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sábado, 2 de setembro de 2017

Atlantis, Atlântida

Atlantis, Atlântida
©Manuel Cardoso

(...)

Oh mar! oh mito! oh sol! oh largo lecho!
Y sé por qué te amo. Sé que somos muy viejos.
Que ambos nos conocemos desde siglos.
(...)
Jorge Luís Borges


Obras no centro da cidade de Huelva, parque de estacionamento pago, calor e barulho ao abrir do vidro, sol fortíssimo a fustigar-nos como se não devêssemos estar ali, como se nos quisesse corrigir um equívoco na nossa rota. Fechámos o carro, pusemos chapéu de palha e óculos escuros, demos alguns passos no pavimento quente e entrámos, à procura de sombra e abrigo, no Café Central.
O passarmos essa porta, que empurráramos, foi um súbito e inesperado virar duma página num livro de Borges.
Enquanto a Mariana foi lavar as mãos, um homem ao balcão tirou-nos cafés de máquina que nos serviu nuns copos de vidro grosso e, ao pousá-los, fitou-me com ar de velho conhecido. Calças de fazenda, camisa branca e colete, cabelo grisalho com um leve ondulado dum quadro de El Greco – ou seria dum mural de Creta? – mãos seguras mas dum tom de pele sem idade, veias salientes de sangue muito escuro, ficou a olhar a porta por breves instantes e, logo depois (quem o ouvisse diria que era mais uma frase duma cavaqueira de horas), argumenta-me que sim, Borges esteve comigo nas vezes em que veio a Sevilha, cúmplices nesses momentos de imortalidade, tinham bebido vinho andaluz e desfiado epopeias dos antigos povos do mar. Apesar de tudo, não pude aceitar como loucura uma frase daquelas mas entendi-a como centelha do tempo, algo que tinha de ser dito antes de se apagar. E logo a seguir veio outra: porque eu tive de pegar no que havia, tivemos de pegar no que sobrou e fazer toda a costa da Líbia e ir a Sais, contar derradeiramente todo o pavor que em dia e meio tinha feito desaparecer a minha cidade, o nosso mundo! Os sacerdotes de Sais tiveram pena de mim e dos meus, tão poucos, e fizeram, num por do sol, o sortilégio de Neith, a quem agradaram as nossas oferendas, e tal me faz ainda hoje estar aqui.
Crescia em mim um desejo de fazer imensas perguntas, mas ele desenhou-me um gesto, como um maestro, com que me calou. A Mariana aparecia, entretanto, ele disfarçou a breve conversa que tivera comigo e deu-me o troco da nota que lhe tinha estendido, com desculpas, ainda por cima, por demorar a fazer-mo!
Ficámos a olhar o ambiente e as paredes do café, castiço com as cabeças de touros que as decoram, lidados quem sabe se por ele e pelos seus, aviso de publicidade com fita-cola na parede, manuscrito, a pedir uma empregada para um período de férias. Antes de sairmos ainda o considerei mais uma vez mas ele estava já entregue a si próprio, eu já não existia, tinha-se extinguido a minha ínfima participação na sua longa eternidade, passava um pano num ponto do balcão, arrumava copos baixos dumas cervejas que tinham sido bebidas com tapas. Ainda exclamou um gracias, Caballero! no momento de sairmos e, num relance derradeiro, consegui surpreender qualquer coisa, na atitude, num gesto, não sei bem, que me fez considerar ser verdadeira a loucura de ter estado de facto na presença dum atlante!
Tenho quase a certeza de já ter sido relatada esta história mas não sei nem onde nem por quem – talvez em algo que li duma recitação dum serão ao luar, na Alhambra cordovesa de Ab-El-Rahman, ou, mais verosímil, na corte itinerante de Afonso X, por um dos últimos jograis moçárabes – e, por não me lembrar, a tal me atrevo, em palavras breves, seguindo a afirmação do argentino de que a memória e o esquecimento, ou o mesmo pela ordem inversa, são as duas faces do tempo – o ingrediente essencial dum mito.     
Hatlo saiu da cidade com os seus três filhos rapazes e os seus criados numa caravana de burros e mulas. Levavam odres com vinhos perfumados, sacos de sal e fardos de peixe salgado, ânforas com azeitonas, atados de panos do Egipto e tingidos com murex fenícios, caixinhas de unguentos e pequenos potes de cosméticos. Levavam ainda, para si, água, pão, peixe e aves de escabeche, que a jornada era longa e duraria uns dias, iriam ter de ficar em descampados, nem sempre com gente por perto com quem mercar alimento. Depois de o sol já ter passado um quadrante, viam, ainda ao longe, ao meio dia e para o lado das Colunas de Hércules, a sua grande cidade com os seus palácios, os navios ao largo que a demandavam ou dela saíam carregados de cobre, de ouro, de estanho, dos mais finos e fortes bronzes, o brilho das suas muralhas revestidas de metais e de refulgente oricalco. A primeira noite passaram-na junto a uma fogueira, acesa por outros mercadores que vinham para sul a caminho da cidade ou do templo de Hércules, que lhe ficava próximo. Foi a sua última vez de avistarem, quase indistinto, o contorno da cidade, de lhe adivinharem a vida e o movimento, de saudarem os deuses dos seus templos e estenderem a mão na direcção da casa onde tinham ficado a mulher e as concubinas, as suas filhas, as criadas e criados.
