhuma. O mesmo não sucedeu nos Olmos onde de quinze tratadas foi preciso abrir uma cova para enterrar nove. Aí, acudira-se tarde demais.

Catorze – Dois Porcos


Numa dessas tardes abafadas de Julho em que a poeira nos persegue e a pacatez duma aldeia se enche dum calor de canícula, parei sob a sombra duvidosa duma oliveira à beira da qual, semidespidas, brincavam duas crianças.
- Boa tarde, meninos. Dizem-me onde fica a casa da senhora Ana?
Olharam-me de pálpebras semicerradas por causa do sol e, ainda antes de responderem, uma voz bradou duma porta onde acenava um braço:
- É aqui, é aqui!
Era ali. Uma casa, toda ainda em tijolos vermelhos sem reboco, a que a uma das paredes se agarravam videiras numa confusão de arames. O quintal estava cuidado em canteiros de batatas e flores. Esguias e depenadas, as couves eram um resto sumido contra a sombra estreita de um muro de cimento mas, logo ao lado, a beber da fartura duns pingos a cair de um tubo agarrado com uns baraços a um motor de rega, rastejavam melões e abóboras numa promessa de abundâncias frescas e doces. Ao fundo da pequena cortinha[32], ao pé de uma nuvem de moscas pequenas, era a porta da loja dos porcos. Dei uma espreitadela rápida. Eram dois, reboludos e ressonantes, pernas esticadas na preguiça da tarde, nem um pestanejar com a minha presença.
Uma rapariguita de uns treze ou catorze anos guiara-me até ali, descalça e nervosa, com umas lamúrias de que os pais tinham ido uma semana para França tratar de umas pensões e ela ficara encarregada da casa. Só viriam dali a dois dias e agora os porcos estavam doentes e a madrinha dissera-lhe que o melhor era chamar-me. Não tardou ali a madrinha, que já me conhecia de lhe ter tratado dos dela no ano passado e que falava também pelos cotovelos sobre a coitada da afilhada “que ficou sozinha a estudar e a tratar da casa e dos porcos, que dirão depois os pais quando vierem e os virem assim doentes, que já é um grande prejuízo porque são já grandes e a porca anda prenha…”
- Calma, calma! Quando é que adoeceram os porcos?
- Atrás dontem. Ficaram-se assim, nunca mais se mexeram. Vão para andar e caem.
Apalpei-os, auscultei-os, pus-lhes o termómetro por duas vezes. A temperatura estava bem, quanto muito ligeiramente baixa, nada de anormal a não ser uma diarreia esverdeada e pastosa. Uma coisa era certa: os porcos dormiam e bem. Um sono profundo.
- E digam-me lá: que é que eles comeram, antes de estarem doentes?
- Comiam tudo. Comiam bem.
- Não é isso que quero saber: quero que me digas o que lhes deste de comer desde que a tua mãe se foi embora.
- No primeiro dia dei-lhes couves. Depois acabaram-se-me e tenho-lhes dado ervas.
- Só ervas?
- Só ervas.
- E essas ervas seriam dalgum sítio onde tivessem andado a pulverizar com algum produto?
- Não senhor, são por aí, do campo. Não andaram lá com remédios. Fui até eu que as apanhei com umas amigas.
Estava a ficar sem pistas clínicas. Mas qualquer coisa intuitiva me fez continuar por aquele lado:
- Que ervas eram?
- Inda as temos ali!
Fomos a casa, ao piso térreo, onde uma galinha esgaravatava numa saca de ração meia vertida e de onde foi enxotada “xôoo”. A miúda levantou uma saca de serapilheira debaixo da qual murchava um monte de plantas verdes. De repente, a hipotermia, a diarreia e o sono faziam sentido!
- E quantos dias estiveram a comer dessas plantas?
- Quatro dias com atrás dontem de manhã…
- E só comeram dessas ervas?
Já ansiosa a adivinhar responsabilidades, a rapariga respondeu ainda com uma réstia de esperança a sobrepor-se ao receio:
- E água! Também lhes dei água!
- Bem, não precisam de tratamento. Deixem-nos dormir e quando acordarem dêem-lhes água e vianda mas sem ervas. Não lhes voltem a dar essas ervas e o melhor é deitarem-nas já fora!
De imediato, as duas pegaram nas papoilas e deitaram-nas para cima de um monte de estrume. Mesmo selvagens, as papoilas têm uma ínfima dose de opiáceos. Ora, se a dieta for só de papoilas… valente pedrada, a daqueles porcos!

Quinze – O Cavalo, os Ciganos, os Garotos, os Gelados e as Cervejas


A caminho das Arcas numa tarde seca de Julho, incómodo irritante de guiar com o sol pela frente. A paisagem oprimia de quente, tom tostado de sede aflitiva, árvores paradas com folhas poeirentas, cheiros abafados com mosquitos insistentes, amarelos torrados a manchar por cima todas as cores. Quanto mais a estrada descia e mergulhava nos vales sinuosos e íngremes de Ferreira, mais o ar sufocava o termómetro pendurado do tejadilho do UMM a marcar 42°C. Ao atravessar esta aldeia avistei o dono do meu doente, um meu amigo cigano.
- Boa tarde! Ouça lá, então não era suposto estar nas Arcas à minha espera?
- Está lá a minha, senhor doutor. É que lá a trovoada dontem avariou os telefones e eu tenho que falar para Espanha. Morreu a minha avó e tenho a promessa de lhe levar o caixão.
Aquela inesperada situação deixou-me perplexo e curioso.
- Então mas vai quê? Dizer a algum parente que lho compre lá?
O cigano olhou para mim incrédulo na minha sugestão que lhe apareceu a ele como um sacrilégio – e dos graves! Com o coto de um braço maneta ajeitou o chapéu preto para cima, compôs com a língua um cigarro em que trincava e disse-me gravemente:
- Não, senhor doutor. Vou telefonar para que não lhe comprem nenhum. Eu é que lho vou levar. Tenho de cumprir a promessa.
- Sim, mas então vai lá e compra lá um, não? – insisti eu mas já a suspeitar da resposta…
- Não. Levo-lho daqui. Foi isso que prometi e até já falei ao carro para sairmos ainda hoje…
- E onde é que ela está? Em Zamora?
- Em Valência.
Fiquei siderado! Ir daqui a Valência para levar um caixão para um enterro! Deixei-o para trás nas suas diligências fúnebres e avancei para as Arcas.
Parecia uma aldeia deserta, de filme de ficção dum realizador espanhol, martelada de sol a jorros com sombras que eram apenas uma ilusão de frescura. Um cigano camuflado numa porta olhou-me de soslaio e aproveitei para perguntar pelo cavalo que era o meu doente. Golpe de magia, magnetismo dos ciganos, sem ninguém chamar juntou-se num ápice um bando de olhos inquietos e admirativos, velhas matronas que fingiam meter a miudagem na ordem, raparigas de olhar fulminante e sapatos de salto, rapazes morenos com cicatrizes de bom comportamento, homens há anos a precisar de um banho. Os mais pequenos esfregavam um ranho de choro pelas bochechas e deliraram quando lhes dei seringas vazias, das que tinha para deitar fora. Logo se puseram a enchê-las num resto de água dum tanque e a esguicharem-se uns aos outros.
Apareceu o cavalo, razoável exemplar de garanhão lusitano, pénis armado a denunciar a cólica. Olhei-o com o receio mental que sempre se me instala quando antevejo a grande tourada que acontece quando é preciso dar injecções a um bicharrão daqueles.
- Ele é manso?
- Com’ó veludo, senhor doutor.
Enchi a seringa, enchi também o peito a ganhar coragem e aproximei-me do animal. Um cigano apenas segurava as rédeas e com tanto à-vontade que me perguntei se não iria sair dali com um valente par de coices. Fiz um garrote manual e mal a veia ficou saliente, espetei a agulha.
Nem se mexeu. Fiquei espantado. Umas gotas de sangue a sair pela agulha atraíram imediatamente duas moscas que enxotei com um sopro. Ajustei a seringa. Premi o êmbolo rapidamente, não fosse o cavalo acabar por fazer das suas, e terminei o procedimento.
Uns minutos depois o bicho sacudiu alegremente as crinas, resfolegou, recolheu o pénis, ergueu as orelhas. Dadas mais umas instruções acerca de comidas e de água para o quadrúpede, estava terminada a tarefa. Faltava a conta.
- Tenha pena de nós!
Distribuí uma rodada de cigarros para desfazer a tensão da espera. Quatro ou cinco mãos estenderam para mim dedos trémulos de imenso álcool e unhas fuliginosas de nenhum sabão. Fiz a conta rabiscando nas costas de uma caixa de luvas e, concluída a soma, disse o total em voz alta à mulher dona do bicho. Achou o preço justo. Virou-se meia de lado, levantou a saia para fora e despertou um nó num de mais de meia dúzia de sacos de plástico que tinha pendurados num cinto sobre outra saia. Ouvi um rascanhar de moedas rebuscadas no saco bojudo e ela ia-as passando a um homem que as contava, uma a uma, ora de vinte, ora de dez, ora de cinco escudos, e que se iam depositando na minha mão. Eu estava sem palavras e divertido! Quando chegámos a três contos e meio, decidi-me a parar com aquilo. Vi aquelas dezenas de olhos arregalados que a três palmos do chão olhavam para mim e disse:
- Olhe, o que ainda falta dê-o aí à garotada para comprarem uns gelados no café.
A mulher logo parou a contagem e baixou a saia, ajeitando-a com uns puxões sobre a cintura de metro e meio.
- Não, não. Eu disse que era para dar aos garotos, não para guardar o dinheiro.
- Oh! – disse ela com sofreguidão – e nós também podemos beber umas cervejas com ele?

