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quarta-feira, 25 de agosto de 2010

GUERRA JUNQUEIRO

Esta casa foi construída em 1883
pelo Juiz José Felizardo Rodrigues de Sousa
e ficou conhecida em Macedo como a
casa das Senhoras Sousa ou
casa das Sousas.
Demolida em 2010. 
Já não existe a casa dos meus bisavós (onde viveram as minhas tias Sousas e onde morreu a minha avó), demolida recentemente para dar lugar a uma rua perpendicular à rua Pereira Charula. Mas existem as histórias do muito que nela ocorreu. Visita relativamente frequente da casa foi Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 1850 – Lisboa, 1923), o poeta, candidato a eleições e deputado pelo círculo de Macedo de Cavaleiros para a legislatura de 1880, amigo do meu bisavô, o juiz Sousa (e também frequentador da casa dos sogros deste, os Morgados de Macedo, também conhecidos como Oliveira).


Uma vez, numa dessas visitas, pediu para ficar com um crucifixo que ainda hoje existe na nossa família. Este gesto pode parecer-nos esquisito, por parte do escritor, célebre por ter sido um denodado autor de obras ímpias, anti-monárquico e republicano entusiasta, tão assazmente anticlerical e anti-religioso que sobre ele escreveu o Abade de Baçal: “Muitas das obras deste brilhante génio estão traduzidas em espanhol, inglês, francês e italiano e há apreciações críticas delas em diversas revistas estrangeiras, da máxima competência, como na Alemanha, França, etc., sendo de lamentar que um talento tão universalmente apreciado se deixasse obscurecer algumas vezes por composições ímpias como as do mais vulgar e nulo candidato à fácil popularidade das turbas ignaras, que vêem simplesmente no desbragamento da adjectivação a característica do génio. Ou será que esta popularidade lhe resulta em parte muito sensível desta mesma razão? Seja como for, Junqueiro é uma glória da terra que o viu nascer.”

Contudo, GJ veio a ficar mais desiludido com a República do que antes estivera com a Monarquia e veio a inflectir a sua posição anti-religiosa.

É um autor cujo percurso de vida – e postura perante a morte – deverá merecer, num ano em que tanto se fala do centenário da República, algumas reflexões. Cuidadosas reflexões.

O interesse de GJ por crucifixos não era apenas o de um coleccionador de antiguidades e de bric-à-brac. Era um interesse pela substância dos crucifixos. O seu coleccionismo era simbólico do verdadeiro coleccionismo que fazia no seu espírito e onde permanentemente, numa ebulição que o aterrou pela vida fora, fermentavam os pensamentos do remorso, da plenitude e da eternidade.

Raul Brandão, nas suas memórias, descreve uma das cenas mais patéticas e importantes em que foi confidente do poeta e pensador. Encontraram-se no Porto (1921), aonde tinha ido expressamente a pedido dele, GJ, e lhe fez confissões terríveis em que lhe declarou ter concluído a sua filosofia, milhares de páginas de revisão do que fora a sua vida. “O que aí está são tentativas que fui escrevendo pela vida fora até descobrir a verdade”. Outra das coisas que desabafou então foi a sua posição relativamente à República e à Monarquia: “Durante oito anos deixei de trabalhar por causa dessa [sic] miserável república – e agora não posso, não posso! E eu nunca fui republicano. O que disse numa nota da Pátria [1896] foi que tudo dependia do rei... O rei foi D. Carlos – e então a república impôs-se. Mas o mal não é do regímen, o mal é da nação. E agora vamos acabar...”.

Já quando se discutira a bandeira nacional, após a implantação da República, GJ tinha feito uma proposta em que, deixando de haver a coroa real, se mantinham as cores azul e branca em vez das verde e vermelha que eram nada mais nada menos do que as do partido republicano e, como tal, sectárias. E propunha o azul e branco como as cores mais abrangentes já que tinham sido as cores nacionais desde D. Afonso Henriques, atravessando toda a nossa história, com os seus momentos de glória e as suas crises.

Hoje já não existe a casa das Sousas, nem Guerra Junqueiro, nem reis reinando em Portugal, nem está em vigor a bandeira azul e branca. Mas existe a possibilidade de se pensar em tudo isto não como uma época passada mas como uma permanente busca da verdade, como o fez Junqueiro ao longo da sua vida.