A volta demoraria semanas. Tinham-se afastado para norte, subido montanhas acima, até aos povos serranos onde haviam vendido tudo o que levavam e comprado lingotes pesados de bronze que traziam em seiras de esparto, no dorso dos burros e das mulas. Era um bronze precioso que os artesãos iberos faziam em cadinhos com o segredo da Lua. Como nenhum outro. Um bronze que se destinava ao templo de Poseidon, para o aplacar, já que oráculos insistentes diziam querer desferir a sua ira. Os fundidores, esconjurados para conseguir tal metal, soprando nos tubos de canas sobre as brasas para o derreter, mantendo o bafo com os foles de pele que comprimiam com as mãos untadas de sebo, recitavam as palavras monótonas com que invocavam deuses tutelares, ignorando que, ao fim e ao cabo, estavam, sem saber, a marcar e libertar Cronos da sua imobilidade, a fazer escoar o par e passo do tempo. “Que este bronze vai ser só para Poseidon e este tudo fará para que vá ter consigo” – palavras do chefe do povoado, entalando os lingotes entre palha macia e dentro das seiras de esparto, levadas com ritual reverente para dentro dos alforges de cabedal que as bestas carregavam.   
No dia seguinte, já caminhavam há dois quadrantes desde que o sol despontara, entravam numa brenha de sobreiros que bordejava o rio, quando um ronco vindo do chão se sobrepôs ao murmúrio do rio, os burros especaram, assustados, e eles, num espanto, sentiram tremer a terra, viram desfazer-se penhascos e rolarem penedos para o vale, as aves voar desorientadas. Mal refeitos do susto, logo voltou uma e outra vez o chão a soltar os tremores de Poseidon… seria Poseidon?! e, finalmente, num espaço mais longo, parecia que tudo voltara ao normal. Mas logo mais um tremor com ruído, e outro mais drástico, inspiravam terror, atemorizavam os homens e desorientavam os animais.
Foi, então, que Hatlo, olhando os céus e dirigindo-lhes uma prece, sentiu um instinto sobre o pior e estugou o passo, incitou os demais e rumaram mais rápidos a sul, ao seu destino de casa. Andaram dois dias, faltava passarem a última colina que lhes vedava o horizonte. Sol já alto. Um grupo vinha em sentido contrário, como outros com quem se tinham já cruzado, brados altos, incoercíveis, palavras incompreensíveis. Que Poseidon descarregara toda a sua ira! Que todos os deuses os tinham abandonado! Que o nada (o nada?! Que seria o nada?) e o fim vinham aí! Fujamos! Depois houve mais um que passou por eles, mudo, atónito, olhar no vago e no imperscrutável. E ainda outros, trôpegos, incompreensíveis, a apontar para trás, chorando sem lágrimas, batendo no peito, gestos de arrancar cabelos, apanhando terra do chão, atirando-a ao ar, batendo na cara. Hatlo ficou cada vez mais apreensivo. Que estaria para lá? Que queriam dizer todas estas pessoas?
O cimo da colina estava mesmo em frente, Hatlo aproximou-se com os seus filhos, a sua caravana desordenada de burros e mulas com lingotes de bronze nos seus alforges de cabedal e esparto. Estacou quando o caminho se detinha também, magote de pessoas clamando alto e batendo de mãos no chão, querendo ver o invisível, declive abrupto e novo a impedir a passagem, a despenhar-se num abismo. Ao fundo, em todo o horizonte, não havia a cidade, nem toda a terra em seu redor, nem os navios demandando o seu porto, nem as casas, de entre as quais se destacaria a sua com a sua mulher, as suas concubinas, as suas filhas, as suas criadas e criados, nem nada. Nada se via. Ao fundo, apenas havia o mar. Um mar baço, indistinto nas ondas, antes ignorado naquela cor e naquele som, marulhando como se fosse um acordar do desconhecido. O sol não conseguia disfarçar um ocre de morte. Poseidon levara a melhor! Apenas havia o oceano imenso que apagara a terra e se estendia até às Colunas de Hércules!...
Retrocederam de ao pé do precipício, de modo a atingir a costa por entre dunas e arvoredo que cortaram a machetes, pelas bordas de pomares agora sem donos, tragados pelo mar. De onde em onde havia grupos, todos desesperados a clamar do trágico e desconhecido. Mortos, feridos, indiferença e incapacidade perante o urgente. Desvanecia-se um mundo inteiro.
Que seria de si? Além, um grupo de onde se salientavam homens de túnicas púrpuras, mulheres de branco. Um deles mais novo, cabelo grisalho com um leve ondulado, mãos dum tom de pele tostada, veias salientes de sangue muito escuro, como o seu. Tartamudearam uma breve descrição dos acontecimentos, o mais novo dos quais explicitava. Tinham nadado, depois da sorte de, entretanto, estarem numa embarcação que a corrente desfizera contra destroços, junto à linha de costa, agora nova. Tinham vindo do templo de Hércules, que uma primeira vaga, longa, de mar de fora, tinha banhado a ponto de lhe tombar as colunas, desfazer as paredes, engolir para Poseidon. Que iriam fazer? Hatlo deu-lhes alguns lingotes de bronze, promessas de um dia, devoção por uma vida. Que os usassem para ofício e protecção, testemunho de respeito. O mais novo, Cad, o de cabelo grisalho e ondulado que puxava para trás com um gesto da mão esquerda, agradeceu o bronze, confortou-lhes o desespero, sugeriu-lhes irem a Sais, de cujo favor e fé ele ouvira, até do próprio Odisseus, a infalibilidade e o extraordinário.