Dezasseis – A Mula do Joaquim


Quase a anoitecer, na Volta da Carvalha, troço de estrada em que a Terra Fria roça na Terra Quente, na embocadura de um caminho que sobe de um vale profundo, avistei o Senhor Joaquim com a sua velha mula, ambos com as cabeças pendentes e tristes, carroça com feno quanto baste para estiraçar as forças já débeis do animal. Acenei-lhe um cumprimento mas ele mal me viu, absorto como parecia ir numa nuvem cinzenta e melancólica.
Dias depois vi-o na feira de Podence e não era aquele homem velho mas bem disposto que eu conhecia, de olhar cheio de humor e viço, quer para os animais de que era perito avaliador quer para as raparigas de quem fora sempre um perito galanteador, pronto para a tagarela, roda de amigos e copos, acicate para os mais novos com um risinho que lhe saía luminoso e a fulminar:
- Então, rapaz, tens-te metido praí nalgum medeiro? Olha que aqui o teu pai e eu quando era noutro tempo não as deixávamos escapar… eh! eh! eh!... e elas gostavam, oh!, se gostavam!...
Não. Era outro homem. Acabrunhado, quase a andar de escondido, chapéu enfiado, ombros encolhidos, olhares de relance como a recear ser descoberto. Eu estava a conversar sobre ovelhas com o meu amigo Tadeu, de Latães, e vi-o por acaso. Fui eu que o chamei.
- Senhor Joaquim! Senhor Joaquim!
Olhou para mim como se tivesse sido apanhado em falta. Curvado, rosto de languidez estampada, cumprimentou-me sem a desenvoltura nem a vivacidade que lhe eram apanágio, antes um estender de mão que parecia a de um rendido e um murmurar pouco audível, emoldurado nuns olhos fundos e húmidos, muito claros como sempre mas muito tristes como nunca.
Pus-lhe uma mão em cada ombro e quis saber daquela atitude, se havia doença escondida ou desgosto concreto.
- São os anos, senhor doutor, são os anos…
E mudou um pau que trazia de uma mão para outra, desenfiando do bolso um lenço aos quadrados amarrotados que passou pelo nariz, fungão sentido, desviando o olhar de mim.
- Ora, senhor Joaquim, quais anos, pois se não está doente nem lhe morreu nenhum amigo, há que ter alento, homem! Venha daí mas é, vamos ali à tenda da Maria que nos dê dois de tinto!
- Não posso, senhor doutor, não há forças. Só vim aqui à feira por vias da minha mula senão nem tinha cá vindo. Mas precisava de um acerto no cabeção para não se ferir nos encontros ao puxar a carroça. Que a coitada está também mal, pior do que eu, muito magra, muito escanzelada.
Lembrei-me da mula e do aspecto com que a vira dias antes ao anoitecer na Volta da Carvalha e pensei que, de facto, estava muito magra, ventruda mas muito magra.
- Quantos anos tem, a sua mula?
- Fez dezoito.
- Então não está ainda para acabar!
- Tem muitos anos de trabalho duro… está velha, muito gasta. E agora deixe-me ir, senhor doutor, que nem me quero demorar aqui.
E abalou sem mais. Fiquei chocado e triste por ver aquele homem assim. Conhecera-o desde garoto, ainda antes de exercer a profissão, e sempre decidido, trabalhador mas folgazão, responsável mas distraído, mulherengo mas solteirão. Vivia só. Os pais há muito tinham morrido e, sem irmãos, fabricava ele as terras de família mais as que uma tia lhe deixara.
Não era homem de privações mas também nunca fora um esbanjador e dizia-se que, para a aldeia, era, até, rico. Tinha uns dinheiros no banco que a vox populi lastimava não virem a ser herdados por ninguém. Só tinha uns primos no Brasil e desde há tanto tempo que nem ele lhes tinha tino nem eles deveriam saber que ele estava cá. E tinha vacas. Uma luzida junta de mirandesas que já lhe tinham ganho uma taça no concurso de S. Pedro, em Macedo, e que todos os anos lhe pariam um par de crias cuja fama arranjava de longe compradores certos e por bom preço.
Além disso tinha a mula. Adorava a mula. Educara-a com empenho e dizendo sempre que seria a última da sua vida. Uma mula grande, bonita, sem matreirices, que se punha à carroça mais pesada sem regatear e que, até, se podia montar. Como ele gostava de aparecer de selim, estribos de gaveta com latão polido, cavalo-marinho numa mão e a outra no chapéu para os cumprimentos antes de desmontar, gesto garboso que lhe saía natural e fazia com tal frescura, sobretudo se estavam saias por perto, que, vendo aquele movimento ágil em que o colete se voltava em quarto de volta, todos esqueciam que o senhor Joaquim estava ali diante de nós a desafiar uma linda soma de quase oitenta anos.
Era essa a imagem que eu tinha dele, montado na sua Russa enfeitada como se fosse uma égua, a mula trazendo-o como se fosse um fidalgo.
Mas pronto, pensei rendendo-me à evidência, os anos afinal não perdoam e um dia o apagar de uma chama faz com que, de repente, o brilho se transforme em penumbra.
E não era só impressão minha porque em conversa à porta da Farmácia Central com o António Ferrador, este confirmou-me que metia dó:
- Inda onte lá binha ele a puxar pela rédea da mula que não q’ria bir c’oa carroça da erba prás bacas. Até dá cortação[33] ber assim o home prá li só, a acabar-se…
Uns dias depois, manhã normal no escritório da associação, a Isabel anuncia-me que estava ali um senhor dum laboratório. Há dias em que não apetece nada atender os delegados de propaganda médica. Mas pronto, “mande lá entrar”. Conversa do costume e no fim deixou-me umas amostras entre as quais estava uma bisnaga de um novo desparasitante para cavalos, novo no princípio activo e novo na forma fácil de ser administrado, uma pequena dose e para ser toda dada de uma vez. Além disso, de grande espectro de acção, atingindo formas mistas de parasitismo. Lembrei-me da mula ventruda do senhor Joaquim e mandei-lhe a bisnaga por um portador a quem expliquei detalhadamente como se aplicava. Umas duas semanas depois tive um sintoma de que o resultado deveria ser bom porque começaram a aparecer-me pedidos de receitas “do mesmo remédio que tinha dado à mula do senhor Joaquim”.
- Aquilo deve ser visto! Foi como quem deita petróleo numa candeia que se está a apagar!
Comentários como este significavam que o desparasitante fizera efeito e andava já eu em pulgas para calhar ver a mula e ao meu amigo Joaquim quando uma notícia me chegou uma manhã enquanto esperava ao balcão do banco e me foi trazida num tom conspirador:
- Então o senhor doutor já sabe do nosso amigo Joaquim…
Naquele tom quase parecia a comunicação de uma morte mas a expressão risonha desarmava-me a intuição:
- Joaquim… qual Joaquim?
- Ora, o Joaquim da Russa!
- Que é que lhe aconteceu?
- Então o senhor doutor não sabe? Juntou-se com a Clementina!
- Juntou-se?! Mas qual Clementina?
- A Clementina, a viúva do Manuel do Souto!
Era de ficar atónito! A Clementina casara nem sequer um ano antes e enviuvara logo a seguir quando o Manel se espatifara com a motorizada numa noite de copos. Era uma mulher e tanto, roliça e alegre, pretendida de todos enquanto solteira mas muito atinada depois de casada e não devia andar por mais de vinte, vinte e um anos. Nunca a vira depois do casório mas se havia coisa mais extraordinária era ter-se juntado com o Joaquim e logo nem dois meses depois que o vira na feira de Podence e de mim se despedira não como quem está para caçar uma rapariga mas como quem está para encher uma sepultura.
Era uma reviravolta que me aguçava a curiosidade e me fazia pensar duas vezes sobre a natureza humana.
Nem de propósito, na feira seguinte lá estavam os dois de volta de uma tenda de panelas e tachos e quem os visse pensaria em neta e avô.
Aproximei-me, não sem notar que olhares entendidos convergiam de toda a volta num diálogo que se adivinhava sobre aquele par singular que, com uma indiferença que transpirava galhardia, disputava animadamente o preço de uma caldeira com o vendedor.
Quando me viram, o Joaquim avançou de braços abertos e efusivos e a Clementina corou ligeiramente, mão estendida, olhar de quem diz tudo.
- Então, senhor Joaquim, folgo em vê-lo tão diferente!...
- Já era para ter ido a Macedo só para estar com o senhor doutor. Olhe que ele há coisas!...
- Caramba! O senhor está óptimo!
- Sim. Até já disse para a minha mulher que se não fosse o senhor doutor eu já estava morto!
- Oh! Eu?!
- É verdade! Disse ou não disse, Clementina?
Ela disse que sim. E em meia dúzia de minutos ouvi uma explicação espantosa de que estavam casados, mas em segredo. Não se importavam que o povo dissesse que estavam juntos, isso não, mas quanto a dizerem por aí que estavam casados…
- Já viu o senhor doutor que iam logo dizer que era só para ela me ficar com os dinheiritos e as coisas. Sabe como é o povo…
Tinham casado. O padre tinha-lhes tratado de papeladas e uma manhã, padrinhos combinados, tudo se tinha feito no maior dos sossegos numa igreja para os lados de Chaves onde a Clementina tinha uns vagos parentes.
- Eu estava como o senhor doutor pôde ver. Às noites até já chorava sozinho quando ia acomodar as vacas até que uma vez olhei aqui para a Clementina e vi-a também na rua, encostada a umas escadas, a chorar também, que andava tão triste quanto eu. E duas ou três vezes nos vimos assim, ela até já me prometera ir ao meu enterro apesar de eu um dia ter dito duas palavras ao marido dela que Deus lá tem. E a minha mulinha já nem trazia as carroças, esganava-se toda e botava umas moncas que eu pensei até que dali a dias nem ia ter forças para lhe fazer a cova.
Ele contava-me aquilo tudo de uma forma sôfrega, cheio de entusiasmo, como o velho Joaquim de outros tempos.
A Clementina assentia com a cabeça, com um dedo alisava uma madeixa debaixo de um lenço preto que ainda trazia e com a outra mão segurava a asa de uma caldeira de brilho novo.
- Então o senhor Joaquim foi ao médico, tratou-se daqueles males…
Inspirou ar, abriu os olhos como que para soltar uma arrebatação e com um tom solene mas muito paternal, muito familiar:
- Médico, senhor doutor, médico?! Eu estou diante do médico! Olhe que uma vez já foi o senhor doutor Amadeu, o seu avôzinho, que me tratou de uma lentilha que tive aqui no ombro. Nunca mais tive outro médico!
- Mas então?!
- É que eu recebi o remédio que o senhor doutor me mandou para a minha Russa e, senhor doutor, o senhor é Deus!
- Oh! Caramba! Não diga isso!
- Ai digo, digo. É Deus que fala pelas suas mãos! Eu dei-lhe o remédio e uns dias depois comia tudo, foram-se-lhe as moncas, desapareceu-lhe o assadouro[34], sumiu-se-lhe aquela inchação da barriga – até a pude voltar a selar! Se a vir, o senhor doutor não a conhece! Não a conhece! Até mudou o pêlo!...
- Está lustrozinha! – disse a Clementina.
- …Está como quando a criei! E eu pus-me a pensar, ao ver aquilo, e disse-o para comigo e aqui à Clementina: pois se te não enterro também tu não te hás-de ficar a rir de mim que ainda me hás-de servir para muito!

