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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

GUERRA JUNQUEIRO

Esta casa foi construída em 1883
pelo Juiz José Felizardo Rodrigues de Sousa
e ficou conhecida em Macedo como a
casa das Senhoras Sousa ou
casa das Sousas.
Demolida em 2010. 
Já não existe a casa dos meus bisavós (onde viveram as minhas tias Sousas e onde morreu a minha avó), demolida recentemente para dar lugar a uma rua perpendicular à rua Pereira Charula. Mas existem as histórias do muito que nela ocorreu. Visita relativamente frequente da casa foi Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 1850 – Lisboa, 1923), o poeta, candidato a eleições e deputado pelo círculo de Macedo de Cavaleiros para a legislatura de 1880, amigo do meu bisavô, o juiz Sousa (e também frequentador da casa dos sogros deste, os Morgados de Macedo, também conhecidos como Oliveira).


Uma vez, numa dessas visitas, pediu para ficar com um crucifixo que ainda hoje existe na nossa família. Este gesto pode parecer-nos esquisito, por parte do escritor, célebre por ter sido um denodado autor de obras ímpias, anti-monárquico e republicano entusiasta, tão assazmente anticlerical e anti-religioso que sobre ele escreveu o Abade de Baçal: “Muitas das obras deste brilhante génio estão traduzidas em espanhol, inglês, francês e italiano e há apreciações críticas delas em diversas revistas estrangeiras, da máxima competência, como na Alemanha, França, etc., sendo de lamentar que um talento tão universalmente apreciado se deixasse obscurecer algumas vezes por composições ímpias como as do mais vulgar e nulo candidato à fácil popularidade das turbas ignaras, que vêem simplesmente no desbragamento da adjectivação a característica do génio. Ou será que esta popularidade lhe resulta em parte muito sensível desta mesma razão? Seja como for, Junqueiro é uma glória da terra que o viu nascer.”

Contudo, GJ veio a ficar mais desiludido com a República do que antes estivera com a Monarquia e veio a inflectir a sua posição anti-religiosa.

É um autor cujo percurso de vida – e postura perante a morte – deverá merecer, num ano em que tanto se fala do centenário da República, algumas reflexões. Cuidadosas reflexões.

O interesse de GJ por crucifixos não era apenas o de um coleccionador de antiguidades e de bric-à-brac. Era um interesse pela substância dos crucifixos. O seu coleccionismo era simbólico do verdadeiro coleccionismo que fazia no seu espírito e onde permanentemente, numa ebulição que o aterrou pela vida fora, fermentavam os pensamentos do remorso, da plenitude e da eternidade.

Raul Brandão, nas suas memórias, descreve uma das cenas mais patéticas e importantes em que foi confidente do poeta e pensador. Encontraram-se no Porto (1921), aonde tinha ido expressamente a pedido dele, GJ, e lhe fez confissões terríveis em que lhe declarou ter concluído a sua filosofia, milhares de páginas de revisão do que fora a sua vida. “O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade”. Outra das coisas que desabafou então foi a sua posição relativamente à República e à Monarquia: “Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação. E agora vamos acabar...”.

Já quando se discutira a bandeira nacional, após a implantação da República, GJ tinha feito uma proposta em que, deixando de haver a coroa real, se mantinham as cores azul e branca em vez das verde e vermelha que eram nada mais nada menos do que as do partido republicano e, como tal, sectárias. E propunha o azul e branco como as cores mais abrangentes já que tinham sido as cores nacionais desde D. Afonso Henriques, atravessando toda a nossa história, com os seus momentos de glória e as suas crises.

Hoje já não existe a casa das Sousas, nem Guerra Junqueiro, nem reis reinando em Portugal, nem está em vigor a bandeira azul e branca. Mas existe a possibilidade de se pensar em tudo isto não como uma época passada mas como uma permanente busca da verdade, como o fez Junqueiro ao longo da sua vida.