Mais à frente havia um barco encalhado, jorrado bem para longe da costa, companha desolada, vela grega e rasgada que era dos de Odisseus, que o tinham perdido, que todos tinham saído junto da cidade, dias antes do grande pavor, e eles tinham seguido para Ocidente. Depois, as grandes ondas os tinham apartado. Mas não havia mesmo a cidade? Não havia mesmo a cidade, Poseidon a submergira sob todas aquelas águas, ainda revoltas e cinzentas! Estavam perdidos uns dos outros, abandonados. Da última vez que tinham avistado Odisseus, ele seguia para o ocaso, na rota que ele demandava para um rio de onde sabia correr ouro nas suas areias e haver estanho nos seus mercadores.
Hatlo, então, emudeceu, convicto da dimensão imensa da sua desgraça. Toda a noite, de volta da fogueira, filhos após ele, todos os nomes dos deuses dos templos da cidade foram invocados naquele transe aflito. Até que emudecera mesmo, num estupor. E foram os filhos, já noite alta, que pactuaram com o mestre duma embarcação para nela todos subirem e demandarem outras cidades onde procurar resgate dos deuses para a sua situação desesperada.
Os gregos propuseram-lhes mais uma vez Sais, onde oferendariam a Neith, e a Sais rumaram, dirigidos pela estrela Koshab semanas e meses a fio, com o Pai mudo, olhos fixos, dentes cerrados, a não ser para a água e miolos de pão ensopados, que lhe davam pelo canto dos lábios. A sua urgência mudara: do impossível saber do destino da família desaparecida, para querer cuidar do pai cuja morte selaria a sua condenação. Cad e alguns companheiros também se associaram nesse destino.  
Os filhos empenharam o seu bronze restante para essa empresa, nessa rota, ir aportar ao acolhimento e protecção das sacerdotisas e sacerdotes de Sais. Estes acharam favor no relato inaudito da sua viagem e do que a motivara, a recontaram aos discípulos e aos devotos. De tais factos extraordinários tinham tido, anteriormente, apenas um eco mas ainda não algo concreto e contado em primeira mão e de viva voz. Agora palpável na sua presença, na sua aflição, nos seus lingotes, fundidos por artesãos que sabiam o segredo da Lua. Urgia serenar os deuses apeados de seu pedestal, mergulhados nesse mar ignoto que engolira toda a afamada cidade de muralhas em círculo com os palácios, os templos, as casas, os cais e a sua gente.
Nesses dias a benefício do pão, do peixe e dos frutos do mar, da cerveja e das azeitonas de Sais, urgia-lhes recuperar a saúde do pai. Com as abluções, com a inalação de fumos doces de ervas queimadas em brasas de cedro, com a emersão na água do templo, com a companhia duma mulher que uma sacerdotisa lhe trouxera, envolta num véu. Durante a noite final do recobro ele sentira-a deslizando sobre si suavemente e exalando um perfume forte que o fizera voar e regressar ao catre de madeira onde acordara, desperto e são, pela manhã.
Hatlo e os filhos não voltaram a sair do Nilo nem a flanquear as Colunas de Hércules, o resto da sua vida passou-se em Sais, a coberto do bronze que tinham levado, a coberto do contar e recontar da sua história, cada vez mais recôndita, cada vez mais um mito, cada vez mais inesquecível, já que um mito é a melhor forma escolhida por uma verdade para ser perene para toda a eternidade.
Ao fim de duas estações de cheias, um pequeno grupo voltara para Ocidente, dirigido por Cad, o mais novo, o que tinha o cabelo grisalho e ondulado. De tudo faziam no barco, inclusive remar nas calmarias, segurar os remos de governo nas agitações mais fortes das ondas ou nos repentes de Eolos, sob as ordens do mestre. Cruzaram-se receosamente com raros navios e houve um em que lhes pareceu mesmo avistar Odisseus, à popa, também a olhar para eles, mão em pala no sobrolho, capa esvoaçante de roxo. Seguiu cada um o seu destino, não podiam agora confundir a sorte, ouvidos os oráculos de Sais.
Chegados para lá das Colunas de Hércules, aportando numa costa desconhecida depois de saberem ter estado a navegar por cima do desaparecido, empenharam-se em refazer o seu horizonte, palavra de Neith, empregando sabiamente o seu já pouco bronze, guardando o mais duro para testemunho, para um dia. Encalharam o barco na areia, montaram tenda e estabeleceram-se na costa perto do preciso ponto em que Cad deixara, antes de partir, enterrados bem fundo no chão mole dum montado[1], os lingotes da oferenda que Hatlo lhe fizera antes de emudecer.
