sábado, 11 de dezembro de 2021

MIRANDA do DOURO e MOGADOURO no Castelo de BRAGANÇA

Que o castelo de Bragança tenha história, lendas antigas e ainda muito por descobrir nos seus muros, quintais e recônditos, é coisa esperada e de que todos nós estamos cientes. Que é um dos sítios menos conhecidos e mais extraordinários de Portugal, também alguns de nós o sabemos, sendo que a sua justa fama esteja apagada por um trabalho de sistemático silêncio de séculos. Mas que na sua cidadela, ontem, tenha decorrido um evento vínico singular e exclusivo, a trazer Miranda do Douro e Mogadouro até Bragança, e para o qual tive o excepcional privilégio de ser convidado, é coisa inesperada, que não pode passar em claro, sem umas linhas. Para os que participámos foram umas horas descontraídas e cultas, em que provámos vinhos, cozinha de fusão e mérito, e em que à mesa conversámos de coisas sérias e coisas leves, historietas e trocadilhos, e cumprimos de forma alegre e em companhia o lançamento do Projeto Belfo da Arribas Wine Company.



A manhã estava fria mas o sol emoldurado pelas ameias da muralha deixou-nos estar ali perfeitamente, no Largo do Duque D. Afonso, Rua Rainha Dona Amélia, na esplanada do Contradição (o Duque para os de Bragança), enquanto dentro se faziam os preparativos. Frederico Machado e Ricardo Alves, donos e autores do projecto, António Picotês, seu compagnon de route, William Wouters, sommelier em Óis-do-Bairro, João Oliveira, da All Comunicação, o Emanuel e o Luís, da AEPGA. Quando cheguei, o Frederico segurava em algo invejável: uma caixa de vinhos da Filipa Pato e do William. Cumprimentos e apresentações, entrámos.

António e Óscar Geadas de anfitriões, acabámos por ficar instalados na mesa da entrada onde logo apareceram copos com dois dedos de Belfo, vinho de que já falei num artigo https://www.agroportal.pt/das-arribas-do-rio-douro-manuel-cardoso/ , cestinhos de pão (farinha de trigo barbela do Planalto Mirandês, especial como conduto do mesmo projeto) e bola de carne, tacinhas de faiança com azeite novo de santulhana, da Arvólea de Macedo do Mato. Num flash, a Diana Baltazar gravou um vídeo para o Viver Aqui da Porto Canal e que está online. E ficámos depois nós os oito mais os nossos guias e autores do repasto, intérpretes do que se ia passando: croquete de rabo de boi com puré de maçã granny smith de Carrazeda e mostarda savora; uma taça mágica que continha alheira grelhada e pelada, pickle de maçã, croutons de trigo (outra vez barbela), batata palha-frita, gema inteira de ovo a presidir… e que, uma vez misturada, se trincava em garfadas que apeteciam rapar até ao fundo!; grão de bico com salpicão e samos com umas lascas de bacalhau de fazer esquecer o que já tínhamos provado; lombelo de porco bísaro em pequenas fatias e que era dispensável porque o arroz em que assentava era por si um superlativo: carolino do Pepe, José Mota Capitão, da Herdade do Portocarro, cozido com cogumelos silvestres de época, cantarelos, boletus, lactários… que arroz! Nesta fase já tínhamos quase tantos copos em cima da mesa como na do Jacinto no 202, acrescentados num ritual explicado e cheio de observações pelo Frederico e pelo Ricardo, sempre com o António e o Óscar a acrescentar mais curiosidades, o António Picotês também, João Oliveira a tomar notas, Emanuel a explicar o que faziam na AEPGA e a tirar fotos, William e eu a conversarmos sobre a excelência de Portugal! Garrafas várias foram fazendo história: o Saroto branco, o Saroto rosé (autêntico vinho de lavrador, 12%, uma pena que só tenham sido feitas 1200 garrafas!), o Manicómio e o Manicómio G, o Raiola tinto… com um denominador comum a todos estes vinhos: uvas de vinhas antigas das encostas do Douro Internacional da freguesia de Bemposta, pisa a pé, intervenção mínima, leveduras indígenas, manipulações restritas “escola do Dirk”, álcool abaixo de 13% o que, para quem sabe, aumenta a perigosidade do vinho e de que maneira 😊 😊 😊!!! O Manicómio tem a particularidade de em cada ano ser feito com cumplicidades diferentes: com o Dirk o de 2019, o João Tavares de Pina o de 2020, Carmelo Peña Santana o de 2021. E o Manicómio G é feito à parte, estagiado numa barrica escolhida a dedo, G de Geadas. Nos doces voltámos ao Belfo, pois claro: uvas vindas de Peredo de Bemposta duma vinha em que há granito e calcite, mistura rara, field blend de muitas castas mas em que a predominante é a posto-branco ou barranquesa… para eruditos a discussão de sinonímias e encaixe classificativo!, e voltámos ao Belfo muito bem casado: pera fusionada em moscatel com gelado de café, brioche de laranja com creme de queijo,… chocolate… gelado de côco… … … Ninguém estava com vontade de vir embora e à porta cá fora, já nas despedidas e fotos, agradecimentos também à Cíntia, ao Ruben e ao Igor que mantiveram a nossa mesa em ordem com grande profissionalismo.

Para mais sobre o projecto pode e deve ir-se ao site www.arribaswine.com mas não posso terminar este post sem dar um outro link americano porque estão lá referências e um mapa eloquente https://thesourceimports.com/newsletter-december-2021/?fbclid=IwAR2xsQYPENKc-VDH14BJ-XuErIvJCpZ8RxxCglTxts64ztbvlzTCV3KGP3o que foram publicados este mês. Vale muito a pena lê-lo e interpretá-lo com detalhe, até porque foi escrito por quem nos está a ver de longe e não distingue as diferenças entre nós e que tantas vezes nos tolhem por estarmos próximos – e não deviam!

Escrever este post é um exercício de gratidão mas não só. A especialidade dos vinhos e do almoço já o mereceriam com justiça, mas há uma perspectiva mais importante, a meu ver, que tem a ver com todos nós. É que o realizar-se este evento significa que há esperança no desenvolvimento e na permanência de gente nova e empresas novas no interior. Cultivar vinhas nas Arribas do Douro, no Planalto Mirandês, em Montalegre, na Terra Quente ou seja onde for nestas bandas tão longe do mar, manter viva a agricultura com as Arribas Wine Company, com a Menina d’Uva, a Wine Indigenus, com todas as empresas de nome individual ou colectivo que têm surgido nas nossas aldeias, vilas e cidades de interior, é muito mais do que um negócio de vinho: é a sustentabilidade económica da região a afirmar-se, base fundamental para que a cultural, social e ambiental se possam afirmar e manter também. O próprio facto de ter decorrido em Bragança e não em Lisboa ou no Porto também é importante. Por tudo isso, na tarde de ontem, quando me dirigi à minha usada carrinha estacionada ao pé da igreja de Santa Maria no castelo, ao olhar para a torre de menagem (soberba e magnífica como nenhuma outra em Portugal!) pensei por momentos na transcendente importância dos copos que acabáramos de beber. Que também por ali já se bebiam no tempo dos Bragançãos, truculentos, feros e indómitos, teimosos em manter-se na sua terra! Ao arrancar e depois fazer a A4 (também lindíssima como nenhuma outra em Portugal!) senti-me sortudo e esperançoso. Frederico e Ricardo, Muito obrigado!!!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A Alma dos Vinhos de LISBOA The Soul of Wines

