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domingo, 25 de novembro de 2007

O caixote

© Manuel Cardoso

- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!



Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.

O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!