Gastara alguns deles com uns mercadores que passaram em caravana, para comprar animais, tecidos, azeite e resina. Adquirira também uma partida de escravas. Muito em breve sentiram o favor dos deuses. Os porcos multiplicavam-se e em pouco tempo lhes deram abundância e prosperidade, as ovelhas e cabras supriam-nos de outras carnes e de leite, de queijo e de soro, de lã e de chifres, de peles curtidas com que forraram os abrigos e fizeram odres. Alguns companheiros faziam-se ao mar, traziam peixe que secavam e de que espremiam óleo. À formiga, iam adquirindo contas, pingentes, placas e lingotes de cobre e pesos de estanho e chumbo que, de quando em vez, com a vinda dum barco fenício, trocavam pelas mercadorias exóticas que preenchiam o esplendor da sua nova vida, a atracção e negócio com os povos do interior. Mas Cad sempre guardara, escondidos, alguns dos lingotes, muito poucos, do bronze de Hatlo, do que fora fundido com o segredo da Lua. Um bronze que ganhava mistério e força, reverenciado pela memória de todos, um bronze que deveria ter ido – mas não fora – ter com os artesãos de Atlantis para forjar votos no templo de Poseidon.
Para muitos uma memória incerta e lenda recôndita, passariam muitos séculos até ser desenterrado esse bronze.
No tempo em que as caravelas, as naus e os galeões se faziam aos mares do Ocidente e do Índico, das oficinas de metalurgia de Sevilha de Juan Morel e do seu filho Bartolomeu saíam os mais fortes e manejáveis canhões de Espanha e os sinos de mais sonoro timbre de que se orgulhavam os carrilhões dalgumas igrejas. A Casa da Contratação das Índias providenciava-lhes todo o cobre e estanho necessário e nos seus fornos de fundição e moldes se formavam, apurados depois a maço e polimento, artigos de fama cobiçados por todo o mundo. Não havia segredos para pai e filho no que aos metais dissesse respeito. Por isso, Bartolomeu ficou atónito ao olhar para aqueles lingotes de bronze antigo. Nunca tinha visto tais. O tom, o brunido tão belo, imaculado, sem verdete que o tingisse! Quem lhos depositara em cima da bancada de trabalho, um homem estranho, saca de cabedal a tiracolo com algo pesado lá dentro, de cabelo grisalho e ondulado que apartara para o lado com uma mão ossuda e grande e em que se salientavam veias escuras, fizera-o com um cuidado religioso. Trouxera-os um a um, dos alforges duma mula que tinha ficado à porta, ainda envoltos num tecido grosseiro com que os disfarçara dalgum salteador, e desembrulhara-os de forma meticulosa, afagando-os ao procurar uma posição em que não ficassem a oscilar. Batera com os nós dos dedos em cada um, som seco, bronze, é bronze! Perceberam que ele não estava para grandes falas, não explicava de onde vinha aquele metal naquela forma rara. Sei que os senhores são os melhores e vivemos tempos de começar a descobrir o que tem estado escondido. Como faz o Imperador![2] Saúdes de vinho em canecas de estanho, nem por isso conseguiram tornar mais loquaz o visitante que, ainda por cima e para maior surpresa, confidenciava deixar pro bono aquela mercadoria, na condição de ser usada na estátua de Poseidon que estava para ser feita para os jardins do Alcazar e na de Atena para o catavento do Colosso da Fé Vitoriosa que iria encimar a torre de Santa Maria… mas Morel via aí dificuldades: ninguém lhe entregara qualquer encomenda para qualquer Poseidon para o Alcazar e a dama para o colosso da torre tinha um desenho já feito e já se trabalhava no molde! E… não seria Minerva?! Um dos ajudantes dos Morel apressou-se a esclarecer que, para muitos poetas, Minerva era Atena… Então fariam um tridente! Sim, um tridente para quando alguém encomendasse uma estátua de Poseidon, tridente que colocariam apontando para um azimute entre o meridião e o ocaso! E a Atena colocariam uma coroa, uma coroa que ele trazia ali… e desembrulhou um último atado de tecido escuro e untuoso, retirando de lá uma coroa brunida de trifólios e esferas. Que o resto do bronze ficaria para pagamento de todo o mester.
Não sabemos – só a posteriori notei que ficaram muito incompletas as minhas anotações sobre esta reunião na oficina – o que lhe terá respondido Bartolomeu Morel, nem como a coroa trazida por Cad foi parar in solidum à cabeça da giganta de Sevilla, mas o catavento mais célebre de todo o Ocidente gira na sua torre ostentando um bronze de patina ímpar, dum cobre quase puro reconhecido por todos os técnicos que o têm analisado. Nalguns bares do Bairro da Santa Cruz ainda procurei alguém que – tinham-me confidenciado que haveria quem – me confirmasse se seria autêntica a versão de que a coroa teria sido originalmente feita por um alquimista que Cad procurara, com fama de perito fundidor de Toledo, e que viera trabalhar para uma estreita rua de Jerez, forjando navalhas. Não o consegui. Tal como ficou por se saber, verdadeiramente, da história deste se ter revelado um charlatão, que entregara a Cad a coroa mas, indagado sobre o resto do bronze, lhe mandara dar de troco uma sova por dois brutamontes a soldo, que o carregaram no dorso da mula e a açoitaram para que seguisse à desfilada pela estrada de Sevilha.