Guerra Junqueiro, o poeta-génio de Trás-os-Montes, morreu em Lisboa, em 7 de Julho de 1923, ao fim de uma vida em que os seus crucifixos de madeira, marfim e cerâmica se foram espiritualizando. O seu amigo Raul Brandão acompanhou-o até ao fim:

“Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão, com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta”.

Neste ano de comemorações, é interessante revisitar os nomes de algumas das ruas de Macedo na perspectiva de que os mesmos estão vivos para nós, como fonte de inspiração e sabedoria, tal como este de Guerra Junqueiro, um trasmontano inesquecível.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O PEDIDO DE CASAMENTO


© Manuel Cardoso


Ensolarado e com calor, o doutor Carvalho subiu suavemente as escadas de cantaria da casa e disse a uma criada que o anunciasse ao senhor morgado. Vinha pedir a mão de uma das filhas de Sua Excelência. A conversa passava-se no salão grande e apanhava o morgado desprevenido.
- Oh, senhor doutor Carvalho, tenho que ouvir o que pensa a minha Josefa. Ó Josefa, ó Josefa!
Uma das criadas apareceu.
- O senhor morgado chamou?
- Chamei pela senhora. Onde está?
- A senhora foi só lá abaixo. Eu chamo-a já.
- Chama e diz-lhe que venha que está aqui o senhor doutor Carvalho. E arranja-nos aí qualquer coisa... o senhor doutor toma um chá frio com rodelas de limão? Talvez uma água acidulada... Eu também. Olha! Serve aí na sala de dentro que está mais fresco!
A Josefa chegou sem estranhar a presença do doutor apesar de ser a primeira vez que vinha ali a casa sem ser numa tarde de procissão e festa.
- Olhe, está aqui o senhor doutor Carvalho a pedir uma das nossas filhas para casar com o doutor Sousa.
- Qual delas?
- Ora, senhora D. Josefa, eu não me atrevo a escolher com qual das duas. Acredito que sendo ambas filhas e educadas por vossas excelências...
- Quanto a isso pode crer. E o meu marido? Que acha?
- Bem, eu, desde que a senhora esteja de acordo…
- Pois devo estar. E então, se tem que ser que seja com a mais velha, com a Cândida.
- Fico penhoradíssimo a vossas excelências!...
- Eu vou chamá-las.
Vieram como quem vem para fazer companhia ao chá e, depois dos cumprimentos e de se sentarem à mesa, a D.Josefa deu-lhes a novidade:
- O senhor doutor Sousa mandou fazer um pedido às meninas pelo senhor doutor Carvalho e o pai e eu achamos que seja a menina, Cândida. Vamos ter que pensar na resposta a dar... daqui a uns dias acertamos um prazo, senhor doutor Carvalho. Depois mandamos notícias.
Assim sem mais despediram o doutor Carvalho mas não sem antes este ter agradecido o chá com limão:
- Com este calor, sabe divinamente! Ainda por cima bebo-o como se fosse um brinde de bom augúrio ao futuro do meu querido amigo José e, evidentemente, da gentilíssima menina senhora dona Cândida!...
A Cândida nem piou durante o tempo todo. Apenas se exprimia com o olhar, surpreendidíssimo pelo inesperado.
- Ora, respondeu sacudida a D.Josefa, deixe-se dessas retóricas. Guardamos isso para um brinde a sério quando o José cá vier a casa... ele chama-se José Felizardo, não é?
- E se a senhora D.Josefa me permite, felizardo sê-lo-á mais ainda quando lhe der a boa nova...
- Não, não, doutor Carvalho! As novas dá-las-emos nós daqui a uns dias. Digamos que não dizemos que não. Aqui o senhor morgado e eu vamos acertar uns detalhes e depois mandamos recado.
Os detalhes demoraram bastante. O morgado escrevera a pedir notícias certas sobre o doutor Sousa e demais parentela. Recebera informações de Argemil e de S.Pedro de Padrela mas tardavam de Lisboa. Dizia-se que havia aí qualquer coisa e que o dr. Sousa até mudara de nome...
Tantas delongas enervavam o José Felizardo que, já desesperado, resolveu dirigir-se por escrito ao solar:

Ilustríssimo Senhor Morgado

Por intervenção do nosso amigo comum o Dr. Carvalho mandei pedir a V.Sª. a mão de sua filha mais velha por julgar que serei feliz realizando o meu casamento com ella.
Respondeu-me o medianeiro que V.Sª. annuía ao meu pedido; mas parece que tem havido defficuldades suscitadas depois dessa annuencia e que dahi tem resultado uma quase incerteza, da qual preciso sair.
Dão-se circunstâncias pelas quais necessito tomar com a maior brevidade uma resolução definitiva, e por isso nesta mesma data me dirijo ao nosso Revº. Abbade pedindo-lhe que me trate deste negocio com a seriedade que o caracteriso, e que me dê a resposta que preciso por toda esta semana sem falta. - No entanto entendi que me devia dirigir tambem a V.Sª. por este meio para lhe significar que me julgarei summamente feliz se V.Sª. me quizer dar a honra de entrar no número da sua família, e que muito desprazer sentirei se isso não chegar a realizar-se. Realize-se porem ou não, (o que, como já disse é necessario decidir no prazo indicado, ficando eu certo que no caso de se me não dar uma resposta é o mesmo que em nada se tivesse fallado ), digo faça-se ou não, eu sou e serei

De V.Sª.
Attº.D.or. e Ob.mo. Am.º e C.

Macedo, 17 de Julho de 1870

José Felizardo Rodrigues de Souza


O morgado releu a carta, pousou-a na mesa e ficou a pensar, olhando pela sacada as hortas onde uma data de gente se afadigava na rega, como iria poder apressar o assunto. De facto, o dr.Carvalho pedira uma das duas filhas em casamento. A Josefa sentenciou logo que seria a Cândida. O José soube-o logo, daí agora carregar na tecla. Porquê hesitar? Estavam esclarecidos os antecedentes do homem: um tio padre pagara-lhe os estudos em teologia e ele afinal apareceu bacharel em direito. Foi esperto. O país precisava mais de advogados, que tinha a menos, do que de padres, que tinha a mais. Mesmo as vozes sobre Lisboa, soubera-se: mudara de nome ao fazer o Crisma: chamava-se Felizardo José e passara a chamar-se José Felizardo. Modas.
Ainda antes da ceia falou no assunto à senhora.
- Temos que dar uma resposta, Josefa. Disse que era a Cândida, será a Cândida. Porquê agora tentar que seja a Ana Maria?
- Se o meu marido pensa assim, pois que seja. Chama-se o senhor Reitor e ele que venha cá com o advogado.
E vieram. Encontraram-se no salão grande da entrada os Morgados, o Senhor Abade, Reitor de Macedo e irmão dela e os drs., o José e o Carvalho. Em cima da mesa do centro, sobre uma salva de prata, estavam uma garrafa de cristal em balão e um velho cálice de vidro grosso da fábrica do Rato. Conversas feitas, o Morgado encheu o cálice de aguardente:
- Pois que então seja à saúde da nossa filha e do senhor doutor que lhe vai ser o marido!
Deu um golo e estendeu-o à D.Josefa. A seguir foi cheio de novo e desta vez foi o Abade Tomás Aquino a fazer a saúde. Bebeu em dois tragos. Cheio outra vez, coube ao pretendente fazer um agradecimento e saudar os donos da casa e a menina Cândida.