Dezassete – Remédios Eficazes


Foi um sarilho tentar ferrar a égua do Zé Alberto. Chamava-se Crama, andava folgada, habituada a não ter ninguém perto do focinho, a nada fazer por obrigação, gorou-se a tentativa para a manicura, pata pesada como a não há por estas bandas e risco de não valer a pena ir para o hospital ou pior, por tão pouco.
Por isso sugeri dar-se ao bicho um calmante que permitisse fazer-se a tarefa.
Foi um êxito. Uma manhã de sábado, presa ao toro de uma oliveira, injectou-se-lhe o fármaco. Ficou amestrada como se tivesse tido escola da mais severa e nem pestanejou às pancadas da cravação. O ferrador, o senhor Manuel, ficou de tal modo impressionado com o resultado que, dias depois, me pediu mais uma dose da droga para um outro animal mais renitente e essa outra experiência deu um certo sururu entre o pessoal do meio.
Entretanto houve uma feira em Podence e, à falta de melhor assunto, várias pessoas me questionaram sobre o caso da égua de que tinham ouvido falar.
Umas semanas depois estávamos de novo em vésperas da feira e, como é costume, o movimento no escritório da associação aumentou. Uns vinham para que se lhes fosse marcar vitelos, outros para por em ordem papéis e guias de trânsito sem os quais ficariam comprometidos negócios e transações. No meio desse movimento todo atendi o Fernando Cigano que, segundo palavras suas, tinha uma mula tramada:
- Carimba a torto e a direito e não deixa topar-se-lhe nas patas. Por isso se o senhor doutor arranjasse uma dosezinha com’á da égua do senhor doutor Zé Manel do Vilar… que eu pago o que for preciso!
- A mula é grande?
- Muito grande. E está gorda. Muito gorda!
- Mas quê: passa dos trezentos e cinquenta?
- Ah, sim. Está mais pesada do que a égua do senhor Doutor Zé Manel…
Achei estranho pesar tanto mas como os ciganos são tão entendidos deste tipo de bestas, não o contrariei. Preparei uma dose avantajada já numa seringa esterilizada das descartáveis com agulha e entreguei-lha com todas as recomendações.
Dali a dois dias era Domingo de feira. Vi o Fernando Cigano num relance a escapulir-se junto a um castanheiro mas como eu lhe acenasse outro remédio não teve do que vir cumprimentar-me, mão estendida, chapéu tirado.
- Então, Fernando, deu resultado?
- Deu sim, senhor doutor. Ficou mansinha com’á terra! Mas se bosselência permite, tenho que me ir além ao pé do Zé Matalote senão vai-se-me embora sem mim e eu fiz negócio e hoje já me vou…
Não era dele aquela pressa porque nestes dias os ciganos são geralmente os últimos a abandonar o recinto. Ficam de volta das tendas das febras e das postas, copos carregados, conversas intermináveis que às vezes descambam em discussões tremendas e em que participam o mulherio, a filharada e toda a parentela, e, quando não, é tudo varrido a varapau – ou tudo contido ordeiramente se paira por ali o olhar da patrulha da GNR.
Nesse dia a feira esteve desagradável. Um vento de noroeste sacudia as ramagens e tentava levar as tendas à mistura com aguaceiros que de espaço a espaço caíam intensos. Todo o arraial se esvaziou cedo e a bicharada, vendida ou não, foi levada a pé pelos donos de perto e em camionetas pelos de longe. Não se podia estar ali com aquela invernada de forma que fui almoçar ao Panorama com alguns feirantes e amigos.
Depois de almoço segui para as consultas urgentes e recebi, ao fim da tarde, uma chamada para ir a uma aldeia ver uma vaca.
Foi terrível. A vaca, uma mirandesa magra mas com uma cornadura temível, estava nervosíssima e investia contra tudo e contra todos. Aliás, o caso clínico consistia nisso mesmo: estava furiosa. Arremetia e dava patadas, nada de consentir uma corda – quem se lhe chegava?
- Veio para aqui tão bem, senhor doutor, e agora deu nisto!
- De onde é que ela veio?
- Da feira de Podence. Comprei-a ao Fernando Cigano. Estava mansinha com’á terra! Entrou mesmo bem para a loja. Só há bocado é que ficou assim, quando voltei cá a vir ver se precisava de mais feno. E nem para o feno olha!
- Ah, sim? – disse eu, querendo confirmar uma seriíssima suspeita – Comprou-a ao Fernando Cigano, foi?
- Disse-me que era boa criadeira e para o trabalho. Que estava magra por ter tido mau trato. Não é de estranhar, ciganos…
- Pois.
Com que então a mula era grande, muito grande, pensei eu para os meus botões… sentindo-me perfeitamente vigarizado, tanto ou mais que o comprador da vaca! Nada lhe disse sobre as minhas suspeitas por uma questão de ética profissional mas teria de dar uma palavra ao Fernando Cigano! Ele havia de ver!
Tivemos que ir por cima, pelo palheiro, arrancar duas tábuas do soalho para eu poder passar o braço armado com a seringa e dar uma injecção relâmpago que acalmasse um pouco o animal. Conseguimos.
Uns dias depois dei de caras com o Fernando Cigano a cavalo numa mula e levando outra à arreata. Eu estava no jeep e cumprimentei-o ainda sem sair, janela aberta. Olhei para as patas da mula em que ele montava e, sem falar do assunto da vaca, chamei-lhe a atenção para uma pelada ligeira que ela tinha junto aos machinhos. Ele desmontou e olhou curioso, eu saí entretanto do UMM.
- E isso é grave, homem. Se lhe dá para começar a coçar-se e a morder-se, come-lhe a pata toda!
- Parece ao senhor doutor?
- Se parece! Já as vi ficarem todas peladas e depois quem as compra?
- Lá isso é… e há remédio?
- Há uma injecção boa para isso. Tenho uma aqui.
- E é cara? Que, se é boa, eu não olho ao dinheiro!...
Não lhe cobrei a injecção. Prendeu-se a mula a um castanheiro da berma do caminho e apliquei uma ampola duma injecção estimulante, antigamente muito usada para cólicas e que, quando dada a um animal são, o faz ter um comportamento agitado. Tenho a certeza de que ainda eu não teria percorrido um quilómetro e já o Fernando teria tido que desmontar, mula a suar e a evacuar repetidamente com a cauda em trombeta, isto se não tivesse saído disparada para se espojar no campo!
Mêses depois o Fernando veio pedir-me que lhe fosse tratar dum resfriado dum cavalo. Eu fui, claro. Não me falou da pelada da mula. Não lhe falei da vaca furiosa. Não me pediu mais nenhuma injecção das de ferrar mulas!...