Guerra Junqueiro, o poeta-génio de Trás-os-Montes, morreu em Lisboa, em 7 de Julho de 1923, ao fim de uma vida em que os seus crucifixos de madeira, marfim e cerâmica se foram espiritualizando. O seu amigo Raul Brandão acompanhou-o até ao fim:

“Morreu naquela cama de ferro hoje de manhã, às cinco horas menos dezassete minutos, depois duma breve agonia. Não soube que morria. No caixão, com o fatinho preto e coçado, espiritualizou-se ainda mais. Barba em bico, testa enorme, duas farripas aos lados e mãos esguias e brancas: parecia a figura de Nun’Álvares. Nem um livor cadavérico. A sala da frente está escura. À cabeceira brilha a chama de duas velas dum e doutro lado dum crucifixo com violetas. Sombras amarfanhadas ao fundo, e ao lado do caixão uma figura imóvel, com a manta pela cabeça, a velha Ana, que parece uma imagem de retábulo ou um daqueles humildes de que tanto falava e que lhe chamavam Senhor Poeta”.

Neste ano de comemorações, é interessante revisitar os nomes de algumas das ruas de Macedo na perspectiva de que os mesmos estão vivos para nós, como fonte de inspiração e sabedoria, tal como este de Guerra Junqueiro, um trasmontano inesquecível.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O PEDIDO DE CASAMENTO


© Manuel Cardoso


Ensolarado e com calor, o doutor Carvalho subiu suavemente as escadas de cantaria da casa e disse a uma criada que o anunciasse ao senhor morgado. Vinha pedir a mão de uma das filhas de Sua Excelência. A conversa passava-se no salão grande e apanhava o morgado desprevenido.
- Oh, senhor doutor Carvalho, tenho que ouvir o que pensa a minha Josefa. Ó Josefa, ó Josefa!
Uma das criadas apareceu.
- O senhor morgado chamou?
- Chamei pela senhora. Onde está?
- A senhora foi só lá abaixo. Eu chamo-a já.
- Chama e diz-lhe que venha que está aqui o senhor doutor Carvalho. E arranja-nos aí qualquer coisa... o senhor doutor toma um chá frio com rodelas de limão? Talvez uma água acidulada... Eu também. Olha! Serve aí na sala de dentro que está mais fresco!
A Josefa chegou sem estranhar a presença do doutor apesar de ser a primeira vez que vinha ali a casa sem ser numa tarde de procissão e festa.
- Olhe, está aqui o senhor doutor Carvalho a pedir uma das nossas filhas para casar com o doutor Sousa.
- Qual delas?
- Ora, senhora D. Josefa, eu não me atrevo a escolher com qual das duas. Acredito que sendo ambas filhas e educadas por vossas excelências...
- Quanto a isso pode crer. E o meu marido? Que acha?
- Bem, eu, desde que a senhora esteja de acordo…
- Pois devo estar. E então, se tem que ser que seja com a mais velha, com a Cândida.
- Fico penhoradíssimo a vossas excelências!...
- Eu vou chamá-las.
Vieram como quem vem para fazer companhia ao chá e, depois dos cumprimentos e de se sentarem à mesa, a D.Josefa deu-lhes a novidade:
- O senhor doutor Sousa mandou fazer um pedido às meninas pelo senhor doutor Carvalho e o pai e eu achamos que seja a menina, Cândida. Vamos ter que pensar na resposta a dar... daqui a uns dias acertamos um prazo, senhor doutor Carvalho. Depois mandamos notícias.
Assim sem mais despediram o doutor Carvalho mas não sem antes este ter agradecido o chá com limão:
- Com este calor, sabe divinamente! Ainda por cima bebo-o como se fosse um brinde de bom augúrio ao futuro do meu querido amigo José e, evidentemente, da gentilíssima menina senhora dona Cândida!...
A Cândida nem piou durante o tempo todo. Apenas se exprimia com o olhar, surpreendidíssimo pelo inesperado.
- Ora, respondeu sacudida a D.Josefa, deixe-se dessas retóricas. Guardamos isso para um brinde a sério quando o José cá vier a casa... ele chama-se José Felizardo, não é?
- E se a senhora D.Josefa me permite, felizardo sê-lo-á mais ainda quando lhe der a boa nova...
- Não, não, doutor Carvalho! As novas dá-las-emos nós daqui a uns dias. Digamos que não dizemos que não. Aqui o senhor morgado e eu vamos acertar uns detalhes e depois mandamos recado.
Os detalhes demoraram bastante. O morgado escrevera a pedir notícias certas sobre o doutor Sousa e demais parentela. Recebera informações de Argemil e de S.Pedro de Padrela mas tardavam de Lisboa. Dizia-se que havia aí qualquer coisa e que o dr. Sousa até mudara de nome...
Tantas delongas enervavam o José Felizardo que, já desesperado, resolveu dirigir-se por escrito ao solar:

Ilustríssimo Senhor Morgado

Por intervenção do nosso amigo comum o Dr. Carvalho mandei pedir a V.Sª. a mão de sua filha mais velha por julgar que serei feliz realizando o meu casamento com ella.
Respondeu-me o medianeiro que V.Sª. annuía ao meu pedido; mas parece que tem havido defficuldades suscitadas depois dessa annuencia e que dahi tem resultado uma quase incerteza, da qual preciso sair.
Dão-se circunstâncias pelas quais necessito tomar com a maior brevidade uma resolução definitiva, e por isso nesta mesma data me dirijo ao nosso Revº. Abbade pedindo-lhe que me trate deste negocio com a seriedade que o caracteriso, e que me dê a resposta que preciso por toda esta semana sem falta. - No entanto entendi que me devia dirigir tambem a V.Sª. por este meio para lhe significar que me julgarei summamente feliz se V.Sª. me quizer dar a honra de entrar no número da sua família, e que muito desprazer sentirei se isso não chegar a realizar-se. Realize-se porem ou não, (o que, como já disse é necessario decidir no prazo indicado, ficando eu certo que no caso de se me não dar uma resposta é o mesmo que em nada se tivesse fallado ), digo faça-se ou não, eu sou e serei

De V.Sª.
Attº.D.or. e Ob.mo. Am.º e C.

Macedo, 17 de Julho de 1870

José Felizardo Rodrigues de Souza


O morgado releu a carta, pousou-a na mesa e ficou a pensar, olhando pela sacada as hortas onde uma data de gente se afadigava na rega, como iria poder apressar o assunto. De facto, o dr.Carvalho pedira uma das duas filhas em casamento. A Josefa sentenciou logo que seria a Cândida. O José soube-o logo, daí agora carregar na tecla. Porquê hesitar? Estavam esclarecidos os antecedentes do homem: um tio padre pagara-lhe os estudos em teologia e ele afinal apareceu bacharel em direito. Foi esperto. O país precisava mais de advogados, que tinha a menos, do que de padres, que tinha a mais. Mesmo as vozes sobre Lisboa, soubera-se: mudara de nome ao fazer o Crisma: chamava-se Felizardo José e passara a chamar-se José Felizardo. Modas.
Ainda antes da ceia falou no assunto à senhora.
- Temos que dar uma resposta, Josefa. Disse que era a Cândida, será a Cândida. Porquê agora tentar que seja a Ana Maria?
- Se o meu marido pensa assim, pois que seja. Chama-se o senhor Reitor e ele que venha cá com o advogado.
E vieram. Encontraram-se no salão grande da entrada os Morgados, o Senhor Abade, Reitor de Macedo e irmão dela e os drs., o José e o Carvalho. Em cima da mesa do centro, sobre uma salva de prata, estavam uma garrafa de cristal em balão e um velho cálice de vidro grosso da fábrica do Rato. Conversas feitas, o Morgado encheu o cálice de aguardente:
- Pois que então seja à saúde da nossa filha e do senhor doutor que lhe vai ser o marido!
Deu um golo e estendeu-o à D.Josefa. A seguir foi cheio de novo e desta vez foi o Abade Tomás Aquino a fazer a saúde. Bebeu em dois tragos. Cheio outra vez, coube ao pretendente fazer um agradecimento e saudar os donos da casa e a menina Cândida.


Tiveram um casamento feliz mas com um desfecho trágico. Ainda hoje existe o cálice do pedido, preciosamente guardado no armário dos vidros da sala de jantar. Na foto, o casal em 1872.