Tiveram um casamento feliz mas com um desfecho trágico. Ainda hoje existe o cálice do pedido, preciosamente guardado no armário dos vidros da sala de jantar. Na foto, o casal em 1872.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Pulseira de Prata

© Manuel Cardoso

Quando foi preciso reparar o fecho do cordão de ouro e os brincos de esmeralda da D.Josefa, o senhor morgado, Bernardino José, aproveitou a boleia e comprou no ourives uma pulseira de prata de dois aros torcidos para uma das suas favoritas de travesseiro, a Custódia do Vilar.
Ofereceu-lha numa noite especial para aplacar os cuidados e medos em que ela andava porque sabia que o seu irmão, de maus bigodes para aquele romance, apregoara na praça que, na próxima vez que o morgado fosse lá a casa, lhe daria a ele desanda tamanha que a D.Josefa demoraria uns mêses para lhe consertar os ossos.
E com efeito, nessa noite, em casa da Custódia, ainda mal aquecido o colchão, ouviu-se um burburinho nas escadas da varanda. Ela começou com lamúrias baixinho mas ele, espadaúdo de ombros e mais ainda de alma, levantou-se, vestiu-se, ajeitou o coldre do St. Étienne para o ter à mão, pôs o chapéu de abas e apertou calmamente os alamares de prata do vasto capote de saragoça. Desenfiou do bolso a sua navalha de lâmina de Toledo. Ela benzeu-se. Ele abriu a porta.
Uma dúzia de homens dispunha-se escada abaixo, vultos contra a parede, degraus de granito de esfrega clareando com o luar. Ficaram-se todos por um silêncio que tudo dizia e o morgado desceu os degraus um a um, lâmina refulgente a fingir que limpava as unhas, cotovelos para os lados a avolumar mais o capote. Já no último degrau, com um assobio, chamou o moço que, num palheiro adiante, lhe guardava o cavalo. Dobrou a navalha, enfiou-a no bolso e, num garbo que lhe era reconhecido:
- Senhores, boa noute vos dê Deus!
Atarantados, enrolaram umas “boas noutes senhor morgado” que não saíram em uníssono. E toda a raiva que os juntara ali ficou esvaída em respeito, um respeito atávico resumido naquelas palavras.
#
A D.Josefa não tinha ciúmes. Depois de lhe dar quatro filhos voltara-se para ele e dissera-lhe que já chegava, que estava cumprida a sua parte. Enfiara-se na alcova da sala pequena e não mais lhe visitou o quarto, um quarto enorme e frio de tecto lavrado e de paredes forradas com telas largas e graves de santos. Ele respeitou-lhe a vontade e obedeceu-lhe mais como filho que aceita do que como marido que compreende. Mais novo catorze anos do que ela, era-lhe difícil contrariar a senhora que o levara ao altar com um dote de truz. Ainda por cima cheia de força apesar de seca e pequena, e de capacidades, ou não herdara do tio, Abade de Medrões, confessor privado dos Marqueses de Fronteira, uma inteligência de assombro? Era ela quem administrava a casa, contratava e despedia, decretava ordens aos caseiros das quintas mais longe, recebia rendas das aldeias onde tinham foros, negociava as madeiras e os animais, cobrava os juros das letras de empréstimos, executava a liquidação destes nos casos arrastados e insolúveis. Ela fazia tudo.
De forma que a ele sobrava-lhe tempo. Para ir às feiras e arraiais, à caça e às visitas aos amigos, que tinha muitos – e às saias, que tinha algumas. Mas guardava à sua Josefa um grande respeito e, até, afeição. No bolso do colete trazia sempre um medalhão forrado de veludo, dentro do qual se estampava a figura magestática da sua Josefa. Trazia-a sempre junto ao peito como uma raridade extravagante e todas as outras lhe tinham admirado já o passe-partout que se abria e que, no centro de uma cercadura de bronze, tinha o daguerreotipo da fidalga pintado com um vestido de seda, brincos de ouro e olhar de Miranda.