Uma das grandes qualidades de Homero foi a sua cegueira, que lhe permitiu ver todo um mundo que, se o observasse fisicamente, teria ficado limitado na sua geografia e no seu tempo. Esta qualidade dos escritores poderem captar muito para lá da sua circunstância em espaço e em tempo, tem sido notável sobretudo naqueles, com dificuldades evidentes de visão, que ousam fazer uso dela e nos dar o privilégio de dela participarmos. Dessa maneira Borges nos deu a visão do Aleph, da profunda eternidade e de todo o vasto orbe do esquecimento onde se encontra, ao fim e ao cabo, toda a história. Era com essa visão que Torrente Ballester, sentado no Novelty ou à sua porta, encarava a Plaza Mayor como se fosse a ágora de onde os seus olhos com lentes de fundo de garrafa abarcavam todo esse mesmo mundo. Era com essa visão que Borges reconstruía o tempo e o infinito a partir de cada folha e letra de cada livro, mesmo das intangíveis, corroídas, fugazes como as do Livro de Areia. O sangue dos heróis de Tróia serviu de tinta às palavras que Homero não escreveu. Ballester preferiu a luz. Talvez por ser tão coada e especial na Galiza, tão forte e crua ao reflectir-se no chão molhado da cidade dourada, depois duma bátega de trovoada de Verão. Com aquela luz, ao olhar a Sul, entreveria a Atlântida? Borges usou a água do mar: há sempre um marulho contínuo ao lê-lo, ao ouvi-lo, ao observar a sua expressão fluida do tempo inesgotável. Nesse marulho intuía as línguas com que falavam inenarráveis marinheiros antigos. Quando pensamos em Homero, é possível  idealizarmos que ele, ao ajeitar a capa antes de tomar a palavra, estendendo a mão no assomo de a proferir, se voltasse para Ocidente, para as Colunas de Hércules, para a rota de Odisseus – como saberia, onde era o ocaso? Há um pormenor numa célebre foto de Sevilha em que aparecem Borges e Ballester na esplanada do terraço do Hotel Doña Maria, com a Giralda ao fundo, que é um testemunho da permanência do tempo ou, se quisermos, da inexorabilidade de este ser o verdadeiro e único testemunho de transes da Humanidade: no último plano está o colosso de bronze em cujo metal estará uma ínfima mas significativa parte do que Hatlo levava para Poseidon e que Cad terá entregue a Morel. Se esse bronze tivesse chegado ao seu destino, teria sido submergido e estaria hoje sob a areia, num ponto para o qual, em dias precisos do Verão, se diz que aponta a pluma do Giraldillo, seja de onde for que sopre o vento. Borges e Ballester saberiam?        
A Mariana e eu entrámos na Cervecería Giralda, na Calle Mateos Gago, o arqueólogo e catedrático de teologia que não suportava os argumentos dos evolucionistas, mais para cumprir um acto do que para comer tapas àquela hora, deixada vaga pelos andaluzes para a sua sesta. Apenas umas estrangeiras, a um canto, apreciavam copos de vinho branco sorrindo para si próprias, com graça. Queríamos respirar ali algo duma outra atmosfera. Pedimos água e cafés solo. Sentados nas cadeiras de madeira, chão quadriculado e paredes de azulejos polícromos de estilo mudéjar, cabos de electricidade torcidos com suportes de porcelana como nos anos vinte de há um século atrás, arrefecendo do calor das calles de Sevilla, era como se estivéssemos metidos num singular caleidoscópio que nos remetia para a frescura dos antigos banhos árabes que funcionaram naquele local, sob outras abóbadas apoiadas noutras colunas. A nossa ida ali poderia ter ficado por uma peregrinação poética de tentativa de escutar os ecos das tertúlias que se juntaram nas mesmíssimas mesas de tampo de mármore, ao longo do quase um século de história do estabelecimento. Mas aconteceu que fotografámos, com o telemóvel, o breve diálogo encaixilhado com o nome de José Maria Asprón Gómez, o asturiano que em 1943 converteu o Bar Español em Bar Cervecería Giralda, e nisso fomos observados por um sujeito que estava à porta. Que nos disse, quando estávamos a sair, numa frase proferida cheia de empenho num castelhano fortemente tingido de andaluz, que, de diante daquela porta, ali, no meio da rua, muitos tinham sido os que vendo El Giraldillo apontando para sudoeste, apuravam o ouvido porque lhes parecia ouvir, distante mas muito preciso, o som do mar e um ruído cavernoso e antigo. E que em certos dias de verão, sempre os mesmos se se considerasse o calendário da Lua, fizesse o vento que fizesse e viesse donde viesse, El Giraldillo apontaria para sudoeste, imperturbável, para sudoeste, indiferente…
Vendo a nossa cara de espanto, um empregado interveio para que não temêssemos, que ele era assim, repetidor dessa palabrería, esa lilipollada
Quase o desequilibrou, puxando-o para dentro ao pegar-lhe no copo que tinha na mão, mas educadamente e com respeito, sugerindo-lhe voltar a dar-lhe mais uma caña, com certeza para o desviar da nossa atenção e para que não nos importunasse.  
Já ao por do sol, nesse mesmo dia, ainda voltaríamos a passar por ali, considerando a torre de La Giralda, no cimo da qual estava El Giraldillo. Apontava para sudoeste, apesar de correr uma baforada quente de norte...  

