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domingo, 9 de janeiro de 2011

Um livro que me ofereceram

Moedas Romanas
 Achados no Alto Tâmega e Barroso
Fernando Cantista Pizarro Bravo
Câmara Municipal de Chaves
2006

Há tempos ofereceram-me um livro. Um destes livros decorativos, capa com design cuidado e papel de luxo de gramagem pesada, fotografia profusa a acompanhar um texto sóbrio e espaçado. Um destes livros – pensei eu ao pegar-lhe pela primeira vez, ao desembrulhá-lo porque me chegou pelo correio – que são bons para ficar em cima de uma mesa a encher espaço e a encher o olho, mas cujo recheio cumpre a função menor de apenas justificar o empate de dinheiro com que as câmaras têm subsidiado tantas edições inúteis. Um livro pesado, de título especial: “MOEDAS ROMANAS”, a que se segue um subtítulo “Achados no Alto Tâmega e Barroso”. Como me era enviado por um amigo de Chaves e que era o seu autor, pessoa consideradíssima, pousei-o gravemente em cima da papeleira da sala a aguardar um dia, de vagar e vontade, para lhe pegar e agradecer.


Só que o tempo encarrega-se de nos envolver nos seus caprichos e fados e os dias foram passando sem que eu lhe desse uma atenção devida. Então mal o folheei, apenas ficando com a impressão de ser bastante mais do que os meus preconceitos formados sobre ele – mas mais nada do que isso. Entretanto meteram-se assuntos que relegaram para o esquecimento os dias da minha memória recente e acumularam-se sobre ele, no tampo aberto da papeleira, estratos e estratos de jornais, revistas, outros papéis e livros, ocultando-o e subtraindo-o à minha atenção e interesse imediato. Passei pela vergonha de receber um telefonema do autor a saber se o dito me tinha chegado ainda antes de eu o ter agradecido, como devia! Que vergonha e que falta de chá a minha! Mas nem assim o pus em cima da pilha. Ficou a aguardar ainda.

Até que numa destas manhãs de fim-de-semana, colhendo uma braçada de papéis e segurando com firmeza uns quantos volumes desirmanados para arrumar em prateleiras, me volta a aparecer o dito cujo, muito azul e branco com duas moedas de prata e ouro na capa, muito inconveniente porque o seu tamanho não dá para uma prateleira normal, e então me surge com ele a determinação de cumprir o dever de o ler ou, pelo menos, de o folhear de modo atento, para dele poder dar notícia e encerrar capítulo tão incómodo, escrevendo um agradecimento para Chaves e remetendo-o para o armário dos livros menos necessários no dia-a-dia – sentenciei interiormente. E como adivinhava umas horas penosas para cumprir tal desígnio, mentalmente preparei-me para o sacrifício e abonar assim em meu favor a perda de tempo que iria ser. Num repente passei as folhas como um baralho de cartas, apenas para introdução na tarefa, e mais uma vez se materializou a ideia de ter pela frente um monótono catálogo de moedas, com anotações e minudências numismáticas de coleccionador obsessivo. Mas tinha de ser. Era o dia. Suspirei.

Levei-o para a mesa do computador, pousei-o sob o candeeiro articulado e comecei a sua análise. Levantei pela primeira vez as abas da sobrecapa e tive uma surpresa: por dentro a capa dura é forrada a tecido azul liso, suave ao toque, com o título e o subtítulo gravados em dourado sóbrio e sob eles as tais moedas, mas aqui sem cor, apenas em relevo afundando-se no tecido e no cartão, como dois apagados enigmas. Muito bem concebida, esta capa! Depois o cólofon, onde uma simpática e imerecida dedicatória fez germinar em mim um remorso ao relê-la, elegantemente manuscrita. Segue-se uma página de apresentação do autor, de agradecimentos e de dedicatória pública à sua Família, uma Família em sentido intemporal e eterno. Nova folha, com uma breve mas eloquente sucessão de quatro pequenos parágrafos em que o então Presidente da Câmara de Chaves justifica o livro e o seu tema e agradece ao autor o seu trabalho. E chega-se ao Prefácio, em que a primeira frase parece escrita premonitoriamente para mim, uma frase de aviso ao leitor que “possui em suas mãos uma obra que trata de um assunto que nem sempre tem a consideração que lhe é devida”. Que sibila terá soprado tal ideia ao autor do prefácio?! Fiquei sorridente com a coincidência e fui ler o nome dele, que é, nada mais nada menos, que Manuel João de Morais Sarmento Pizarro Bravo, filho do autor, historiador. Em duas páginas agarra-nos para a importância do estudo das moedas, situa-nos no contexto da história do dinheiro e na importância civilizacional e cultural do seu uso, posiciona-nos geograficamente para compreendermos a importância do conteúdo deste livro. Três importâncias complementares a que junta uma outra: a da visão e experiência do autor como conhecedor da Terra e da Matéria desta obra. A partir daqui tomei consciência da minha grande ignorância e fiquei apto a compreender a Importância do livro que tinha por diante. E passei a lê-lo com a reverência de quem penetra numa floresta virgem e fica embasbacado a cada árvore que vê.