Dezoito – Gados e Pastores


Os pastores foram os primeiros a saber que Jesus tinha nascido e os primeiros a ser-Lhe amáveis com os seus presentes simples e sinceros. Curioso este facto, a vida do Salvador ter começado entre os que eram indesejados pela hipocrisia dos fariseus e quejandos. Esta particularidade dos pastores serem uma gente aparte, gozando dum estatuto mal esclarecido mas bem subentendido, mantém-se firme nas serras e aldeias. Sempre gostei de pastores e creio que sempre os entendi – mesmo nas coisas em que estivemos em desacordo! Dei sempre atenção aos indefiníveis laços e hierarquias em que se movem e em que, intuitivamente, todos com eles se relacionam.
Começa logo porque há pastores e há cabreiros. Distinguem-se pelo cheiro, a metros, mesmo nas noites de festa e bailarico em que as raparigas, receosas, a troco da vida futura lhes tentam arrancar promessas de deixar animais e partir para França, para Espanha, para qualquer lado que evite as curriças[35], a ordenha, os horários sem tino e os quilómetros a pé, à chuva e ao frio, à noite ou ao sol esturrado. Porque quando eles não vão, porque é dia de feira ou dia de curtir uma noitada de copos de ver o Porto ou o Benfica, são elas quem arrosta com os montes na estafa, coração apertado com receio de uma reprimenda das que deixam o corpo marcado:
- Ó mulher, que deixaste por lá duas canhonas![36]
Há também os ciúmes. O convívio permanente com um gado que tem de procriar para manter o rendimento torna os actos necessários à fertilidade muito mais rasteiros e frequentes, actua como um estimulante erótico insidioso que desumaniza, que dessentimentaliza e deixa a nú o mero instinto. O tempo para tudo é dado pelo horário da ausência dele pelos pastos, da solidão dela por outras bandas e assim, como uma trovoado de Verão, falatórios e dramas camilianos fazem parte da vida de pastor. Uma manhã vacinei um gado pequeno numa curriça acanhada onde o marido e a mulher agarravam as ovelhas trocando, à sua maneira, galanteios e mimos. Dois dias depois o marido desconfiou demais dum par de calças que alguém lhe contou ter visto a entrar em casa e ela, antes que ele lhe fizesse alguma, disparou-lhe uma caçadeira! Não o matou. O chumbo era miúdo, do dos tordos, e o tiro foi à distância e pouco certeiro. Ela logo se pôs ao fresco, não fosse ele usar chumbo mais grosso e atirar de mais perto…
As palavras têm um valor extremo para os pastores. Não há interlocutor que os contrarie nas suas opiniões, fermentadas durante horas de conversa com as giestas e as fragas, opinião ruminada com os chocalhos e o silvo do vento na rama dos freixos. Uma ideia diferente é quase sempre entendida como uma intenção de animosidade e, acostumados a ser condutores de gado e não a ser conduzidos, a nossa incompreensão chega a ser para eles uma afronta. Demora horas convencê-los de algo de inesperado, da necessidade de um tratamento, de um rastreio, do abate dos animais doentes, de que as marcas deixadas nas ovelhas mortas são de cães e não de lobos “dos que o Estado cria para os deitar por aí!”.
- O gado é meu e não deixo vaciná-lo!
Ou, então:
- Dantes não havia uma ovelha doente! Agora andam praí com essa trampice das vacinas e amovem-me e morrem-me mais que poucas!
Ou, ainda:
- Eu deixo vaciná-las – afirmação ao fim de meia hora de argumentos e calcando com o bordão no chão, fazendo covinhas como que a tornar indelével a sentença – mas as que me morrerem ou amoverem, pagam-mas todas!
Vão-se lá contrariar! Uma vez, se não era a mulher do pastor que se interpôs entre mim e ele, eu teria levado uma bordoada valente, cajado grosso já levantado a metro e meio da minha cabeça – porque o homem me culpava das ovelhas que adoeciam, que seria das vacinas que mandava aplicar ou dos rastreios que mandava fazer! Um outro afirmava a sete ventos que as suas tinham brucelose porque “foram as vacinas que ma meteram lá nas ovelhas, antes não tinham nada” e andou rosnando ameaças aqui e ali contra mim – em vez de cuidar que talvez um carneiro ou uma ovelha que lá tenha metido no meio, arranjadas por um entendido e sem cuidados de sanidade prévios, fossem, afinal, a causa para as ovelhas, para ele e para a família, todos estarem com a febre-de-malta.
O atrevimento arrogante da ignorância é o perigo de que se deve ter mais receio num confronto destes e não raro é o campo fértil para germinar a semente duma má intenção: um cabreiro, já ébrio da cerveja e do vinho porque o calor apertava e a água não era boa para matar a sede, nessa manhã zangado porque era o dia de lhe irem fazer as análises às cabras e vaciná-las, abriu a navalha, espetou-a no ventre de um rapaz e de um golpe matou-o cortando abdominais, esterno, costelas. Ali assim, num instante e num repente. Em discussões, irredutíveis.
O horizonte, esse, é grande. É grande o nascer do Sol, são grandes as noites de luar passadas no carreto[37] junto do bardo[38], é grande a sesta sob as árvores nas tardes de Verão em que o gado acama com o calor, é grande o por-do-sol que alaranja as serras para lá das quais ficam os outros países, o sonho de talvez um dia. Rádio de pilhas na mão, o mundo parece estar todo ali. São notícias, é música, elementos de qualquer coisa que para eles é concreta porque com um acto simples, o de caminhar, sabem que até lá se chega.
Dia após dia, naqueles se vai construindo uma esperança, a antítese daquela prisão que não conhece Domingos nem feriados. Carregar com os cordeiros que nascem pelo monte até casa, chegá-los às mães, transportar as bilhas de leite, arrastar com uma ovelha que se fica para trás.
- Pastores! Não há quem os ature!
- Que foi, senhor António? – digo para o dono do gado.
- Chegou ontem ao pé de mim depois de encerrar o gado e disse-me para arranjar pastor porque se vai embora para Espanha no próximo sábado. Onde vou descobrir um, assim de repente? Hei-de ter que vender o gado e pelo preço que me quiserem pagar!
Em atitudes e decisões, imprevisíveis.
E em mitos são uma classe fecunda. Constroem-nos na esquina em que espreita o olhar duvidoso de um vizinho, na poula[39] em que a erva cresce viçosa mas que a praga de um dono morto interdita, no efeito da aragem que se levanta breve e que arrasta o bafo que tolhe[40] as tetas e lhes dá o curto[41], em tudo isto e em muito mais. A doença, o mal e a morte são personificados indefinidamente por um espírito cuja essência as causa. Inomináveis medos e ameaças indistintas pairam aqui e ali, figuras decerto dum mundo muito antigo, reminiscências milenares dos endovélicos dos bosques e dos aernos tutelares. Daí que um arsenal extraordinário de rezas e mezinhas faça parte indispensável dos conhecimentos transcendentes de um pastor experimentado. Ou da sua mulher. E, por isso, o recurso a um médico-veterinário é por vezes o derradeiro esforço, não para obter o socorro da ciência – mas para esconjurar o Mal.