Há tempos, em Setembro, comemorando o aniversário da Mãe da Mariana, com missa e cocktail, no Rodízio, o meu cunhado João Ary e eu estivemos a conversar por largos minutos sob uma ramada perfumada de uvas tintas, castelão algumas, talvez moscatel pelo meio de toda a folhagem, anoitecia com luz atlântica. No dia seguinte, a Mariana e eu deixámos o sítio partindo para o nosso destino de Trás-os-Montes mas sem rota prévia, confiados no nosso instinto de aventura e sabor das estradas (sim, as estradas têm sabores, cheiros e cores, despertam aventuras e vontades). Parámos em Mafra, parámos aqui e ali, parámos em frente ao mar na Praia do Ouro a comer croquetes e bifanas e a beber um copo. Depois fomos para o interior, a  caminho das nossas serras, olhos com vontade de voltar um dia ao Oeste de Portugal, por onde o Favónio sopra abundâncias e pólenes, enchendo as velas dos moinhos e rodando as pás das eólicas, ondulando o mar até muito para cá da orla, fazendo-o galgar o Montejunto e Sintra para lá do Tejo. Esse Setembro passou, já foi há três meses. Só que o mês de Setembro é um mês de sortilégio, vindimas e âncoras, não tivesse sido ele o sétimo do ano clássico, remetido para a nona posição (9, número a reter a quem ler o livro a que nos vamos referir) por decisão de imperadores, estando na letra de canções, sous la pluie ou a outra de Bécaud, inesquecível e intemporal… e, por isso, reapareceu como um boomerang saído da bagageira dum carro, há meia dúzia de dias, entregue que me foi pelo Francisco Toscano Rico: quase três quilos de ciência, história, arte, flavour, terroir e beleza, tudo em forma de livro, comestível e muito bebível, trezentas e trinta e cinco páginas em pés de areia, barro, calcário, aluviões e húmus, escritas – que digo eu?! – cantadas em coro de vários naipes mas em que só por si cada cantor, solista afinado, tem a maestria de o fazer a capela porque todos eles afinaram pelo tom fantástico dado pela A Alma dos Vinhos de Lisboa. [1]



Para se ler apropriadamente, tem de se abrir de início uma garrafa de vinho leve, pelo menos de Colares nas partes mais eruditas, apurando num copo o sentido das frases, em mais outro a qualidade das fotografias e ilustrações, noutro ainda – podemos já ir num Bucelas – para a surpresa do que se aprende, conduzidos pelo António Ventura, reconduzidos pelo Vasco d’Avillez no emocionante se non è vero, è ben trovato, a justificar um Premium duma das quintas ou herdades de Arruda, de Alenquer, de Ourém... Já com esse lastro e antes de irmos às aguardentes da Lourinhã, há que espairecer um pouco pelas praias, pelas salas de museus e pontos de interesse, dançar em arraiais e subir e descer as ruas de Lisboa, inspirar ar e luz e deixar actuar a absorção dos doces e receitas – uma completa folie! – para nos capacitar a não deixarmos nenhuma página por ver, digo, nenhuma DO por provar! Sim, que se é já uma verdade indesmentível, a de que em Portugal pode haver todo o Mundo em vinhos, na região de Lisboa, na alma dos vinhos da Região de Lisboa, há quase toda a História do vinho de Portugal! Não sou eu quem o diz, são as testemunhas convocadas, além dos que já mencionei: José Bento dos Santos, Patrícia Serrado, João Valente, João Pedro Rato, Ricardo Bravo, Ricardo Junqueira, André Teodoro, Andrea Ebert, Sara Quaresma Capitão, Florbela Baptista, António Alexandre, João Rodrigues, João Simões, José Avillez, Miguel Laffan, Paulo Morais, Pedro Mendes, Sancho Esteves, Tiago Velez.

O livro é um monumento esteticamente bem conseguido e testemunho justo da região: setenta produtores de vinho dão pretexto e vontade para umas centenas de copos ao longo do tempo que se quiser e pelo espaço que se preferir. E podemos revisitar todos, não nos ficarmos por uma primeira vez, já que o tema pode ser glosado em rimas várias e interpretado em tocata e fuga, sinfonicamente ou em música ligeira! Para se ser fiel à matéria e argumentar devidamente, teríamos de escrever um livro a propósito deste livro. Mais vale gastar o tempo a sorvê-lo! Seria tão bom que um dia a Família e Amigos pudessem experimentar dos vinhos de Lisboa em série e em festa, explicados e bebidos… pelo que seria interessante que a minha Prima Beni, na Picanceira, se lembrasse de organizar uma tremenda prova dançante, memorável mas que, ao mesmo tempo, nos fizesse esquecer, pelo menos por um instante, estes tempos complicados que vivemos! Não é por acaso que tal lembrança ocorre: é que o subtítulo deste tomo de enoturismo da Região de Lisboa exprime elegantemente que Entre o mar e as serras há um território vinhateiro a descobrir, a provar e a ficar.

Meu caro Francisco Toscano Rico, bem haja por nos recordar, quase nas festas de Dezembro e de Ano Novo, que a surpresa, a boa surpresa, pode sempre estar onde menos a suspeitamos! Parabéns!                        



[1] A Alma dos Vinhos de Lisboa The Soul of Wines, gestor de projecto André Teodoro e coordenação de Patrícia Serrado, textos de Francisco Toscano Rico, António Ventura, João Valente, João Bento dos Santos, Patrícia Serrado e Vasco d’Avillez, edição da CVR Lisboa, Julho 2021, ISBN 978-989-33-2080-8. 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

AZEITE 3. Visitas aos lagares

Passar nos lagares, nessas noites frias ou de invernada que encharcavam de alpechim o empedrado e faziam poças com tonalidades à luz ténue da lâmpada da gordurosa e manchada porta de entrada, era bem mais do que um ritual de cumprimentos: dentro, estava-se num conforto húmido e quente, cheiro agradável a azeitona, azeite e lume. Logo à direita, a caldeira em que ardia baga continuamente e se aquecia a água que circulava pelas batedeiras e demais elementos, o barulho e o movimento encadeado de todos em grande azáfama, em contraste com a noite de fora, eram um pulsar de vida na estação mais fria do ano e às horas mais mortas da noite. Esses lagares, ainda de prensas, eram uma evolução tecnológica que já vinha do século XIX, accionados, primeiro, a vapor, depois, a diesel, finalmente, a electricidade, com um motor que gerava uma força rotativa comunicada a um veio de transmissão por uma correia e que deste, por mais outras, fazia funcionar todos os mecanismos que lavavam a azeitona, a moíam, batiam a massa e a espalhavam nos capachos, moviam os êmbolos da prensa de Pascal, bombavam os óleos e águas para o decantador e as centrífugas de onde, finalmente, escorria azeite para o depósito da balança. Nalguns, um dínamo, que também tomava a força duma correia a que se aplicava um giz para que o atrito se mantivesse, gerava electricidade que produzia a luz em grandes lâmpadas de incandescência, acesas sob reflectores de esmalte. Que os homens precisavam delas: para iluminar as pazadas de azeitona tiradas das tulhas e despejadas no tanque de as lavar, no sem-fim ou directamente na tina das galgas; para vigiar as massas e as espalhar nos capachos, sobrepor estes, levá-los de carrinho para as prensas onde ficavam a ser espremidos e a escorrer água e azeite. Quando chegava ao fim o aperto da pilha de capachos, e deles já não saía gota, o grande êmbolo descia, o carrinho era levado para ao pé duma porta e, um a um, como se fosse um separador de bolachas, um rapaz pegava, sacudia, com uma espátula soltava a baga para que o capacho voltasse a ir para mais uma pilha a que se punha a massa já batida. Era um movimento contínuo que durava todo o tempo, ininterrupto, apenas quebrado por uma avaria, por vezes mínima mas que fazia parar todo o lagar, suscitando urgência e, por isso, numa parede, em tábuas desenhadas com os seus perfis, as ferramentas de manutenções e consertos estavam bem visíveis como se fossem armas preparadas para acorrer a uma guerra. À esquerda da entrada, num compartimento com uma janela quadriculada de vidros manchados, uma escrivaninha de pé tinha um livro, blocos de guias e papéis, calendário na parede, untuoso e com rabiscos e notas, de cuja porta aberta se avistava, permanentemente, a balança do azeite. Ao lado desta, numa ardósia, riscos e traços deixavam contar ao longe a cadência dos quilos dourados e verdes passados ao longo da jornada. Durante o dia era frequente cirandarem por ali também os donos das azeitonas para azeite à maquia, tendo-as pesado na balança da entrada, ajudado a descarregar as sacas nas tulhas, deitando o olho como se fossem capazes, por misteriosa sagacidade, de impedir as flutuações de rendimento que todo o percurso entre as duas balanças, a das azeitonas e a do azeite, poderia permitir ao lagareiro menos escrupuloso ganhar mais do que a percentagem apalavrada. Que ganhava. Ou por uma fuga que ia parar aos infernos e cujos olhos de azeite seriam depois recolhidos, ou por uma partida de massa que ficara travada no meio da distração de reparar um desarranjo duma correia partida, ou pela água que correra quente demais e no decantador se tinham trocado no abrir das torneiras ou, grosseiramente, por uma saca de azeitona que ficara perdida no meio do monte de serapilheiras. Mas tudo de boa-fé. Porque ali no canto, à direita da porta de entrada, junto à caldeira onde ardia baga continuamente, torrava-se o pão para experimentar o azeite novo cujas qualidades se não poupavam a ser repetidas ao dono das azeitonas, comia-se em lascas ou assava-se o bacalhau, cozia-se o polvo, as batatas, a couve, regados duma almotolia de lata e decorados com muito alho, em pratos de esmalte, canecas de asa com vinho também novo, copos baços com aguardente que, naquela atmosfera, parecia nem ter álcool.

