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segunda-feira, 16 de agosto de 2010

ANTES QUE ACABE SÓ EM PIZZA

No Verão passado esteve em nossa casa, em Latães, a Rosalba Facchinetti, escritora, em trânsito numa ida e volta entre S. Paulo, no Brasil, e Angellara, lugarejo no Cilento, Salerno, em Itália. Esta rota do Brasil à Itália e que passa pela Serra de Ala, aqui em Trás-os-Montes, enche-nos a casa, periodicamente, de exotismo exuberante – a Rosalba fala imenso sobre coisas raras e interessantes – e apetecido encanto. Deixou-nos um livro seu, intemporal e cheio de carácter, “um pouco da minha alma ítalo/brasileira”, cujo título é “Antes que acabe (só) em pizza”. Em italiano: Sàngue non diventa àcqua mai!

(“acabar em pizza” é uma forma de dizer quase como “ficar em águas de bacalhau”. Digo quase porque as pizzas podem-se comer enquanto que ninguém pensa beber as águas de bacalhau...)

A Rosalba foi levada para S.Paulo com três anos e teve uma vida de “paulistana e 4 filhos ítalo-brasileiros”. Diz que entrou para a escola e nunca mais saiu até hoje, sempre escrevendo, do jornalismo à pedagogia, à ética, à filosofia e a títulos que aguçam a curiosidade como sejam “Palavra de Ordem”, “Carol & Daniel”, “Com os dois pés no mesmo sapato” e “Amor e saco”. “Mas a minha ligação com o Cilento, minha origem, é mais forte do que a distância geográfica e perdura no tempo. Eu não a perdi, faz parte do meu DNA, é memória atávica, veio no leite materno, na cantiga de ninar, nas histórias contadas nas festas, nas reuniões familiares… e quero passá-la adiante”.

Este passado não é importante por ser aquele paraíso perdido cujas amarguras os anos fizeram esquecer e cuja felicidade as recordações teimam em dourar. Neste caso esse passado existiu sem essas reminiscências, foi um passado anterior aos seus três anos de idade. E não deixa de ser importante, tão importante que a Rosalba quer evitar que ele não ‘acabe só em pizza’. Porque não é só o passado: é toda a cultura que vai com a bagagem e com a alma de quem emigra.

Os “imigrantes italianos vindos do sul da Itália para S.Paulo, em grande número da região do Cilento, não trouxeram apenas a receita da pizza em sua bagagem. Trouxeram também o molho e as ‘brasciolla’ para servir nas cantinas, o falar alto e gritado, a música, o amor à família, a vontade de vencer e o gosto de fazer qualquer reunião se tornar uma grande festa. Trouxeram a sua história para misturá-la com a daqui e tentar criar uma nova. Essa mistura é tão saborosa quanto a pizza”.

Conservar a memória da identidade anterior é uma forma de se sobreviver no tempo, de manter o carácter e celebrar o êxito. Testemunhar a experiência de uma vida. Ler este livro, infelizmente não editado em Portugal mas acessível aos nossos leitores que estão no Brasil, é ler um exemplo para trasmontanos que hoje estão por todo o globo, para celebrarem a sua cultura de origem. Antes que essa cultura fique diluída completamente tanto na vaga moderna do país que os acolhe como na transformação deste nosso torrão que lhe deu origem.

domingo, 4 de novembro de 2007

Latães

©Manuel Cardoso

A aldeia é pequena mas tem um nome erudito. Virá de “latanes”, em latim, aquilo que está escondido.