Dezanove – Pombares


A aldeia roqueira de Pombares vigia dum alto e desde há milénios o Sul da Serra da Nogueira. Sobressai no meio duma multidão de vultos de castanho e pedra, vultos que parecem perseguir-nos como naquela manhã invernal de neve e vento em que descíamos a custo, mesmo a muito custo, por um ínvio caminho de pendentes abruptas escalavrado no granito. Reconditamente abrigada num valejo de giestas sacudidas e brancas, uma curriça agasalhava uma cabrada a que a morte vinha subtraindo os animais um a um.
- Ficam-se lá pelos montes… começam a andar meias presas das patas, dá-lhes um cansaço, algumas falham o leite e deixam de comer, tristes…
Durante a noite uma cabra morrera na própria curriça e o nosso objectivo era necropsiá-la e confirmar a doença para que a anamnese apontava. Arrastámo-la para ao pé da porta e o João e o Zé Maria, meus ajudantes nesse dia, foram-na abrindo sob as instruções que lhes dava e, ali defronte à curiosidade dos donos, atentos a cada facada e às minhas chamadas de atenção, foram sendo conduzidos no raciocínio médico que eu ia traduzindo em linguagem mais simples.
Após o exame a várias vísceras, disse ao João:
- Abra lá a mama, faça um golpe de alto a baixo. De certeza que está lá o que procuramos.
Inciso o tecido mamário, a evidência era flagrante com todo aquele pús a escorrer.
- Está a ver, senhor João? Vamos colher daí o tecido para o frasco esterilizado.
- Ó senhor doutor! – diz-me a dona – Olhe que a cabra daí não tinha mal de morrer!
Surpreendido com o tom de certeza tão afirmativa que a mulher exprimia apesar de estarmos perante uma evidência das de livro, indubitável, perguntei com curiosidade:
- Porque é que a senhora diz isso?
- Porque, curtos, sempre as cabras tiveram e eu sempre as curei e a esta eu já benzi quando andou com o leite tralhado e em aguadilha[42]. O curto já lhe tinha passado!
- Mas tem estado a dar leite?!
- Não, desde que lhe passou o curto, a inchação e o calor que botava, deixou de a ter quando a benzi, desde aí que ficou seca, mas já a comer e sem o curto!
- Benzeu-a com o quê?
- Com a unha do teixugo.
- A unha do texugo?!
- A unha do teixugo! – e mostrou-ma na palma da mão, tirando-a do bolso do avental que trazia sobre a saia.
Aprendi então como há tempos imemoriais se curavam as mamites na aldeia, fossem de que fêmea fossem, mesmo de mulher. Se fosse caso grave, o esconjuro tinha de repetir-se nove vêzes. O normal eram sete mas uma afecçãozita mais leve bastaria uma tercena. Era necessário pegar na unha do texugo que fosse da mão direita do animal e, empunhando-a em gestos cruciformes sobre a mama e tratar, recitar ao mesmo tempo:
- Um bom hóme me deu pousada, uma má mulher me fez a cama, entre o agrade[43] e a lama; e tu, curto, vai-te embora!, e tu, sécia[44], mama; em louvor de Deus e da Virgem Maria, Deus e Nossa Senhora te hão-de curar! Pai-Nosso… Avé-Maria…
Nas mezinhas e crendices, são inabaláveis!

Vinte – O Gado Enguiçado


Um fim de tarde de Outono, já à noitinha, aproximou-se de mim um homem com a cara escondida na gola da samarra levantada, gestos graves e receosos como se temesse ser ouvido.  
- Senhor doutor, queria duas palavras a vosselência.
- Ou três! – Respondi logo em tom jovial para o pôr à vontade.
- Anda-me o gado a morrer e inda ontem fiquei sem o melhor carneiro. Era logo o melhor e mais novo, fazia cresta[45] e bem!
- Ora essa! Desde quando?
- Desde há uns dias… e eu queria que vosselência me visse aquilo e até me dissesse: se abrindo uma ovelha morta lhe descobre do que foi…
- Bem…
- É que eu sei do que foi e se calhar para isso não há remédio!
A frase saiu-lhe com voz pungente feita de sofrimento, ira contida e desnorte perante uma ameaça infinita. Eu não tinha ainda começado a retorquir e ele continuou:
- O senhor doutor não diga nada a ninguém mas é que eu vi uma velha no lameiro onde o gado pastou há cinco noites e o que ela andou a fazer não foi nada de bem, decerto.
- E o que é que ela fez? Espalhou veneno?
- Se fosse veneno, senhor doutor, se fosse veneno… ela correu o lameiro todo com uma luz e deixou lá sal, uma vela e um ovo e agora andam-me a morrer as ovelhas… e será que o senhor doutor não poderia dizer-me se abrindo uma e mandando-a para o tal laboratório que está no Porto se…
Interrompi aquela catadupa torrencial de palavras.
- Ena! Espere lá, homem! Para isso o laboratório não dá! Então acha que as ovelhas morrem porque uma mulher ande com uma luz a espalhar sal num campo, deixe lá uma vela e um ovo?! O sal não lhes faz mal nenhum e velas e ovos elas não comem.
Olhei-o fixamente para lhe incutir confiança e o fazer cair em si mas não consegui nada.
- Ó senhor doutor, o que eu sei é que até ali o meu gado não tinha mal nenhum, era o gado mais limpo que há cá no povo, e desde que foi isso que morre e tenho que lhe acudir.
- Mas ouça lá: quem era a mulher e por que faria uma coisa dessas?
- Quem era sei mas o porquê não atino…
- Quem era?
- Bem, mas isto, senhor doutor, só entre nós…
Sussurrou o nome dela com um remorso que tentava esmagar com pancadas do varapau no chão. Tratava-se de uma boa mulher. Eu não podia ficar calado.
- Caramba! Conheço-a tão bem! Alguma vez seria possível fazer-lhe mal? É sua tia, tia da sua mulher!...
- Por isso mesmo. Ela nunca gostou de mim. Ela nunca quis que a minha casasse comigo.
- Mas já estão casados há tantos anos. Isso foi há tanto tempo!...
- Pois é, mas agora é que se voltou contra mim e como não mo quis dizer na cara, usa das artes. E eu agora já desconfio que quando o gado me andou a mancar no ano passado, já foi ela! Foi ela quem lhe andou com olhados! Eu até me lembro que, depois de passar na porta dela, é que o gado se me mancava mais quando voltava para a curriça!...
- Mau, mau, mau! Onde isso já vai! Vamos combinar uma coisa: amanhã tenha aí o gado que vou inspecionar as ovelhas… e vou também ao lameiro ver o que por lá há. Mas não me ande com histórias! Não faça nada à sua tia nem me ande com questões. Que coisa, homem! Já nos bastam as doenças que há quanto mais andar agora a inventar outras que ainda por cima só existem na cabeça das pessoas. As ovelhas não têm culpa!
- Pois é, senhor doutor, mas as ovelhas que me morreram já ninguém mas inventa…
Ao ir embora passei em frente da casa da tal tia e, apesar de ter abrandado porque naquele sítio termina a terra batida e há um ligeiro ressalto para o início dos paralelos, dada a hora já tardia, não logrei vê-la na varanda onde normalmente ela passa as tardes a remendar ou a escolher feijões e a tricotar camisolas.
No dia seguinte fui encontrar o homem, a mulher e os cinco filhos à minha espera, olhares ansiosos, gestos prestáveis de quem urge à procura de uma salvação. Não havia nenhuma ovelha porta e o gado estava de excelente saúde. Reconstituindo os dados das vítimas, pude assegurar-me com um elevado grau de certeza que a responsabilidade caberia a uma enterotoxémia, originada pelo pasto recente da erva viçosa que crescera com o verão dos marmelos.
Em cima de um muro e num nicho de pedras, descuidadamente dispostas, estavam uma vela e um ovo no meio de um círculo de sal. Sorri para mim mesmo da intenção e da ingenuidade do acto, e fiquei a pensar qual seria a finalidade das mãos que se tinham dado ao trabalho de ali dispor aqueles objectos de bruxaria. Com o pau do pastor parti o ovo, espalhei o sal e calquei a vela entre as ervas, tentativa de demonstrar o inofensivo de tudo. Virei-me para eles com ar triunfante:
- Pronto, o medo era disto?
Fixaram em mim um olhar aterrado!
- Oh, senhor doutor, que desgraça!
- Que desgraça?! Porquê?
- Agora ficamos nós com a má sorte e o senhor doutor pode ficar doente ou acontecer-lhe algum desastre!
- Bom – disse eu já a perder a paciência - , se morrer mais alguma ovelha chamem-me logo cá. Mas não quero que me andem mais com histórias nem façam mal à vossa tia. Digam-lhe que quando for a Macedo me procure.
- E o senhor doutor quer falar com “ela”?
- Claro que quero! E parem com isto! Não há bruxarias que dêem resultado! Isto tudo não passa de crendices. E é pecado! Não andem a dar tempo a isto que Deus não gosta.
Não morreu mais nenhuma ovelha e, dias depois, apareceu-me no escritório a tal mulher, já velhota mas muito viva, com o xaile preto que lhe conhecia de Verão e de Inverno, cabelos grisalhos apanhados em corucho com uma travessa.
- O senhor doutor mandou-me dizer pela minha sobrinha que queria falar comigo…
- Pois mandei. Diga-me cá: que história é essa de ovos e velas e sal, postos aí pelos muros? A senhora não vai à igreja? Não sabe que isto nem parece duma mulher como a senhora?
Ela abriu dois grandes olhos para mim, tremiam-lhe as palavras e ia desenfiando um lenço da manga para aparar as lágrimas iminentes:
- Oh! Senhor doutor, senhor doutor. Pela alma de quem lá tem! Não foi para fazer mal nenhum! É que me tem dado aqui uma dor e já fui aos médicos e não passa e um entendido disse-me para fazer uma novena que poderia ser um encosto[46] a meter-se-me. Ó senhor doutor, ó senhor doutor!...
- Pois é, agora veja: morreram algumas ovelhas aos seus sobrinhos e eles dizem que foi a senhora.
- Ai, minha alma que eu quero a eles como filhos e aos filhos deles como netos e agora entendo que foi por isso que a minha Teresa quase não me fala há uns dias e me vira a cara! Eu nunca lhes queria fazer mal nenhum!
- Eu depois falarei com eles. Agora diga lá: onde é que lhe dói?
- Aqui.
A velhinha levantou as roupas para mostrar que era ali, debaixo das costelas, nas costas.
- Pronto, deixe estar que eu não trato de gente! Mas vai ao médico que lhe vou dizer e leva este cartão meu que eu escrevo aqui para lhe entregar.
Dois dias depois voltei a encontrar a mulher a caminho da consulta do hospital. Disse-me que o médico lhe receitara uns comprimidos e que já não tinha grandes dores mas que tinha de ir fazer umas radiografias que ele tinha mandado.
Tentei, entretanto, ver os sobrinhos para dar umas explicações e desanuviar-lhes as relações com a tia mas com os muitos afazeres fui protelando o encontro. Inesperadamente, a velhinha apareceu-me no escritório uma semana depois, chorosa, amargurada:
- Senhor doutor, já estou a pagar pelo que fiz!
- Que foi, anda com mais dores?
- Não, graças a Deus e ao senhor doutor que me indicou um médico tão bom, disso estou melhor que até já nem sinto dor nenhuma.
- Então?
- Então quer saber que hoje fui dar com a minha hortinha toda pisada e comida pelo gado?! Foram eles, aqueles sei lá!, desculpe!, senhor doutor que ainda não me falam. Deitaram para lá o gado durante a noite e tenho tudo desfeito e espezinhado! Ai, a minha hortinha!
Em matéria de vinganças, são incontíveis.