Muitos destes lagares têm-se modernizado, outros fecharam, a maioria evoluiu para lagares de ciclo contínuo. Quase todos eles com uma falha enorme: não têm um local, adequado aos tempos de hoje, cumprindo haccp e demais normas exigíveis, para que os visitantes possam disfrutar de provas de azeite como quem vai a uma adega disfrutar provas de mosto, possam adquirir conhecimento, possam apreciar e dar o devido valor a uma das mais antigas e tradicionais agro-indústrias de Portugal. Um local em que se possa, numa deslocação de fim de semana ou numa visita de trabalho, trincar uma inesquecível torrada com azeite novo!  

Sem dúvida alguma que uma das melhores torradas que comi na vida já há umas boas três décadas ou mais – que saudades e vontade de a repetir, mesmo que também repetisse ficar com uma das botas encharcadas por não termos visto bem a valeta, ao entrarmos! – foi uma de centeio, com azeite cru e alho, com uma lasca desfiada de bacalhau seco, com vinho do da Mina tirado dum garrafão, rescendente e escorregadio, num anoitecer frio e de vento agreste que batia muito naquele lagar de Castelãos, nesse ano trazido por conta do nosso amigo António Vila Franca!

 

domingo, 7 de novembro de 2021

AZEITE 2. O preço das azeitonas

Em Elvas, em Abrantes, em Torres Novas, em Montemor ou em Évora e noutras cidades e vilas do Sul, havia em cada uma um ponto fulcral de discussão e acerto. Em Trás-os-Montes, há meio século, era no círculo do Mira, do Paulino, da Caixa Geral de Depósitos e das esquinas do pequeno largo da Pensão Praia, em Mirandela, com um vai-e-vem de atravessar a rua no meio do trânsito (passavam ali mais de metade dos veículos do Distrito!), que entre lavradores, negociantes, informadores do Cachão, candongueiros, chapéus, apertos de mão e samarras, ao frio, vozes e olhares, sob sombreiros abertos se a chuva insistia, se fazia, nas últimas feiras do ano, definitivamente na de 23 de Dezembro, o preço da azeitona da Terra Quente. Os vidros embaciavam e o fumo do tabaco, misturado com o vapor das máquinas de café, davam uma atmosfera de lagar ao Mira e ao Paulino, a que as botas acrescentavam o cheiro. À mesa ou em pé, ao longo da manhã, fechavam-se negócios, com argumentos da funda que constava que já tinham dado os bagos dos olivais de S. Pedro ou dos do Cabral de Guribanes, que em Abreiro isto ou na Torre aquilo, ou com mitos de compradores fantasma. Havia alguns pequenos lagares que já moíam desde a Santa Catarina e as filas para descarregar nas Cooperativas e no Cachão já se iam formando no seu ritual anual (que com estas o preço era outro, o rendimento só no fim da safra se determinava por médias e os escudos e tostões só eram fixos quando o azeite saía, às vezes mêses após, podendo os lavradores por conta ir levantando produtos para grangeio ou alguma importância para despesas prementes).

Com os lagareiros, o dinheiro começava logo a girar. Em Macedo havia dois, três e quatro preços diferentes, conforme: o Cóque adiantava, às vezes ainda antes do Natal, simpático, em preços fixos por baixo, em notas, conversadas no Café Central, sobre olivais de que sabia os rendimentos de memória de campanhas passadas; o Artur Moreno era mais circunspecto e, até, quase secreto nos complexos negócios de acertos de contas para os quais a azeitona era apenas o lastro ou a garantia; os de Castelãos, de Chacim, dos Olmos, de Lagoa, de Vinhas, de Peredo, do Lombo, de Morais, de Talhas, dos Cortiços, tantos outros, valiam-se da premência dalguns proprietários em traduzir em metálico a sua melhor azeitona, levando a outra para as tulhas das Cooperativas ou do Cachão. E notava-se que o dinheiro já corria em sentido inverso ao do azeite quando a afluência e o tom ficava mais animado nas vozes no Germano, no Flórida ou no Tótó, no Campos de Vila Flor, no Saldanha de Peredo ou no Montemel em Macedo. Coisa algo diferente mas também parecida era o que se passava em Alfândega, em Moncorvo, em Freixo, em Mogadouro, onde os primeiros valores eram sempre díspares por causa dos negócios em grande de casas maiores mas, depois, ao terminar o ano, vinha o diapasão da feira de ano, fazendo eco no Montanha ou no Central de Moncorvo: em Mirandela corre a tanto! E, a partir daí, o valor da safra deixava a discussão dos lavradores e passava mais para a dos azeiteiros e negociantes de grosso trato. 

Passava para estes, com o lado divertido ou por vezes dramático que criava histórias e lendas de negócios, tão abundantemente bem sucedidos, que a euforia os levava a escoarem-se nos casinos de Espinho ou da Póvoa ou com pasodobles e tangos, dançados com espanholas em Verín, em Vigo… que não começavam ao acaso: havia anzóis com engodo para fisgar estes peixes mais graúdos quando em trânsito na ronceira Nacional 15, a caminho de Rio Tinto, colocados expressamente em restaurantes já para lá do Marão, em Amarante ou na Lixa, lábios pintados e olhar fulminante, amostras em que só um truta muito seguro de si não deixaria de trincar. E ainda os negócios mais discretos e rendosos dos carregamentos de bidons de 200 litros, às dezenas e centenas, que atravessavam a fronteira miraculosamente invisíveis, em camions que, jurados não ter saído de casa em Macedo nem de nenhum armazém de Mirandela ou de Rebordelo ou das Lamas, tinham feito meia dúzia de horas de quilómetros cobertos de oleados verdes, com as cargas saldadas em Benavente. O câmbio da peseta era estável e, por isso, a repercussão do preço da feira de Mirandela era verdadeiramente internacional. Não por acaso o velho Granjo, meu amigo, em Macedo, e outros em Mirandela, tinham sempre notas do Banco de España disponíveis para as passar, gordos maços nos bolsos de que as contavam, uma a uma, e no-las davam para a mão a troco de escudos, quando as precisávamos para ir a Zamora às tábuas ou aos caramelos. 

Estivesse a chover ou tivesse caído a mais severa geada, houvesse temporal ou fosse uma manhã de sol de Inverno, a feira de ano dos 23 de Dezembro em Mirandela era infalível para os lavradores, fossem eles de Vale de Asnes ou de Vale Benfeito, de Valbom ou da Bouça, de Grijó ou das Múrias, de Suçães ou de Alvites, de Abambres ou Lamalonga, de Ala ou Vila Flor, de todo o lado: a convergência unânime na vila do Tua, nesse dia, traduzia o tangível valor das azeitonas no seu preço em dinheiro,  escasso. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