Latães, Verão 2017         




[1] Dehesa, no relato que ouvimos.
[2] É misterioso e não conseguimos descortinar como é que terão chegado ao conhecimento dum recôndito povo do Golfo de Cádiz, no século XVI, duma forma tão esclarecida, os motivos expostos no capítulo da Ordem do Tosão de Ouro que se reuniu em Bruxelas em 1516 e em que Carlos V terá assumido o seu moto Plus Ultra, implícito nas palavras de Cad na oficina dos Morel, que o imperador usaria, escrito numa lista enrolada nas Colunas de Hércules do seu brasão (e que hoje sobrevivem nas armas do Reino de Espanha). Tão misteriosa como isso foi a fundação da própria Ordem, no âmbito do casamento duma portuguesa da Casa de Avis, Isabel, filha de João I e de Filipa de Lencastre, com Filipe de Borgonha, em 1429. Notável é a sua sobrevivência à rasoira de 1914-18, que tentou anular toda a velha (diziam eles…) ordem das coisas. Há quem diga que o Plus Ultra, uma metafórica alteração das palavras lendárias inscritas nas lendárias Colunas de Hércules da Antiguidade, NON PLUS ULTRA, se referia não a África nem às Américas mas a algo mais longínquo, entrevisto por Carlos V…

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A contracção do tempo

A Mariana e eu descobrimos um sítio em que duas horas se transformam em dez minutos. Pelo condão especial de uma pessoa que resolveu partilhar, pensamos, uma das paixões e uma busca da sua vida.
Só o facto de se entrar no edifício é já uma iniciação: passar a porta de entrada é um recuo no tempo (nem é preciso grande imaginação, basta sentir que muda o som e muda a luz, duas circunstâncias imateriais que conseguem modular a velocidade do nosso dia-a-dia). Depois vem um breve, brevíssimo gesto burocrático de rabiscar uma cruz num papel, a dizer que estamos presentes (Deus queira que a nossa entrada no Céu seja assim só com a demora de um instante!), a que se segue percorrer um rés-do-chão abobadado no fim do qual há uma escada – e que escada! – de dois lanços, suave nos degraus de granito que abafa sons, belíssima na simplicidade da concepção, que se sobe com a certeza de estarmos a cruzar com milhares de pessoas que, antes de nós, desde há mais de dois séculos por ela passaram com as suas toillettes de cerimónia em ocasiões de festa, os seus trajes de súplica em dias de audiência, as suas fardas de ofício nas horas de despacho, a sua intenção íntima de remediar urgências ou tentar encontrar lenitivos para aflições. As escadas estão, assim, cheias de significado e subi-las é caminhar, degrau a degrau, para uma porta que nos aguarda como se fosse mais uma porta mágica, vazia, cheia de um sortilégio inesperado: para lá dela temos um encontro marcado com duas horas que roçam o absoluto. Para lá dela está o salão do auditório, paredes brancas para imagens de todos os possíveis, cadeiras onde nos sentámos, no primeiro dia, sem uma expectativa definida: o que aconteceu mal dá para se descrever porque as duas horas que ali estivemos, passadas com uma brevidade insuspeita, rapidamente nos puseram numa experiência de arrebatamento, que roça a metafísica. Trata-se simplesmente de música, trata-se simplesmente de uma iniciação à história da música, trata-se apenas e só de revisitar tantos lugares comuns aprendidos e ouvidos ao longo da vida. Ou não se trata nada disso! A experiência daquelas duas horas, que já duram há umas semanas, às quintas-feiras, no Museu de Lamego, tem sido inesquecível, como são sempre inesquecíveis todos os transes da nossa vida em que parece, por momentos, que essa mesma vida resolveu nos abrir um parêntesis. Onde estivemos naquelas duas horas enquanto um powerpoint desdobra imagens, duas colunas de som nos dão um banho de decibéis, dois candelabros iluminam sobre a mesa como se fossem um Aleph de Borges, a voz