Vinte e um – O Detector de Metais


Uma das novidades que eu trouxe para cá quando acabei o curso foi o facto de não medicar animal nenhum sem lhe medir a temperatura e sem o auscultar. Isso causou-me algumas situações mais amargas com alguns colegas, porque o costume era o de receitar pela anamnese e sintomas colhidos a olho, que levaram a mal que um franganote a principiar a carreira os ultrapassasse na mise-en-scène. Contudo, eu não desarmei e até reforcei a panóplia de possibilidades quando apareci a empunhar um… detector de metais!
Foi um êxito!... mas só depois de ultrapassada a desconfiança.
- Quer ver? – disse eu para o dono da vaca, apoiando-lhe o aparelho contra um dos bolsos das suas calças.
Ouviu-se um apito de cana rachada.
- Tem aí qualquer coisa metálica…
O homem rebuscou no bolso e tirou uma navalha mirandesa.
- Então quer dizer que a vaca tem lá dentro uma navalha espetada?
- Não. Quer dizer que a vaca tem lá qualquer coisa metálica… mas como também tem outros sintomas que se sabe serem de uma coisa espetada, o mais provável é ser um arame ou um prego, por exemplo.
- Ora uma destas!...

Uma vez, uma vaca da Casa de Salselas apareceu com os sintomas de síndrome de corpo estranho, mais propriamente as de retículo-pericardite-traumática. Teve uma evolução hiperaguda porque horas depois já tinha morrido. Decidimo-nos por uma necrópsia para confirmar o diagnóstico. O dono da vaca, o Dr. Villas-Boas, estava a par do assunto e, ausente no Porto de onde acompanhava telefonicamente o dia-a-dia da vacaria, urgia num desfecho do caso. Insistentemente. Abriu-se a vaca mas após buscas repetidas nada aparecia. Eu já tinha até cortado, literalmente, o coração em postas para sentir a lâmina do bisturi a intersectar algum metal mas nada! Pela quarta ou quinta vez a empregada da casa chegou ao pé de nós e insistia com o caseiro:
- Senhor Moisés, o senhor doutor Villas-Boas telefonou outra vez e diz para o senhor lhe ligar para o Porto…
- Já lá vou, já lá vou…
Até que tive a ideia de enfiar o detector de metais numa luva obstétrica e passá-lo nas vísceras já abertas do animal. No rúmen deu um apitozito: era um pequeno arame maleável e inofensivo. No coração deu um apito a sério. Senti com os dedos um objecto duro cravado na massa muscular ventricular. Puxei. Era uma escápula de aço escuro de secção quadrangular e apenas com uns três centímetros de comprimento.
- Uma coisa tão pequena matar um animal tão grande!

Foram dezenas, os casos em que pude testar e atestar o valor do detector de metais. Numa vez tive de ir à Amendoeira, já de noite. Um vitelo da Senhora Irene estava preso a uma manjedoura de tábuas novas e tinha sinais de estar com uma cólica originada num departamento anterior do tubo digestivo, provavelmente no retículo. Não tinha febre mas mexia-se com dores e não comia. O detector apitou sem sombra para dúvidas. Expliquei a situação e resumi-a:
- Se o vitelo fosse meu, abatia-o já para meter a carne na arca congeladora antes que tenha febre. Amanhã logo pela manhã…
Não foi abatido amanhã, foi-o nessa mesma noite. Minutos depois de eu me ter ido embora chamaram o Hérmino, de Latães, sabedor de abates e exímio nas desmanchas porque trabalhara no antigo matadouro municipal de Macedo. Com perícia matou o animal e pendurou-o para se esquartejar. Tinha dentro um prego, um prego novo e dos grandes, de caibro, que a dona me contou depois que tinha sobrado de fazer a manjedoura onde estava o vitelo preso! Um esquecimento mortal!