AZEITE 1. As lonas das azeitonas

Um dos cheiros guardados da minha infância nasceu no abrir da arca das lonas de serapilheira, um cheiro seco e doce que anunciava azáfama e trabalho heróico: iniciava-se a apanha da azeitona. Basta fechar os olhos e inspirar, perdura ainda. Estou a ver o senhor Maximino de Grijó, em pé, junto a meu Pai, a ouvir as últimas instruções, sob a varanda, e depois todo o rancho a partir para o Olival do Lameirão, olhando o céu, perscrutando as nuvens, carregado de varas de castanho e paus de varejo, sobressaindo o vareiro para as oliveiras mais altas, rolos de sacas e lonas, cestos de verga de pôr ao braço e canastras maiores, que uns levavam viradas sobre a cabeça. Muitas vezes fui com eles e experimentei o sentir os dedos hirtos no regelo dos dias de geada a pegar com esforço e dor em cada bago, o peso do balanço que dar à vara, certo, regulado e travado para não ferir demais a oliveira, o correr para baixo duma árvore maior se a bátega aumentava e alagava tudo, costas a gelar com a água. Parava-se para um pão com toucinho salgado e bolos de bacalhau, café de cevada quente ou vinho em caneca, tirado duma cabaça, acesa uma fogueira de guiços juntados, cujo fumo morno era um consolo e secava aventais e xailes. Que bem sabiam então uns figos secos, umas nozes ou umas rodelas da chouriça assada com pão de centeio! O orgulho do grupo e promessa de dia pago ia ficando aqui e ali, sacas cheias de madurais, verdeais, cobrançosas e santulhanas, entremeadas com as galegas das oliveiras grandes, com as negrinhas mais esmagáveis, mistura de cores e tamanhos, recolhidas ao longo do regresso num carro de bois que nos acompanhava. Seriam ainda descarregadas numa tarde de sol e vento frio, num monte, no qual se cravava uma pá de madeira que as atirava ao ar com exímia pontaria, indo cair adiante, sobre as lonas, deixando nesse voo ficar para trás as folhas, e sendo novamente ensacadas apenas as azeitonas, atadas com baraços de sisal por duas mulheres mais possantes que as passavam aos rapazes mais expeditos, a pô-las de novo no carro que as traria para o cabanal a aguardar a vez de as levar ao lagar. Bojudas, as sacas remendadas e manchadas tinham alguns dizeres: café de Angola, qualquer coisa Alcácer, qualquer coisa Brasil, uma delas a palavra Farinha já mal distinta num tom desvanecido.


Esse cheiro guardado da infância das lonas e sacas da azeitona, quase todas de serapilheira marcada com AC ou MC (as letras das iniciais do meu Avô e do meu Pai), uma ou outra ainda, mais remendada, de estopa com S (de Sousa, da casa das minhas Tias e do meu Bisavô), esse cheiro, digo, chega até mim como um perfume dum tempo difícil e bom (porque os tempos podem ser difíceis mas bons), de ritmo marcado pelas culturas do ano em que a da azeitona era uma das nobres! Essas lonas e sacas saíam das arcas lavadas e secas, depressa se manchavam com o trabalho, a terra, a chuva, as azeitonas esmagadas. Rasgavam-se e eram logo remendadas com fio-de-norte e agulha grossa que também refazia bainhas nas pontas esfiapadas. Aguentavam todos os tratos durante a apanha da azeitona (e uma delas iria servir para cobertura duma tenda que eu montara no quintal, qual Baden-Powell, com uma armação de choupo e freixo de galhos tirados do sequeiro!). Aguentavam tudo e que pena tenho de as não ter com as suas histórias, remendos eloquentes, testemunhos de fabrico duma economia circular que já o era avant-la-lettre, memória de civilização e também duns namoros que se pressentiam quando ficavam a secar, já no fim, confortáveis sobre a palha e o feno guardados no palheiro. Logo que em Fevereiro ou Março vinham uns dias de sol firme com manhãs de geada, eram levadas para o tanque da horta de “lá-detrás” e lavadas com sabão, passadas por água, postas a escorrer, depois suspensas no longo arame de pendurar a roupa, esticado entre o freixo, olmo grande e a catalpa do quintal. Logo que secas, dobravam-se e ainda esperavam uns dias, ou na cozinha, ou já na despensa em cima da vasta arca do grão (centeio e trigo, que cheiro tão bom, também!) antes de irem para a sua. De onde voltavam a sair em dias quentes de Maio ou Junho, se lhes reavivavam as letras com tinta vermelha, se espairecia algum mofo de guardado, se preparavam, mas poucas, para quando surgisse terem de ir às nozes ou às amêndoas, também alguns dos seus dias de glória, completados pela honra destes frutos em cima de si secarem, ao sol no chão do quintal ou no telhado de zinco, aqui a acompanhar as ameixas.

Guardei sempre o cheiro das lonas como um dos cheiros da minha infância. Pelo seu carácter, pelo seu significado, por ser tão bom! Um cheiro de trabalho e dificuldade mas também um cheiro de satisfação e abundância. Um cheiro de alegria e felicidade. Um cheiro de vida. Um perfume.

Hoje o azeite já nada tem que ver com o cheiro destas lonas mas tem ainda muito de si: o de permanecer na memória com o brilho das coisas dignas de permanecer na memória. E se este cheiro vem de tão longe até ao teclado do meu computador, é porque dele também se faz a luz que o azeite, ao arder desde há milénios de civilização, tem espairado sobre nós. De forma doce e seca, brilhante, como quem abre as arcas de guardar lonas e sacas de apanhar azeitonas com o mesmo encanto e expectativa de quem puxa o lustro à lâmpada do génio de Bagdad. No dia de começar. Para a apanha das azeitonas da nossa vida. Doces, secas, cheias de luz.    

sábado, 18 de setembro de 2021

Vinhas Velhas

© Manuel Cardoso

 

Há vinhas velhas péssimas e há vinhas velhas óptimas! Tal como há vinhos péssimos, bons e óptimos, feitos de uvas de vinhas velhas! Então, valerá a pena a distinção dum vinho por ser duma vinha velha e mencioná-lo no rótulo? Vale.

Ter num copo um bom vinho duma vinha velha é ter uma combinação, única e irrepetível em cada vindima, em que a complexidade é o seu carácter distintivo. Complexidade que vem da diversidade e da heterogeneidade das uvas que estão na sua base, tanto de castas como de diferentes maturações. Vinhos que são produtos de um field blend que os faz ter estruturas e texturas que podem e devem surpreender pela positiva, sobretudo se o trabalho perito de enólogo na adega modelou os taninos e deixou bem espertos os espíritos e aromas para um prolongado fim de boca de grande prazer. Um bom vinho duma vinha velha deve ser um suprassumo – embora nem todos o consigam!


Tem havido uma grande disparidade de definição de critérios para “classificar” uma vinha velha, a começar pelo da sua idade. Uns advogam 35, outros 80, outros 100, outros um outro qualquer número de anos, ainda por cima variáveis conforme os países e regiões! Do que nos tem sido dado perceber, fruto de muitos anos a provar “vinhos de lavrador” em pequenas adegas recônditas abastecidas por uvas de vinhas de gerações, cuidadas apenas nas horas vagas dos outros trabalhos agrícolas, com uma mínima ou nenhuma intervenção química, de cepas retorcidas no chão sem aramados nem esteios, é possível ser-se surpreendido por autênticas grandes pingas aí geradas quase ao acaso. De que castas? Uma Babel de sinonímias! De quantos anos? “Já do tempo dos meus avós, fui repondo as que secaram…”

Ora, há um ou mais pontos em comum entre estas vinhas velhas e as que, um pouco por todo o lado, existem nas quintas familiares ou de empresas: são vinhas de fim de ciclo das videiras ou, pelo menos, em declínio da sua produção e da sua pujança vegetativa, plantas com grande maturidade e baixa produtividade, menos cachos e menores, habitualmente em grande densidade de plantação e com castas tão diversas que chegam a bem mais duma meia centena numa mesma parcela. Quase se adivinha o esforço da cepa para produzir exíguos números de bagos! Mesmo que (prática atenta, oportuna e louvável dalgumas quintas) se vão fazendo reposições da mesma videira cujo clone é conservado em vaso ou num campo de conservação ex-situ, para a eventualidade provável dela secar, a maioria das plantas da parcela estará nas condições descritas, pelo que as qualidades de cada bago multiplicada pela variedade de castas, dará um mosto forçosamente diferente do obtido numa vinha pujante, jovem ou adulta e em plena produção: daí resultarem os vinhos de grandes e surpreendentes aromas, profundidade, complexidade e magníficos fins de boca, que um enólogo com expertise consegue na adega a partir do mosto das uvas duma vinha velha. Um excelente enólogo me dizia um dia, provando nós uns “vinhas velhas” a que vigiava a evolução, que era o que lhe dava mais sentido de realização, o conseguir fazer, para a empresa para que trabalhava, um vinho digno desse nome no rótulo, honesto para o comprador, se possível inesquecível para quem o viesse a provar e a beber!