Já foi há uns anos. Manhã de novena de bofarra (diz-se por aqui que a bofarra, o nevoeiro, quando vem com o frio do inverno, dura uma novena!), tinha ido à aldeia tratar de um animal qualquer. Não me lembro qual, porque o que se passou a seguir apagou-me essa memória. Nesse tempo, eu deslocava-me de jeep nas deambulações pelas aldeias, um UMM Alter II cheio de audácia, capaz de façanhas de que tenho saudades. Como tivesse que seguir para Corujas, aldeia vizinha, e por alcatrão fosse uma grande volta, perguntei como poderia atravessar pela serra, poupando caminho. Lá me explicaram. Mas, ou porque não visse a derivação com a bruma, de tão densa que estava, ou porque me parecesse mais batido o caminho que subia – quer-me parecer hoje que uma providência feliz, de qual trasgo benfazejo!, me dirigiu então – fui seguindo por umas rodeiras, no meio de giestas, que em breve esmoreceram a pista e se apagaram. Contudo, a luz estava mais forte no meio do cinzentão do dia e eu segui, sempre a subir, tombando as plantas com uma aceleração a baixa velocidade, explorando o terreno.
De repente, momento de revelação e plenitude!, dissipou-se a névoa e fiquei num alto, luminoso e fantástico!
Um mar de nevoeiro estendia-se sob um sol brilhante, céu azul puro, serras ao longe, quilómetros e quilómetros ao longe!, como se fossem ilhas: Bornes, Santa Comba, Marão, Alvão e Padrela; de Espanha, S. Mamede, os Montes de León com La Cabrera – a nossa Sanábria – escondidos atrás da Nogueira. Tudo nítido, numa nitidez absoluta. Parei o jeep. Saí.
Ar frio. Luz, uma luz intensa, uma luz imensa. Entre mim e as serras, o nevoeiro, branco, fantasticamente branco e a mover-se, como num filme. Uma imensidão mesmo. Só, ali, numa nesga de espaço, terreno breve de restolhada de centeio, um carvalho e um sobreiro a pontificar neste ponto mais alto da Serra de Ala, Alturas de Latães, como confidentes de um episódio que era partilhado comigo. Uma emoção tão grande como a paisagem. Tudo inesperado. Porquê naquele dia e ali só eu entre a terra e o céu? Talvez do frio que corria numa aragem cheia de emoção, limpei duas lágrimas. Que lugar tão bom para fazer uma casa!
Passaram-se anos.
Vivíamos na baixa de Macedo, no rés-do-chão da casa de família, lugar aconchegado mas a antítese: pouca luz, horizonte a morrer logo a metros, no muro do quintal e nos telhados do velho palheiro e na antipatia dos telhados dos vizinhos.
Numa ida à Escócia, lugar maravilhoso que para sempre me ficará memorável, tinha podido recordar-me vezes sem conta daquele meu episódio trasmontano. Havia muitos cenários parecidos, era quase o mesmo que Latães mas com castelos! Semanas depois de regressarmos, como sequela de um estiranço em Aberdeen em que andámos quase oito quilómetros a pé para descobrir onde ficava a velha catedral e a visitar, a Mariana adoeceu com uma pneumonia. Que se veio a transformar numa pneumonia de repetição. O médico aconselhou apanhar sol, muito sol. Lembrei-me então das fragilidades dos pulmões dos gémeos prematuros, da necessidade do sol, senti vontade de mudarmos de casa. Lembrei-me do terreno de Latães.
Para aqui viemos. Construir a casa foi o cumprimento de um desígnio. Pagá-la-ei ao longo da vida. Um fardo que terei para sempre? Talvez antes um sonho que viverei para sempre, um sonho que começou na manhã em que atravessei de jeep de Latães para Corujas pela primeira vez.
Tem estado soberbo o horizonte, este Outono. Vê-se tudo até ao fundo, como dessa vez. Ainda hoje estive a ver o pôr-do-sol, alguns aviões a riscar o céu – que a essa hora fica tingido de um violeta que só aqui! – e a respirar fundo. Os tons estão verdes, demasiado verdes ainda, folhas que teimam em não cair e de amarelos atrasados. Há mesmo algumas flores! Estarei a viver do lado de lá / de cá do espelho?????