E duma outra vez, num fim duma manhã, apareceu no escritório um homem meu conhecido a pedir para lhe aplicar o detector de metais numa perna. Quando eu entrei, o Manuel Salgado estava já ao lado dele, ambos a aguardar-me, percebi que já lhe afiançara da segurança do método, eu meio desconcertado pelo inesperado dum doente daqueles!
- Foi o Engenheiro Barracho que me mandou ter com o senhor doutor. Estava a fazer uns cavacos e saltou-me uma farpa ao bater com a marra numa cunha.
- Então deve é ir ao hospital…
- Já fui! Desinfectaram-me o buraco, deram-me uma injecção e disseram-me que não sentiam cá nada, que já devia ter saído ou será só um arranhão. Mas ainda me parece sentir a farpa cá dentro!
- Bem, vamos lá a ver…
Apito inconfundível! Três a quatro centímetros abaixo da virilha localizava-se qualquer coisa de metálico, de facto.
- Sabe o que vai fazer? Vai outra vez ao hospital e diga que… ah! Não diga nada! Diga que lhe dói muito e que lhe façam uma radiografia!...
Nessa tarde encontrei o meu novo “doente”.
- Então?
- Fizeram-me a radiografia. Tenho cá a farpa, dizem que está encostada à femural, que se infectar me operam, se não, que a deixe andar como se fosse um estilhaço de guerra!...

Vinte e dois – Um Pastor e um Javali


Naquela hora da tarde em que a luz se envolve com a terra numa intimidade que as confunde, seguia no jeep por um caminho extremo que os pneus rapavam a custo, regresso a casa depois de umas horas de cansaço a tratar uma vaca com um temível prolapso do útero. A seguia a uma curva em que se abranda e a poeira nos ultrapassa, quase indistinto na restolhada e na cor seca da terra vi um vulto a escapulir-se para uma giesta mas de que sobressaía, por detrás do ombro, a linha recta da ponta de uma espingarda. O gado estendia-se pela pendente do monte, cabeças no ar, espalhado como se tivesse havido a aparição dum susto, algumas ovelhas correndo ainda. Detrás da giesta uma cara espreitou receosa.
Era o Augusto. Todo sorrisos quando me viu. Parei, empurrei para a frente o vidro do UMM, gesto que me trouxe pó e um bafo quente de Verão trasmontano.
- Ah! Senhor doutor! Pensei que fosse o jeep da guarda!
- E então, se fosse a guarda?!
- O senhor doutor não ouviu agora uns tiros?! – e o homem olhou com ansiedade para um maciço de árvores – É que atirei a um porco montês que me saiu além, preso dum laço! Espere aí!
O homem desatou a correr os cerca de quarenta metros que nos separavam das árvores. Andou por lá meia dúzia de passos inquisidores, perscrutando o chão com os cães por perto, rabo a adejar. Acenou-me triunfante. Corri para lá com entusiasmo!
Era um macho solitário, grande, já velho, presas enormes saindo da boca aberta de onde escorria um filete de sangue, cheiro a fezes e a porco misturado com o de estevas da orla da mata. O Augusto estava eufórico, excitadíssimo!
- É esta espingarda, senhor doutor! Já foi do meu pai! Uma maravilha! As de hoje já não se fazem assim!
A espingarda era venerada como mais um ídolo dos muitos que os pastores criam e que andam sempre associados àqueles sentimentos atávicos e ébrios de se estar no limiar da abundância. Com apenas um javali. Que já no ano passado aquela velhinha de canos duplos e compridos lhe alimentara a casa de coelhos e lebres… e para perdizes?! Não falhava uma!
- Ora veja, senhor doutor!
Peguei naquela arma antiga, mirei pelos canos trouchados, já ferrugentos, muito picados, pensei, para os meus botões, no perigo de usar cartuchos de violenta pólvora celulósica naquelas câmaras fundidas para a suavidade da pólvora preta mas achei também que toda aquela devoção merecia ser encorajada:
- Caramba, Augusto! Com uma arma assim até eu, que quase nada vejo do olho direito, caçaria tordos!
Com visível esforço mas a que a excitação emprestava forças, pusemos o javali dentro do jeep. Do que resultou uma infestação de pulgas: conforme o bicho foi esfriando e sendo agitado com a trepidação do motor, elas foram saltando e durante semanas atacavam quem quer que fosse que se sentasse ou chegasse perto da viatura.
Avançámos para a aldeia, a quilómetro e meio em terra batida, em triunfo! Numa adega discreta, meio povo assistiu a pendurar-se o animal, pingão, esventrado e lavado com uma mangueira e borrifos de vinho. Foi desmanchado no dia seguinte. Provas para gáudio geral, fatia de lombelo para um guarda dos da floresta, entrecosto assado depois de estar dois dias de molho em vinho, sumo de laranja com rodelas de limão, alho e folhas de louro. Uma beleza.
Os ossos foram rilhados pelos cães que os disputavam numa desordem a que os donos punham regras com ameaças de pau e de gritos. A cabeça foi vendida a um caçador de rolas do Porto que a levou para embalsamar. Já no fim da festa apareceu o presidente da câmara com um pequeno séquito cheio de risos e amabilidades.
- Não venho cá para comer nada!
Vinha ver duma lista e de votos para Dezembro. Só às quinhentas acabaram com o pão, as febras, o vinho e o salpicão com que se acrescentou a ceia.
Para caça furtiva, não há como eles.

Vinte e três – O Pequeno Pastor   

        
Numa luminosa manhã de Domingo de Abril, a atravessar a corta mato o Monte de Morais das Lagas de Limãos para Gralhós, porque ia a caminho de Izeda, fiquei a ouvir por mais de meia hora, na descida a seguir ao Rabo de Gato, o uivo cortesão de dois lobos que ecoava nítido a vir dos vales viçosos de primaveril fenanco verde.
Encostado ao jeep, admirando a paisagem, fumando um SG Ventil, lembrei-me, então, duma história, acontecida era eu ainda garoto, com palco nestas bandas ermas, num extremo do termo tenebroso do Monte de Morais.
Era um fim de dia em tudo normal, só que as cabras regressaram à curriça sem o seu pastor, um rapaz ainda menino. Teria ficado perdido no vasto planalto de desolação e carrascada rala, couto de lobos e medos. Um deserto frio, povoado de tojos, sobros e azinhos anões, que a escuridão pintava de mitologias terríficas. Nesse tempo, as vias de acesso para lá eram caminhos incertos de barro vermelho, cruzando uma tira de macadame esburacado da estrada florestal, que o Inverno inundava e que o Verão transformava em buracos e torrões perfurantes dos pneus mais afoitos.
Aflição. Todo o povo procurou durante horas a fio o filho perdido com a devoção que o desespero torna mais fervorosa. Rebuscou-se cada contorno de fraga, sombra de esteva, fuste de árvore. Chamou-se com brados sonoros que ecoavam na noite que caía fria, averiguou-se cada reflexo de pingo nas folhas das plantas, cada par de olhos a reflectir os lumes dos lampiões de mão por entre as ervas. Horas depois, noite avançada, era só o silêncio e a toada plangente de orações. O gelo da noite caiu com o peso da fatalidade a abater-se sobre as gentes consternadas da aldeia. Menos para a mãe, para quem uma centelha de esperança fulgia ainda num coração contrito e quase a desfalecer.
Mas terá havido um Homem. Um homem de capa vasta capaz de suster frios, ventos e brumas, que o protegeu da chuva e dos ventos, um homem que intimou os lobos que rondavam a não assustarem aquele pequeno ser que era de Deus.
No dia seguinte, seco, descansado e feliz, o rapaz apareceu na cerca do quintal a acenar à mãe:
- Aou! Minha mãe!
Quem teria sido esse Fidalgo que lhe surgira no meio do monte vestido de capa e que aos lobos, aos ventos, aos frios e aos pingos da chuva ordenava a mansidão, a quietude e a temperança?
Nunca se soube, apesar da descrição pormenorizada do pequeno, a sua repetição aos que sobre o facto o interrogaram, na aldeia e em Macedo, onde fora tirar fotografia para os jornalistas e dera testemunho perante toda a curiosidade oficial e popular.
Nunca mais soube o que foi feito do protagonista dessa história ocorrida na minha infância e que eu ouvi contar gravemente em nossa casa. Ainda hoje, quando atravesso o Monte de Morais a corta-mato das Lagas para Gralhós, ao passar no termo de Castro, sinto que aquele pedaço inóspito de terra, votado quase ao desprezo dos homens, terá merecido uma noite o mesmo misterioso desígnio de quando nasceu Jesus, também numa terra de aridez e tantos perigos, anunciando-se a simples pastores.      
                   