Por isso, a questão da qualidade dos bagos e da sua variedade e heterogeneidade, numa vinha cujo tempo áureo de produção já passou, é mais importante do que o valor absoluto de anos de idade das suas cepas. Poder-se-á arranjar uma fórmula fácil para classificar uma vinha de velha em que os factores idade média das cepas, número de plantas, número de castas, e o que mais se quiser pertinente seja tido em linha de conta. Mas haverá que complementar isso com outra coisa para que o vinho possa ser “vinhas velhas”: uma prova profissional do vinho, feita pelo próprio enólogo do produtor, que avalie e assegure as características expectáveis – e as surpreendentes – para quem o consumir. Porque assim se assegurará a sua excelência e o seu valor e se garantirá uma remuneração justa no seu preço ao produtor, essencial para que perdurem as vinhas velhas e não esmoreça a willing to pay de quem o quiser comprar.     

Nem todas as vinhas velhas darão para se fazerem bons vinhos nem são a condição suficiente para tal. Mas perder a oportunidade de os conseguir a partir duma vinha velha que tenha esse potencial, pode ser perder para sempre um valor cultural e intrínseco que não será repetível numa vinha nova a não ser passados muitos anos. Não ter essa atenção pode ser uma perda irreparável. Por outro lado, vulgarizar-se a designação de “vinhas velhas” num rótulo só porque dá um adorno, se não tiver fundamento no field blend, pode significar uma desvalorização irrecuperável desta designação feliz.

Vale a pena, por isso, que ao rótulo corresponda uma história e descrição da vinha velha de que saíram as uvas desse vinho, que poderão e deverão estar online no site da empresa ou do produtor e acessíveis com dois ou três clics. A boa ética fará o resto para que o consumidor possa compreender o valor do vinho que tem no copo e saber que o que paga a mais não tem só a ver com as uvas em si mas com toda a história da vinha e do vinho e consigo próprio, por ser um privilegiado e pertencer a uma minoria no mundo a poder contribuir para a preservação da biodiversidade e do património vitícola sempre que está a provar e a beber um produto de savoir faire e de civilização!

O estudo e conservação das vinhas velhas deveria merecer, numa check-list de avaliação de sustentabilidade duma exploração vitícola, uma consideração especial como menção na certificação dessa mesma sustentabilidade, na sua valência cultural.

Conservar uma vinha velha é salvaguardar a história viva e beber um copo dum vinho genuíno duma vinha velha, ainda por cima se for bom, é algo que harmoniza gastronomicamente com muita coisa e que a nós, felizes bebedores, harmoniza com a mais antiga e fantástica bebida de alegria.   

domingo, 5 de setembro de 2021

Os vinhos de Viana e o vinho do Porto - uma proposta de interpretação

© Manuel Cardoso, Setembro 2021

(actualizado em 5.09.2021)

 


1.       Desde a nossa Primeira Dinastia, quiçá antes, que os vinhos do Entre-Douro e Minho foram exportados pela barra de Caminha e, sobretudo, pela barra de Viana do Castelo, então Viana da Foz do Lima, de onde há mesmo a referência da expedição duma pipa para as cerimónias de entronização dum Bispo de Inglaterra em 1295! Já antes, 1261, está documentada a produção de vinhos de qualidade em Monção. Esses vinhos, que seriam predominantemente tintos, gozavam de sólida reputação e evoluíram até ao fim da Idade Média de tal modo que chegaram a ser considerados tão finos e apaladados como os de Borgonha, evolução essa a que não foi estranha a acção dos monges beneditinos e de Cister. A produção assegurava quantidades que satisfaziam o autoconsumo e o negócio local e sobravam para ser comercializadas para fora: para o Porto, para Lisboa, para o estrangeiro, sobretudo para Inglaterra, tendo-se estabelecido uma feitoria inglesa em Viana da Foz do Lima com actividade também em Monção, que comprava e fazia embarcar vinhos provenientes sobretudo desta última vila e da Ribeira Lima (Ponte de Lima, Arcos de Vale de Vez, Ponte da Barca). As zonas de produção foram-se estendendo e a acção de prospecção de fornecedores por parte dos negociantes foi-se especializando tendo chegado mesmo a haver vinhos de Basto e de Riba Douro a ser expedidos por aquela cidade costeira do Minho. Com a segunda metade do século XVII assistir-se-á ao declínio do movimento por Viana e suceder-lhe-á o Porto, sendo a data de ponto de não retorno a de 1677-78, tornando-se tal inevitável devido a políticas administrativas e fiscais que beneficiaram sobretudo os ingleses nesta última cidade, a tratados internacionais, à preferência dos exportadores por vinhos de outro perfil e ainda às dificuldades de acostagem e navegação no porto de Viana, cujo cais terá sido danificado por mau tempo várias vezes e as vias de navegação assoreadas também várias vezes, uma das quais em 1709 e após despesas e trabalhos de correcção anteriores. Apesar disto, os vinhos de Monção continuaram a ter procura e eram feitos transportar em lanchas de cabotagem de Caminha e Viana para o Porto, sendo apreciáveis as suas quantidades mesmo em 1730, já com um florescente movimento de vinhos do Cima Douro para a barra deste rio, com trato pelos mercadores e taberneiros do Porto e de Gaia aos estrangeiros que os exportavam. O que acabámos de escrever é consensual entre os autores António Barros Cardoso, Charles Sellers, Aurélio de Oliveira, Gonçalo Maia Marques, Anselmo Mendes e muitos outros que, mais profundamente do que eu, estudaram e publicaram trabalhos, teses, artigos e livros sobre o assunto dos Vinhos Verdes.

2.       Queremos pedir a atenção para que esta fase da história dos Vinhos Verdes, da Idade Média até aos setecentos, seja considerada em três períodos distintos: um que dura cerca de três séculos, XIII, XIV e XV, em que se estabelece de forma segura a produção de vinho do Entre Douro e Minho com exportação sobretudo por Viana, um vinho sobre o qual não há referência de defeitos; o dos séculos XVI e parte do XVII, ao longo dos quais a sua qualidade se terá pouco a pouco deteriorado, em que os comerciantes começam à procura de outras fontes de vinho tentando manter as que tradicionalmente são fornecedoras e demandando ainda a barra de Viana mas em que está já documentada a existência de diferentes tipos de vinho, denotando-se diferenciação entre vinhos de diferentes perfis; o do final do século XVII e do início do século XVIII, em que se assiste ao declínio da produção de vinho do Entre Douro e Minho para exportação e a sua “substituição” pelos vinhos do Cima Douro e do Porto, em rápida expansão, sendo que se estabelece a feitoria inglesa no Porto e passa a haver a presença dum Cônsul residente. Para tal declínio são apontadas guerras e devastações, fugas das populações e abandono dos campos e das vinhas, problemas de navegação na barra de Viana, medidas discricionárias que beneficiaram os ingleses no Porto e uma misteriosa e não identificada doença que teria afectado as vinhas do Minho. Charles Sellers no seu Oporto Old and New resume de forma eloquente mas redutora: “In course of years the exports of wine from the Province of Minho ceased because that from the Douro region was preferred; furthermore, many of the Minho wines succumbed to a disease of wich we have no details”.

3.       Os vinhos então conhecidos como “vinho de Viana” terão sido de muitos perfis. Para gozarem da fama de “comparáveis aos de Borgonha”, os “maduros de Monção” seriam  diferentes dos de hoje e, na sua maioria, tintos. Eram conhecidos, tal como os de Ribadavia, por serem “vinhos parduscos” isto é, feitos com uvas brancas e tintas. A sua qualidade fê-los ganhar distinção e notoriedade a ponto de terem valor de exportação para a Inglaterra, a Flandres (o flamengo Clenardo, no século XVI, a viver em Portugal, refere-se-lhes positivamente como “vinhos de estalo”!), a Alemanha, a Terra Nova e o Rio de Janeiro. Aguentaram-se em competição com os vinhos do Douro, tendo Thomas Woodmass, citado por Gonçalo Maia Marques, afirmado: “os vinhos de Monção e de Viana são muito judiciosamente tidos como muito similares aos da Borgonha (…) paguei muito mais caro por um pouco de Borgonha que não se igualava com o que, por muito menos dinheiro, bebi em Viana”.  É a partir dos finais do século XVI que surge a designação de vinho verde para outra categoria de vinhos, também exportada por Viana. Tinham baixo valor alcoólico, frescura natural, mas com sabor “um pouco ao agraço” por serem feitos de “uva mal sazonada”. Eram despachados em grande quantidade para as armadas e tabernas por serem mais baratos e comparáveis aos amarais (do latim amarus, amargo), sendo designados pelos ingleses de eager wine (in old English and old French the word eager – aigre – meant sour or sharp). Era o verde de ramo, dito azedo por Sá de Miranda, e que teve grande comercialização para marinheiros e trabalhadores rurais, a par dos de melhor qualidade para as classes mais abastadas. Nos conventos era o vinho dos trabalhadores rurais e que era vendido para fora. Quem negociou muito destes vinhos de Viana já na segunda metade do século XVII foram os Bearsley, estabelecidos primeiro em Viana e, depois, no Porto.