de José Pessoa nos diz coisas e mais coisas, umas atrás das outras, vociferadas com intensidade como se as pintasse a óleo, no ar, numa tela que ele vê nítida e onde se esforça – e consegue! - por misturar os tons densos das cores que pintam a sua busca da verdade (que ele anda à busca da verdade desde há muito e tem dela já muito mais que o pressentimento, nota-se quando se emociona com a busca da verdade com que esbarra nas músicas, nas canções, nos compositores, na que todos eles empreenderam antes dele), onde estivemos? Onde estivemos? A ouvir José Pessoa? Hm… Não pode ser só! Mas é por causa de José Pessoa. Aquelas duas horas são muito mais do que isso. Ouvimos um José Pessoa que se transcende, que ali naquele leme é mais do que ele. Começámos com trovoadas, com água a correr (De um rio? De um útero? De um choro de desesperança? De uma chuva que sempre choveu assim?), com os sons dos objectos simples, dos objectos fabricados, dos instrumentos primitivos, dos instrumentos evoluídos, da voz humana, do génio humano que sempre buscou na música a forma superlativa de comunicar consigo, de comunicar com o tempo, de comunicar com Deus. Daí surgiu um som que permanece como um baixo contínuo ou como uma toada e que estabelece um cordão de moléculas vibrantes (moléculas?! Qualquer coisa, enfim, eu nada ou quase percebo disto e por isso me inscrevi neste curso…) desde um pastor ou pré-histórico com a sua flauta de Pã feita de osso, à Hildegarda (a da música escarlate), aos trovadores, a todos. Que enche o universo como o Messias, o mundo dos prodígios como as pautas de Mozart, a capacidade infinita do big bang da esperança da liberdade com a Nona e os versos de Schiller. Aquelas duas horas, que passam como dez minutos, têm sido duas horas de uma profunda experiência. Não há ali só música. Ou talvez seja só música. Talvez um dia descubramos que, afinal, a Eternidade seja feita de música. Porque só a Eternidade, onde não contam minutos, nem horas, nem anos, pode ter o sortilégio de fazer com que o tempo de duas horas seja, afinal, o tempo de dez minutos. Só um tempo medido na escala da Eternidade pode explicar os compassos que nos têm arrebatado para algures de dentro daquelas quatro paredes. Que bênção especial terão ali derramado os Bispos de Lamego do século XVIII? É que dentro daquela sala o tempo contrai-se, às quintas-feiras.

domingo, 11 de janeiro de 2009

AS SETE SOMBRAS DA MORTE ©

Tentei encontrar um livro sobre a morte. Para sobre ela poder escrever um outro. Mais bem dito: sobre as mortes. Pensei que, com todas as filosofias que o homem elaborou, com todos os poemas declamados a um pôr-do-sol mediterrânico, com todos os contos que os nórdicos repetiram nos longos serões árcticos, com todos os romances que encheram milhões de páginas e fizeram chorar donzelas nas suas torres, com todos os corpos que juncaram chãos em todas as batalhas, com todo o sangue que correu em quartos, em noites, em jardins e em sonhos, pensei que houvesse um estudo metódico, profundo, sensível e, até, verdadeiro, sobre a morte. Mas não há. Nem pode haver. Porque todas as filosofias, poemas, contos, romances, todos os corpos que juncaram chãos, todo o sangue que correu tem como origem alguém que está vivo. Estando vivo, não tendo a experiência própria da morte, é impossível descrevê-la metodicamente, analisá-la profundamente, senti-la verdadeiramente. Teria que ser um morto a discorrer sobre a morte para ser autêntico o que sobre ela se dissesse. Por isso, da morte só temos a sua definição pela negativa, o seu estudo exterior, a sua decomposição incompleta em livros incompletos. Talvez que a incapacidade ou impossibilidade de se saber algo da morte esteja no próprio homem: está vivo e não sabe, também, definir a vida! Como o poderia da morte?