Cuja primeira tem logo a ver com uma das tais moedas que estão na capa, a prateada, um denário, em que uma cabeça de mulher se apresenta “com expressão de tristeza e os cabelos da frente não penteados” e que é uma moeda que faz alusão ao triunfo de Lúcio Postúmio Albino sobre os lusitanos e vaceus em 576, era de Roma (178 a.C.). Isto, logo no capítulo de Introdução. A que se segue o A Moeda Romana. Aí encontramos a outra moeda da capa, um denário áureo, de Trajano. Como encontramos muitas outras, todas com particularidades e explicações cabais sobre a sua cunhagem, valor e circulação, a servir de chave à leitura e interpretação dos achados arqueológicos mais tarde referidos no livro, no capítulo IV. Há um capítulo sobre falsificações, um aspecto curioso e que revela a cuidada atenção do autor posta nesta obra. A descrição dos achados acaba por conduzir-nos numa interessante leitura da paisagem geográfica da região do Alto Tâmega e do Barroso e seu decalque histórico no período em estudo. A romanização não se fez sem instrumentos e um dos instrumentos foram os pagamentos de serviços em metálico. De que estes achados assim tratados em livro são um bom decalque, como digo, suficiente por si para se poder ter uma imagem e traçar em grandes linhas a persistente e profunda acção da administração romana na península e, em particular, neste sector da península. A datação provável da ocultação de alguns tesouros achados permite distinguir as duas épocas mais problemáticas de convulsão social e até civilizacional, a coincidir com a da fase de ocupação republicana mais violenta, nos finais do primeiro século antes de Cristo, e com a fase das hordas bárbaras, particularmente as dos suevos a partir de 411 d.C. Muitos dos numismas são acompanhados das circunstâncias do seu achamento, da história do numisma em si, com a cunhagem e todas as variáveis a ela associadas (o ordenante da cunhagem, o metal empregue, a datação, etc.), as hipóteses sobre a sua ocultação, se é caso disso, e a forma como se encontra hoje ao dispor do público e condições de exposição. A região objecto de estudo é Boticas, Chaves, Montalegre, Ribeira de Pena, Valpaços, Vila Pouca de Aguiar e ainda o Alto Tâmega Galego. Além das notícias inéditas, revisitamos com o autor algumas colecções célebres de investigadores consagrados. Tudo acompanhado de uma bibliografia abundante e adequada a cada caso em particular. Um trabalho notável, só possível com a dedicação de uma vida a este tema!

A leitura e interpretação da centena e meia de páginas em que se expõe esta matéria não é feita isenta de dificuldades, sobretudo porque muitos pormenores históricos relativos à República e ao Império Romano escapam a quem se debruça em coisas específicas como estas moedas. E sobretudo a leitores menos preparados como nós. Mas o autor pensou em ajudar-nos nessas dificuldades e acrescentou ao livro preciosos anexos: um mapa da República Romana e um mapa do Império à data da sua maior expansão no tempo de Trajano (117 d.C.); um modelo para se fazer a classificação duma moeda imperial romana e para a leitura e interpretação das suas inscrições; uma tabela com a sistematização das diferenças principais entre as cunhagens consulares e imperiais; um mapa com as oficinas monetárias do Império Romano; uma listagem das abreviaturas das casas da moeda imperiais; um conjunto de tabelas de equivalência de valores entre as moedas romanas; uma cronologia dos imperadores e familiares cujos nomes figuram nas moedas do Império Romano; um elenco das divindades, alegorias e personagens representadas nas moedas romanas e ainda uma fotografia da Praça da Misericórdia de Chaves ou Praça do Município ou Praça de Camões onde, sob as raízes de um olmo, apareceram centenas de moedas ao longo do período de trabalhos que demorou a remoção da árvore e arranjo do local. A bibliografia do volume conta com mais de sessenta entradas e as notas de rodapé são quase duzentas!

Confesso que a leitura do livro foi empolgante, apesar do sentimento árido que ao início me fez temer não chegar ao fim e que exprimi ao começar a escrever este artigo. Foi empolgante, não só por tudo o que expus até agora e que me fez rever positivamente a minha impressão do livro, mas por outros motivos ainda. Um deles é o de que se nota, na escrita do autor, um grande amor à sua terra e um amor entranhado, não apenas aquele bairrismo de bandeira e pregão, mas algo que lhe corre naturalmente nas veias: o autor sente-se a própria terra. E há pormenores reveladores, uma frase aqui, uma nota acolá, uma ironia insuspeita com o uso deste ou daquele adjectivo, desta ou daquela pontuação. Teve a capacidade de fazer-nos sentir que aqueles que percorreram este horizonte nos tempos recuados de há dois milénios atrás tiveram, através das moedas, uma forma de comunhão com uma realidade mais vasta e abstracta que foi a do vasto Império. Tangível nesses documentos de ouro, prata, bronze e cobre, o cumprimento de mais do que lhes esteve na origem: é que se foram instrumento de troca e de civilização nesse tempo, sobreviveram até hoje em dia, forjando-nos um sentimento de pertença ao mundo ocidental, de ontem e de hoje, que muito nos orgulha. O sentirmo-nos também romanos é algo de estruturante em nós, região e país. Este sentimento de identidade e a sua assunção como um valor é, talvez, uma dimensão que o livro tem e que ficará para os elementos da sua Família que hão-de vir. Que o experimentarão ao, um dia, lerem o livro. Um livro que é, lido assim porque o autor assim o soube escrever, muito mais do que um trabalho de história ou de numismática. Também por isso fica agora, afinal!, arrumado à mão, na estante dos meus livros de consulta.
Bem haja por um livro tão bom!

Moedas Romanas – Achados no Alto Tâmega e Barroso, de Fernando Cantista Pizarro Bravo, Dep. Legal 241819/06, Edição da Câmara Municipal de Chaves, 2006