4.       Após alguns pioneiros, terá sido Job Bearsley a partir de 1659 quem se terá interessado em mais larga escala pelos vinhos durienses (“calibrados” com aguardente pelos mercadores e taberneiros do Porto pelo menos desde 1610, quando se deu um recrudescimento do seu comércio após anos de estagnação), com paladar mais ao gosto preferido pelos seus clientes ingleses. A pouco e pouco foram crescendo as quantidades de vinho preparado no Porto e em Gaia por si adquiridas e exportadas e cada vez mais decrescendo as de vinhos de Viana, com a excepção de se manter ininterrupto o interesse pelo de Monção. Os Bearsley percorreram bem o Minho, subindo o Lima nos barcos de água-arriba até Ponte de Lima e, depois, a cavalo ou noutro meio de transporte ficaram a conhecer bem os produtores da Ribeira Lima e de Monção. Empreenderam mesmo uma ou mais incursões ao Douro a partir de Viana e, tomando conhecimento da região, essa informação terá pesado nas decisões empresariais da família que chegou a adquirir, algumas décadas depois, uma quinta nesta região. As rotas comerciais de então estavam estabelecidas e a comunidade estrangeira de Viana tão bem implantada, com Vice-Cônsul residente, que durante anos houve várias tentativas e obras para o conserto dos cais e desassoreamento da barra mas a natureza terá repetido, em maus invernos quase sucessivos, os estragos que inviabilizaram a sua utilização segura por navios de maior porte. Pelo que a atractividade do Porto, para a qual contribuiu também a política fiscal, como dissemos, acabou por levar a melhor. Podemos resumir que a ascensão do vinho do Porto se dá com o declínio do vinho de Viana pela alteração verificada nos perfis destes vinhos, pelos benefícios fiscais dados no Porto e por uma questão de navegabilidade e comunicações. Os Bearsley, tal como outros, viveram nessas realidades e tiveram de tomar decisões.

5.       O primeiro dos três períodos a que nos referimos acima, em que o vinho verde, pardusco ou tinto, ganhou notoriedade e passou a ser exportado, coincide com o chamado óptimo climático medieval em que as temperaturas foram superiores à média e houve chuvas e estações amenas e regulares. Cremos que tal foi particularmente bom para a agricultura e, nomeadamente, a viticultura, excepto alguns anos pontualmente irregulares. A actividade agrícola e económica em geral ganhou um grande incremento durante o óptimo climático medieval e ainda se manteve durante quase um século após, beneficiando da experiência das culturas entretanto implantadas (houve entretanto a ocorrência calamitosa da peste negra em diversos surtos mas não nos vamos ocupar agora dessa perturbação). No segundo período, nos séculos XV e, sobretudo, XVI, o clima foi fortemente alterado, agravaram-se as condições da chamada Pequena Idade do Gelo sentida por toda a Europa e a que não escapou o Noroeste Peninsular, as temperaturas desceram e muito, as estações passaram a ser irregulares e com anomalias climáticas frequentes com chuvas a estender-se até Julho e anos de seca extrema em que as árvores secaram. A regra passou a ser uma grande imprevisibilidade devido a uma grande irregularidade e variabilidade térmica e pluviométrica. Houve muitos anos em que as chuvas prolongadas impediram trabalhos agrícolas em Maio, Junho e Julho! Os verões passaram a ser frescos com picos de temperaturas extremas, muitos anos chuvosos ou com falta de chuva a ponto de que “as viñas se secassem por el estio e falta de agua”. Ora, para a fotossíntese e para a maturação das uvas exige-se uma amplitude de temperaturas entre 10°C e 35°C, que os terrenos tenham boa drenagem e que o stress hídrico não ultrapasse a tolerância de cada casta. Por isso esse período terá feito com que as uvas não amadurecessem completamente em todos os locais e daí, cremos, não ser coincidência que a expressão vinho verde e eager wine e as suas características tenham surgido a partir do século XVI e tenham perdurado. Porque esses anos de temperaturas médias mais baixas e clima mais rigoroso e anómalo durou até meados do século XIX. Aliás, agravou-se especialmente no período em que estamos focados, que temporalmente ocorre de finais do século XVII e início do século XVIII, acima referido, conhecido na história do clima como o Mínimo de Maunder Tardio, de 1675 a 1715, em que as colheitas foram irregularíssimas, houve cheias frequentes, Primaveras e Outonos frios, Verões amenos ou mesmo frios, anos de secas estivais prolongadas em Setembro e Outubro e anos de chuvas persistentes que não deixaram amadurecer os frutos. O ano de 1694 ficou conhecido como o da grande seca e o de 1709 como o do grande Inverno. Tudo isto cremos que não será coincidência nem alheio às mudanças verificadas na produção e comércio de vinhos nos séculos XVII e XVIII. O declínio do vinho verde dessa época e a ascensão do vinho do Cima Douro, onde o clima é mais quente porque com maior influência continental e mediterrânica e onde as condições extremas terão tido menos impacto nas vinhas do que o do atlântico Entre Douro e Minho, foi em boa parte o produto de tais irregularidades climáticas que, vividas pelos comerciantes e repercutidas na qualidade dos vinhos, os obrigaram a decidir ano a ano em face das melhores ou piores, neste caso bem piores, vindimas no Entre Douro e Minho. Não terá sido uma disease a acontecer no Minho, como referia Charles Sellers, mas terá sido o clima, um clima que não terá devastado todas as vinhas mas terá comprometido muitas e sucessivas vindimas.

6.       Esta proposta de interpretação sobre o declínio do vinho de Viana e, como tal, dos Vinhos Verdes há quatro e três séculos é falível, evidentemente, mas merece alguma atenção e discussão para o presente já que, estando agora nós num período em que há um aquecimento global e as temperaturas voltam a ser da ordem das que ocorreram durante o óptimo climático medieval, surge uma oportunidade climática para tentar recuperar algumas das características que terão estado na base da fama antiga e internacional, que vem do tempo da nossa primeira dinastia!, dos vinhos tintos de Entre Douro e Minho. Em gabinetes de estudos das empresas deve ter havido esta consideração para alguns dos investimentos que têm estado, ultimamente, a ser feitos na região. Não será fruto do acaso que algumas castas em determinados terroirs e geografias apareçam a desafiar o status quo. O terroir é o mesmo de há quinhentos e de há mil anos, haverá que adequar a biologia ao climat que se adivinha para os próximos tempos. Numa leitura rápida poder-se-á logo questionar: então se a Pequena Idade do Gelo terminou em meados do século XIX, por que não recuperaram os vinhos verdes as suas características anteriores, entretanto? Não sabemos a resposta mas há desde logo variáveis em hipótese a considerar para discussão – e uma discussão interessante!: a implantação e tipo da vinha, os sistemas de condução e o facto, de suma importância, de que desde a segunda metade do século XIX as castas no Entre Douro e Minho obrigam a porta-enxertos para a sua sobrevivência e isso terá alterado, e muitas vezes de forma cega, tanto para o melhor como para o pior, a expressão fenológica e as características produtivas da videira… mas tal ficará para discussão de especialistas, que ouvirei ou lerei atentamente.  