A par dessa aparente tolerância em matéria de raparigas, ela tinha-lhe definido claramente duas ou três linhas de intransigência: nada de se meter com casadas; nada de jogatinas ou bebedeiras de perder o tino; nada de jóias para as amantes. Com o seu nariz de feitio administrador, sobretudo este último ponto lhe era importante já que “a desforrar-se de capital, que o desforre na família. Prata, ouro e jóias, só cá para dentro, para poder ser herdado – se for para o resto, perde-se e diminui-nos!”.
Levavam assim uma vida de harmonia, ele deixando-a mandar e ela aturando-lhe as aventuras e as manias – que tinha algumas. Fidalgo desde sempre, afinara um bom sentido para a mesa e tinha um paladar apurado. Ela era intransigente em matéria de contas – ele era-o nos cozinhados.
Um dia, sentado à mesa, chega-se-lhe uma travessa de ervilhas. Espetou o garfo. Saltaram para um lado e para o outro.
- Ah, não estão cozidas! Então hoje temos balas! – disse, mais alto de modos a que se ouvisse na cozinha.
Pegou na travessa, atirou-as ao chão fazendo logo correr os seus galgos de caça a farejar o chouriço.
Com estas, a D.Josefa deitava as mãos à cabeça. Porque não queria que o marido tivesse queixas de casa. Queria-o bem vestido, bem alimentado, bem contente. Era, por isso, um drama quando havia reclamações de cozinha e ela logo avançava corredor adiante a dar descomposturas e a provar das panelas não fosse a cena repetir-se.
“Olha lá, Efigénia, cozeste as batatas com a cebola lá dentro como gosta o senhor morgado? Uma cebola para três batatas? Ouve lá, Ricardina, o caldo do senhor morgado foi mexido com a colher de prata?”, pormenores que ele notava.
Então este da colher de prata era um mistério e um superlativo que fizera fama e sobre o qual havia, até, apostas. Em casa dos Sarmentos ele provara de dois caldos verdes e logo afirmara, sem margem para dúvidas, qual é que tinha sido mexido com a colher de pau e qual é que tinha sido mexido com uma colher de prata.
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Depois de uma ausência para a feira de Chacim, chegado ao solar num fim de tarde, foi informado por um dos criados que a senhora saíra, levara a égua branca e fora também o menino José Manuel no Riscão. Tinham ido ao Vilar. Tinha vindo recado a dizer que morrera a Custódia. O senhor morgado sentiu um súbito calor.
- Morreu a Custódia!? E que foi lá a fazer a senhora?
- Não sei, senhor morgado.
Em casa também não sabiam. Só havia recado que pela noitinha a senhora estaria de volta. E esteve, o tempo de ele fazer um semicúpio e mudar de roupa.
- Então, Josefa, que foi a senhora fazer ao Vilar?
- Apresentar pêsames e contribuir para o enterro.
- E para isso não estão lá os nossos primos?
- Estão mas não estão para tudo. A coitada morreu, o resto já não interessa. Vou ver como estão as coisas pela cozinha.
Ele percebeu a não-conversa. Deixou-a ir. Falariam mais tarde sobre a morte da Custódia.
Na cozinha era tanta a azáfama como a fumarada.
- Clementina, já começaram com o caldo? Hoje mexe-lo com a colher de pau, a queimada.
- O senhor morgado hoje não ceia, senhora?
- Ceia, ceia... ceia e bem!
- Mas vosselência...
- Mas que é isto? Fazes porque eu mando e pronto. E sou eu que lho sirvo, ouviste?
- Sim, senhora.
Ao estar pronto, tirada a tampa da panela de tripé a fumegar, foi a fidalga quem se ocupou de o lançar no prato.
O morgado começou a comer o caldo pelas bordas, escaldava. Sorveu e ficou pensativo. Havia ali qualquer coisa... provou outra vez. Havia ali um travo a madeira... mas não. O gosto não era o de sempre mas era impreciso o defeito, não lhe parecia ter faltado a colher de prata. Talvez de estar tão quente. Pousou a colher. Todos achavam que sim, que estava muito quente. Esfarelou uns miolos de pão para arrefecer. Recomeçou a comer. Topou qualquer coisa no fundo, sob as couves.
A D.Josefa, em pé ao lado dele, aguardava.
Com a colher tacteou melhor e levantou, surpreendido e boquiaberto, envolvida nos fios das couves, uma pulseira de prata de dois aros torcidos.