  
    

        

     




[1] Da Colecção Acasos, n.º3, com capa de Victor Hugo, impressão Arte Pronta, ISBN: 972-8535-67-8 e Depósito Legal: 158217/00, Coimbra, Dezembro de 2000.
[2] Manuel Salgado (12.07.1941 – 2.01.2015), meu Amigo, foi o nosso chefe dos serviços administrativos na ACRIGA-Associação de Criadores de Gado, meu braço-direito desde o primeiro momento, elemento essencial para que tudo funcionasse bem, quer internamente quer no relacionamento com os lavradores e os nossos fornecedores.
[3] Ferranha, regionalismo trasmontano. Diz-se assim o centeio que se colhe em verde para penso do gado. Ferrez, em Portalegre e no Alto Alentejo, o mesmo que ferrejo. Na primeira edição em papel incluímos, nas páginas 147 e 148, um Glossário Breve de termos populares empregues. Nesta edição fazêmo-lo em notas de rodapé seguindo aquele texto e completando-o com o significado apresentado no artigo “Esbôço dum Vocabulário Agrícola Regional” pelo Prof. D. A. Tavares da Silva da cadeira de Ampelografia e Viticultura do ISA, in Anais do Instituto Superior de Agronomia, Vol. XII, fasc.º 2.º, 205-681, Universidade Técnica de Lisboa, 1941.
[4] Espadela: utensílio de madeira com que se bate o linho numa das operações, a espadelada, necessária no seu processo de transformação para fibras para tecido. 
[5] Meleia: acessório em cabedal sobre a cabeça e fronte dos bois ou das vacas jungidas para servir de almofada ao jugo e, com as franjas, impedir as moscas de importunar os olhos e o focinho.
[6] Soltura: diarreia.
[7] Gradura: feijão-frade, designação genérica de legumes em grão.
[8] Ervanços: grão-de-bico.
[9] Cevado: porco engordado para ser abatido para consumo.
[10] Vinho claro e fresco produzido tradicionalmente em muitas aldeias de Trás-os-Montes e obtido da fermentação de castas de uvas brancas e tintas misturadas sem critério objectivo.
[11] Uma das inovações então introduzidas pela ACRIGA-Associação de Criadores de Gado, a existência de walkie-tawlkies, de aparelhos nos jeeps e de uma central de comunicações por rádio nos seus escritórios em Macedo de Cavaleiros, com um repetidor na Serra de Bornes, instalada e com manutenção de Serafim Pires, cunhado do Manuel Salgado. Esta rede de comunicações numa altura em que não havia telemóveis foi uma vantagem e representou um ganho de eficiência na assistência médico-veterinária sem precedentes, poupando tempo e milhares de quilómetros nas deslocações pelas estradas e caminhos do nordeste trasmontano.
[12] Tronco: aparelho de contenção de animais fixo ao chão, em ferro ou em madeira, usado para tratamentos ou inspecção clínica, que faz com que haja segurança para os operadores.
[13] Libras: invólucros fetais incluindo a placenta. Livrar: expulsar o conteúdo uterino após o parto.
[14] Loja: compartimento ou dependência de uma casa onde vivem ou se guardam os animais, produtos e utensílios agrícolas. Pode ter várias designações mais específicas: loja das vacas; loja do porco; loja dos cavacos; loja da ferramenta; …
[15] Fragas: penhascos, terreno escabroso.
[16] Lameiro: prado natural típico da região de Trás-os-Montes e que produz um feno aromático; prado permanente.
[17] Os Médicos-Veterinários que trabalharam na ACRIGA nesse tempo, ou que connosco vieram estagiar e nalgumas vêzes tiveram trabalhos temporários, foram os Drs. João Pessoa Trigo, José Manuel Carvalho Neto, Guilherme França, Ovídio Nelson Rodrigues, Helena Velasco, João Gonçalves, João Paulo Costa, Assunção Rosinha, Nuno Morais... Também tivemos estagiários: Helga Waap, Mário Hilário, … Um dia, nas minhas memórias, detalharei com vagar a excepcional equipa e alguns dos episódios passados! Tal como com os outros amigos e funcionários: o João Carvalho, o Zé Alexandre, a Isabel, a São, a Amélia, as Fernandas, o Abel Valadar, o Jorge Carvalho, o Toninho e o Leonardo Vila Franca, a Lúcia, o Toninho Carneiro, o Neves, o Manuel Fátima Pires, o António Rodrigues, tantos outros e um em especial, o Zé Maria Cristino.
[18] Saltar, salto: copular, cópula.
[19] Vianda: mistura de qualquer espécie de alimento, água, farinha e restos para dar aos porcos.
[20] Arampeço: problema imprevisto, contrariedade.
[21] Medrar: crescer bem, desenvolver-se bem.
[22] Burliça: com cio.
[23] Levantar: entrar em cio.
[24] Termo: área à volta duma povoação e que pertence aos seus habitantes ou fica no seu limite geográfico.
[25] Hipocalcémia: baixa de cálcio no sangue. Situação espectacular que ocorre geralmente pós-parto e em que o animal está caído no chão quase inerte e como que para morrer, sendo a sua recuperação também espectacular após administração de cálcio endovenosamente, pondo-se em pé e, na maioria das vezes, como se nada se tivesse passado… 
[26] A primeira feira realizada em Podence foi no dia 13 de Janeiro de 1980, sendo então Presidente da Câmara de Macedo de Cavaleiros António Joaquim Ferreira, conhecido como “Pescadinha”. Este dado foi-me dado pelo meu amigo António Carneiro, o grande impulsionador dos Caretos de Podence.
[27] Preguiçadeira ou preguiceira: tábua articulada normalmente encostada no tabuado dum escano e que se desce para servir de mesa. Permite aos utilizadores estarem à lareira e comerem ou fazerem outro trabalho sem ter de se levantar ou de sair do lar onde se encontra o escano.  
[28] Este conto Um Enigma foi incluído n’ “A Terra de Duas Línguas – Antologia de Autores Trasmontanos”, da Academia de Letras de Trás-os-Montes, editada sob a coordenação de Ernesto Rodrigues em 2011. Assumi, com os personagens do conto, o compromisso de, à semelhança do que fizeram os meus antepassados, nunca revelar a quem quer que seja a localização nem mais pormenores sobre esta incrível aldeia de Trás-os-Montes. Não resisti, passados estes anos, a tentar identificá-la para mim próprio no Google Maps: não aparece! E tentei voltar lá sozinho: andei às voltas pela serra, voltando várias vêzes ao ponto de partida e cruzando várias vêzes os mesmos caminhos… Em dias claros de Inverno, a partir de nossa casa de Latães, em raros momentos avista-se um breve fumo com o binóculo, quando o dirijo para o ponto em que suponho se encontrar mas fico sempre na dúvida se será da lareira a que estive sentado nessa noite ou se será apenas algum esporádico pastor, queimando uma giesta para se aquecer ou para nalgumas brasas passar uma linguiça para a comer com pão… 
[29] Garrafada: forma de administração de medicamentos pela boca e com auxílio de uma garrafa. Segura-se e puxa-se a cabeça do animal para cima apertando e tracionando com a mão com um dedo em cada narina e introduz-se o gargalo da garrafa, de preferência de plástico, na comissura dos lábios e pelo espaço da barra ou diastema, por cima da língua, fazendo o líquido escorrer para dentro da boca.
[30] Amover: abortar.
[31] Boca-rasa: inflamação do palato.
[32] Cortinha: pequena extensão de terreno cultivado, vedado por muros de pedra.
[33] Cortação: dó. Infinita pena.
[34] Assadouro: respiração muito acelerada.
[35] Curriça: construção, normalmente com uma só porta e um só piso, cobertura em telha vã, onde se abrigam as ovelhas ou as cabras. Também há quem escreva corriça. Construção ligeira, de pedra seca, em geral, onde se abriga o gado. É no campo, afastada do assento de lavoura ou da aldeia. 
[36] Canhona: ovelha.
[37] Carreto: pequeno carro de madeira coberto e por vezes também revestido de lata, com uma porta, que serve de abrigo para a chuva e de dormida para o pastor nos períodos de quando o gado “anda por lá”, longe do povoado, para aproveitar os pastos.
[38] Bardo: curral de ovelhas, móvel, constituído por uma série de cancelas de madeira ou metal especadas no chão.
[39] Poula: campo para pasto e que se encontra de pousio da cultura habitual (normalmente centeio ou outro cereal ou tremoço).
[40] Tolher: embaraçar, paralisar, deixar de servir para função normal.
[41] Curto: inflamação da mama. Mamite.
[42] Aguadilha: líquido patológico expulso pela mama em vez de leite ou formado em abcessos mas menos espesso que o pús. Exsudado.
[43] Agrade: peça de um carro de bois.
[44] Sécia: cria, animal bebé.
[45] Cresta, fazer cresta: reprodução, reproduzir-se.
[46] Encosto: espírito ou alma penada de um morto que se manifestaria fisicamente numa pessoa viva ou num animal vivo…