7.       Bibliografia consultada para a redacção deste artigo:

-Francisco Girão, um inovador da vitivinicultura do Norte de Portugal, Vol. I e II, coordenação de Nuno Magalhães, edição da Fundação Francisco Girão, 2011;

-Vinhos Verdes, a região, a História e o Património, António Barros Cardoso, ed. Município de Ponte de Lima, 2016;

-La Pequeña Edad de Hielo en Galicia: Estado de la cuestión y Estudio Histórico, Camilo Fernández Cortizo, Universidad de Santiago de Compostela, in Obradoiro de Historia Moderna, n.º 25, 9-39, 2016;

-Alterações Climáticas e Agricultura, Dionísio Afonso Gonçalves, Tomás de Figueiredo e António Castro Ribeiro, in Revista da APH, n.º 110, 30-33, 2012;

-Do vinho de Deus ao vinho dos Homens: o vinho, os Mosteiros e o Entre Douro e Minho. Gonçalo Maia Marques. Dissertação de Doutoramento em História. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. FCG. 2011;

-O Sector dos Vinhos no Entre Douro e Minho nos tempos do Antigo Regime, Aurélio de Oliveira, FLUP, 2012, disponível em pdf online;

-Os vinhos no Porto, Aurélio de Oliveira, in Douro, Estudos e Documentos, Vol. I (3), 1997 (2.º), 45-70;

-Os Vinhos em Portugal (1300-1820), Aurélio de Oliveira, comunicação apresentada no Congresso internacional VIII Seminario Iberoamericano. Viticultura e Ciencias Sociales, universidade de Talca, Janeiro 2006, disponível online;

-Estrangeiros, Vinhos de Viana e Vinhos do Porto (Séculos XVII - XVIII), António de Barros Cardoso, Revista Iberoamericana de Viticultura, Agroindustria y Ruralidad, vol. 4, núm. 12, septiembre-, 2017, pp. 163-179. Universidad de Santiago de Chile;

-Oporto Old and New, Charles Sellers, ed. Herbert E. Harper, London, 1899;

-Metz : une « ville du vin » confrontée au petit âge glaciaire à la fin du Moyen Âge (v. 1400-1540), Laurent Litzenburger, Extrait de : Patrick Demouy (dir.), Les Boissons, éd. électronique, Paris, Éd. du Comité des travaux historiques et scientifiques (Actes des congrès nationaux des sociétés historiques et scientifiques), 2014. Disponível online;

-Variações climáticas do passado: chave para o entendimento do presente? Exemplo referente a Portugal (1675-1715), Maria João Alcoforado, UL, in Territorium 6, 1999. Disponível online;

Agradeço à Doutora Anabela Ramos algumas pistas bibliográficas importantes que me indicou.

 


sábado, 7 de agosto de 2021

O Vinho de Portugal

 © Manuel Cardoso, Agosto 2021

O Vinho de Portugal está num bom momento. Cada vez melhor em qualidade, aumento das exportações, subida do preço médio pago por litro - subida essa espectacular nalgumas categorias de vinhos - o que, para além doutros indicadores, nos permite dizer que o valor global do negócio estará num dos seus mais altos momentos deste século. Para este bom momento têm contribuído os técnicos de excelente nível que nas empresas produtoras, transformadoras e de marketing, nas CVRs, nos organismos interprofissionais e nos Institutos Públicos têm assegurado trabalho, aplicado as verbas disponibilizadas para investimento pelos programas de apoio e desenvolvimento e garantido incrementos constantes de renovação, inovação, melhoria da qualidade e ganhos de notoriedade nos mercados. Desacelerou e está, até, num ponto de viragem, a diminuição de área de vinha existente. As empresas têm sido o grande motor de toda a torrente de lucro e excelência do negócio, a par de algumas cooperativas exemplares que, tendo aderido cada vez mais ao reconhecimento DO e IG dos seus vinhos, se têm juntado, a pouco e pouco, ao clube da qualidade. Podemos, pois, erguer os copos e fazer um brinde de congratulação! Em cujo brinde não podemos esquecer toda a investigação e formação académica que informou o renascimento e transformação do sector da vinha e do vinho nas últimas décadas e às boas decisões políticas (brindemos apenas às boas e esqueçamos as outras) que puseram em prática medidas pertinentes. Sentando-nos, de seguida, para alguma conversa de reflexão e discussão entre amigos. 


O Vinho de Portugal tem a sorte - que sai de muito e profissional trabalho - de além de ter excelentes produtores, ter muita gente a escrever e a opinar sobre a vinha e sobre o vinho de forma comprovada. A escrever e a opinar bem ou a dar espaço ao contraditório e com um grande entrosamento com a produção e com o público, de tal modo que quem ler, sejam as colunas da Revista de Vinhos, da Paixão pelo Vinho, da Grandes Escolhas, do Expresso, do Público, do JN, da Evasões e outras mais, além das páginas pessoais e empresariais que há nas redes, fica com uma visão multifacetada e abrangente da vinha ao copo. Quem ler os editoriais deste ano e a generalidade dessas publicações não pode deixar de constatar que o optimismo partilhado neste artigo teve o impulso não só nos números sobre o vinho que têm sido divulgados pelo IVV mas também nas entrevistas de responsáveis institucionais da ViniPortugal, da ACIBEV, da AEVP, em que se procurou corroborar e alinhar as opiniões aqui vertidas. E quanta e inestimável informação se pode tirar das páginas dalgumas CVRs, dos IVV, IVDP e IVBAM, disponível a todos e em tempo útil! O mesmo se passa com a investigação científica e tecnológica, quer a académica quer a aplicada, que além das universidades tem ainda protagonistas no INIAV, na PORVID, na ADVID, na ATEVA e que muitas empresas têm apoiado ou incentivado, quando não tomado mesmo a iniciativa, fazendo com que a utilização de drones, de robots na vinha e na adega, de ajustamento às práticas da vitivinicultura de precisão, estejam cada vez mais generalizadas. É claro que será redutor dizê-lo assim mas este século conta já com duas grandes publicações magistrais: Portugal Vitícola - O grande Livro das Castas, de Jorge Böhm, e o Tratado de Viticultura - A Videira, a Vinha e o Terroir, de Nuno Magalhães. Quem estiver atento sabe, por isso, que a sorte que faz com que possamos brindar com vinhos cada vez mais leves, elegantes e frescos - e poderosos! - é fruto do trabalho profícuo da vitivinicultura portuguesa na qual não podemos deixar de incluir os produtores, os cientistas, os críticos e os analistas!              

O Vinho de Portugal tem um desafio de curto prazo para algo que já deveria ter sido feito há anos e para o que agora não pode perder tempo: o de ter um normativo nacional de reconhecimento de sustentabilidade. Não vai ser difícil para muitas das nossas empresas e cooperativas cumpri-lo já que o cumprem de motu proprio na maioria dos requisitos, senão todos, que servirão de referência para esse reconhecimento. Tal sustentabilidade, a que as Resoluções OIV-VITI 641-2020 e OIV-CST 518-2016 dão a letra, tem que, da parte de Portugal, ter um foco especial na vertente cultural já que de tal podemos tirar partido uma vez que a RDD é a mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo e, coincidentemente, o ADV é Património Mundial da Humanidade, Paisagem Cultural Viva e Evolutiva, reconhecida pela UNESCO. Além de que a especificidade de cada região e dos seus processos de vinificação tem de reflectir-se no carácter do vinho produzido e o torna especial e único e isso deve ser explicado ao consumidor e estimular a willing to pay por esse produto sustentadamente diferenciado. Assim, a sustentabilidade económica, social e ambiental deve articuladamente compreender a sustentabilidade cultural a que aludem aquelas Resoluções da OIV. Mas vai ser mais difícil, se bem que não é impossível, ao Vinho de Portugal, conseguir pôr-se à velocidade a que internacionalmente o sector tem incorporado a inovação relacionada com a sustentabilidade: novas embalagens e formas de transporte, novos perfis de vinho, novas atitudes comerciais perante as novas gerações. Não se fale só de substituir vidro pesado por vidro leve: falemos de alterar o formato das garrafas para melhor eficiência na ocupação do espaço de transporte; de substituir vidro por outros materiais; de diversificar as formas e tipos de bag-in-box, assim como formatos e capacidades de vinho em lata; de produzir vinho de categorias mais leves em grau alcoólico para competir com bebidas de graus congéneres etc. etc. É claro que irá sempre haver espaço para todos os que, como nós hoje aqui, queremos continuar a poder tirar ou fazer saltar a rolha a uma garrafa e bebê-la com estilo, apreciação e gosto com os nossos amigos mas a concorrência internacional neste campo é cada vez mais forte e será suicídio ignorá-la. De hoje para amanhã deveremos também poder entrar num restaurante ou numa tasca castiça, apontar o nosso iPhone ao QRcode e seleccionar de qual bag, da fila dos coloridos e impressos com imagens cativantes e sedutoras, pendurados em cima do balcão na caixa de acrílico em ambiente de temperaturas controladas, queremos preencher o nosso copo! Também vai ser mais difícil ao Vinho de Portugal - mas tem que ser capaz, chamando ao seu campo investigadores, académicos e opinion-makers que saibam argumentar contra a demagogia - resistir à onda anti-álcool que se aproxima e que o toma, ao vinho, como alvo principal, já que assim congrega na sua ofensiva interesses múltiplos a que se somam alguns do próprio sector do álcool e que beneficiarão se diminuir a quota de mercado do vinho relativamente à de outras bebidas alcoólicas. Saber argumentar defensiva e afirmativamente será cada vez mais importante em diferentes fóruns: no da saúde, no do marketing, nos do aprovisionamento de entidades e mercados.

O Vinho de Portugal tem um problema: o do Vinho do Porto. Que tem que resolver. Desde há anos que tem descido a exportação, desde há anos que tem descido o seu consumo. Esta descida é má para o Vinho do Porto e é muito má para o Vinho de Portugal. Se na sua esteira se fizeram outrora exportações de outros vinhos, nalguns casos o Porto hoje em dia segue à boleia de encomendas de outros. E isto não pode ser. Perdemos todos. No capítulo pósfacio 20 Anos Depois do seu DOURO, RIO, GENTE E VINHO, António Barreto já tocou de forma transparente este assunto, em 2014, chamando a atenção para algo que ele entendia que "O Douro parece estar a conseguir algum êxito num domínio de tradicional dificuldade: renovar, fazer evoluir e mudar, mas preservar o essencial." Todos nos convencemos que sim. O enoturismo, a Ribeira de Gaia, os investimentos no Douro, os novos produtos Portonic, o Pink. Claro que a pandemia fez um hiato. Claro que tudo pode e vai dar a volta. Wishfull thinking. Há que fazer muito mais. Como disse também António Barreto "A experiência e a cautela, bem doseadas, e a ousadia, são as receitas." E são. Por isso, há que resolver o problema, tomar decisões e partir para uma política comercial agressiva, ousada, moderna e mundial. Com um plano decidido interprofissionalmente. Não é compreensível que no país do Vinho do Porto folheemos revistas e jornais em que não haja artigos de informação e publicidade sobre Vinho do Porto. Está presente na nossa História, e de que maneira!, mas está ausente das nossas ementas de restaurantes! É inaceitável que haja bares em Portugal nas praias, nos hotéis, nos restaurantes, sem um cartaz moderno sobre Vinho do Porto! É inaceitável que os jornais e revistas de grande circulação internacional não tenham, de forma regular, propaganda e artigos e não só nas revistas sobre vinhos, também nas revistas de outros públicos porque é em públicos novos que devemos procurar novos consumidores. Se a população mundial aumenta, potencialmente aumenta o número de consumidores. Tudo isso custa caro? Muito mais caro a Portugal está a custar a diminuição das exportacões e de consumo de Vinho do Porto. Fizeram-se estudos sobre os porquês, façam-se mais estudos, como se queira, mas, por favor, passe-se à acção! Andar a rondar as 100 000 pipas anuais de benefício sem daí descolar será aceitar com resignação a decadência dum produto cujo potencial tem ainda muito para dar e por muitos e bons anos! Estabeleçam-se metas para a sua resolução mas não se perca mais tempo! 

O Vinho de Portugal tem um grande futuro! Em primeiro lugar, pelo seu grande passado. Dos três produtos alimentares portugueses emblemáticos, identitários e de distribuição em grande escala, as conservas, a cerveja e o vinho, este último é aquele que ainda antes da nossa nacionalidade já se encontrava no território, de norte a sul e do interior ao litoral, essencial à economia, como vinho, como vinagre e, mais tarde, também como destilado, mantido em utilização ininterrupta até hoje, presente na alimentação, na indústria, na medicina e na religião, nas nossas cidades e aldeias e nas nossas comunidades espalhadas pelo mundo, companheiro nas nossas viagens, factor de civilização e desenvolvimento dos nossos territórios, lastro seguro e essencial da nossa balança de pagamentos. Em segundo lugar, pela maleabilidade e tangibilidade do seu investimento, passível de rápidas transformações e convertibilidade, associação ao turismo e factor de percepção de valores associados à natureza, ao bem-estar, à saúde, com reconhecimento internacional e, como tal, elemento seguro para aplicações de capital. Em terceiro lugar, pela grande biodiversidade das castas que lhe dão origem, garantia de carácter e, ao mesmo tempo, de resiliência perante a evolução climática que se verifica, em que, fatalmente, algumas castas terão de mudar de localização para continuar produtivas e outras irão ocupar esses espaços para que a produção se possa manter nesses terroirs. A nossa grande biodiversidade é o grande trunfo para que não tenhamos que produzir vinhos iguais aos outros, de perfil de três ou quatro castas e que só com heterodoxos cruzamentos híbridos sobreviverão dentro de décadas. A nossa biodiversidade vitícola terá que ser mantida em investigação permanente e evolutiva como o tem feito a PORVID para detecção e multiplicação dos clones intravarietais que permitam fazer face aos desafios climáticos e exigências ambientais: será a grande chave para a manutenção saudável e produtiva dos nossos vinhedos. Finalmente, porque o Vinho de Portugal é feito com a nossa vontade, a de um povo que quis o mar e o teve, como nos sussurra Pessoa, e nos ensina a arte de ver a história de cada um, como dizia tão bem o argentino (também português pela sua costela duriense) Jorge Luís Borges. 





Nota Final: estive em funções como Vice-Presidente do IVV desde 7 de Janeiro de 2019 até 20 de Julho de 2021. Foram dois anos e meio cheios, desafiantes e em que tive o privilégio de me integrar numa competentíssima equipa técnica e, com um acolhimento amável da parte do Presidente e total solidariedade, trabalharmos juntos de forma próxima para que uma série de diplomas pudessem ser finalmente publicados (o DL 61/2020 e a Portaria 142/2021, entre outros); alguns conceitos ser incluídos no Vitis (o das vinhas históricas, por exemplo, para o qual contámos com a colaboração sábia de Bianchi de Aguiar, de Jorge Dias e de técnicos da DRAPNorte); ser actualizada a lista de castas correspondendo a expectativas de CVRs, Institutos e operadores económicos; ser iniciado o desenho de novas DOP no futuro (por exemplo a das Arribas, incluída no leste da de Trás-os-Montes confinante com a das Arribes espanhola e que ainda carece de estudo e de aprovação do CG da CVRTM); terminadas portarias de regulamentos de DO e IG de algumas regiões que o aguardavam há anos; alterada a legislação do SVC que, finalmente, se pôde estender a todo o País; produzidos os projectos de medidas de emergência que no âmbito da Pandemia COVID19 foram assumidos pela Tutela e ainda uma série de outros trabalhos que seria fastidioso aqui trazer mas dos que, a seu tempo, a informação foi prestada aos conselheiros do Conselho Consultivo do IVV. Também acompanhei de forma permanente, mas sem intervenção directa, por desnecessária, toda a Presidência Portuguesa da União Europeia que decorreu entre 1 de Janeiro e 30 de Junho, tando tal sido uma experiência inesquecível da competência dos técnicos superiores portugueses que da parte do GPP e do IVV intervieram nos diferentes assuntos do dossier vinha, vinho e bebidas espirituosas, sem os quais seria impensável alcançar os bons resultados que tivemos. É espantosa a dedicação, trabalho e proficiência das escassas dezenas de funcionários do IVV que vi multiplicar por estes e muitíssimos outros assuntos que são competência deste Instituto e cumprir, perante os stakeholders, a Tutela, o IFAP e o GPP, com quem a articulação é forçosamente próxima tal como com  a ASAE e o IPAC, e ainda a IGAMAOT, o TContas e as DGAGRI e DGSANTÉ que nos auditam, sem esquecer os tribunais onde decorrem processos de contencioso. O conjunto de edifícios em que está a sede do IVV, património da Vitivinicultura Nacional, constituído pelo Palacete Amélia Leite Ferreira, pelo edifício Cassiano Branco e pelo Pavilhão Seabra (sobre o qual está a sede da ViniPortugal) cumprirá um século nestas funções no final da próxima década, dentro de dezena e meia de anos bem contados, dezasseis, precisamente. As vindimas daqui até lá produzirão muitos milhões de toneladas de uvas e estas muitos milhões de hectolitros de vinhos, aguardentes e brandies, álcool, portonics, pinks e outras novidades. Que esse centenário, quando chegar, signifique que o sector esteja mais rico, com mais qualidade e com cada vez mais orgulho no Vinho de Portugal!  

Para terminar, um brinde, com todos a acompanhar-me: viva o bom Vinho de Portugal!