Divaguei, então, por velhos autores que circunspecta e gravemente se ocuparam da morte. Desde a morte domesticada de um romano mandando um escravo cortar-lhe as veias num banho morno, à morte celta de Artur em que um mundo morreu consigo, às mortes bíblicas – tão universais e diferentes – e às mortes hindus e tibetanas com grandes aves vindo dilacerar a carne putrefacta e abrindo as entranhas para soltar hálitos e espíritos para os céus. Meditei no horizonte (há sempre uma morte a passar no horizonte, sobretudo ao fim da tarde, momento em que os druidas e sacerdotes de muitas épocas e mundos veneravam a morte diária do Sol), nas mortes perfumadas dos egípcios, dum morto em posição fetal e coberto de pétalas aninhado numa cista neolítica, nas mortes horrendas das vítimas sacrificiais dos Incas ou dos desesperados condenados por infames estalines e hitleres, nas dos Távoras sob o sorriso íntimo do Pombal. Divaguei por muitas mortes. Inevitáveis, suicidas, heróicas, desesperadas, nefandas. Nenhuma delas foi uma morte completa no sentido que abarcasse todos os tipos de morte. Não há morte sem mortos e os mortos são de uma infinita série diferente de tipos. Daí também uma infinita série diferente de mortes.

Mas houve uma morte – há uma morte – que se sobrepõe a todas as outras. Uma morte prodigiosa. Nela se resumem todas as capazes de ser substantivas: o horrível, o heróico, o suicida?, o inevitável, o perfume, tudo, tudo está nessa morte. É a morte de Cristo. O único morto que se afirma estar vivo. Não me vou, por isso, ocupar desta morte que, afinal, o não foi definitiva. Alguma morte o será?

Tantos escritores que esbarraram sobre a impossibilidade de saber o que é a morte! Apesar de haver milhares deles a descrever milhões de mortes! Aconteceu-me, até, algo até certo ponto perturbador: para um romance que escrevi, investiguei um certo Patrício Nolan, há trezentos anos negociante de escravos no Bairro Alto, em Lisboa, em cujo estabelecimento há um crime de morte. Coincidentemente, Borges usa este nome num dos seus contos em que coloca também um Manuel Cardoso a vencer um desafio no momento da morte, esvaindo-se em sangue! …

Cheguei a pensar que este será, um dia, porventura, o derradeiro esforço que se exigirá a um literato, a um sábio, a um cientista: compreender e saber o que é a morte. Não podendo, por tudo isto, escrever algo de palpável (das vezes que rocei por ela e ela por mim senti o frio medo de a ter por irreversivelmente perto e afastei-me, receoso e aflito), resta-me fazê-lo sobre a sua sombra. E não podendo escrever algo de vivido sobre a morte (como se se pudesse viver a morte!), resta-me fazê-lo sobre a sua ficção, porventura mais medonha do que se o fosse sobre a sua realidade!

Pus-me, então, a admirar iluminuras esguias e descarnadas de velhos pergaminhos, a ver gravuras antigas, lavradas por Dürer, de caveiras encapuzadas com mangas empunhando uma foice sinistra, do Triunfo da Morte de Pieter Brueghel, dum colorido escuro pintado de desespero e inevitabilidade, de clips do Youtube em que esqueletos grotescos são caricaturas absurdas do dia a dia deste século, um século de morte escamoteada pela propaganda, a querer escondê-la. Sentei-me para ver as mortes dos campos alemães, dos prisioneiros russos, dos refugiados das guerras, de todos aqueles pelos quais a morte passou mas que, em si, já não são a morte mas mortos (deviam os mortos ter outro nome?). E há ainda outras representações da morte mas em que ainda estão vivos os homens que a ela vão sucumbir, como se o artista não pudesse, não quisesse ou não atingisse como teria sido o derradeiro momento (o primordial momento) do desfecho fatal: na Morte de Sócrates, na Morte de Nelson, na de Marat, na de César, na de Napoleão, na de Lavoisier, nas dos mitos antigos, nas dos combates coloniais do século XIX, nas dos piratas lançados ao fundo do mar amarrados a um peso. Em todas, os mortos ainda estão vivos, ainda não exalaram o último suspiro, quando não, estão mesmo fitando-nos nas telas ou nas fotos com uma exoftalmia irreal ou com o ar denunciado de uma representação.

A morte teve momentos ébrios de alucinada atracção de massas: as do Circo Máximo de Roma, as do Gólgota dos Judeus, as das fogueiras medievais em França e em Inglaterra, as dos Auto-de-Fé de Portugal, as da guilhotina da Revolução Francesa. As forcas, as execuções públicas, as punições dos condenados de guerra crucificados ao longo das estradas romanas, os empalados para aviso nas fronteiras transilvânicas da Europa, os massacrados pelas formas mais eficazes da guerra moderna. O calafrio provocado sempre acicatou a curiosidade mórbida – quando não o prazer – de um incontável número de necrófilos. Mas é a morte que toca à porta, a morte caseira, a da almofada que abafa ou do pescoço que se aperta, do punhal que se enterra na pele mole, do veneno que entorpece ou paralisa num esgar, do tiro que surte instantâneo, da água que afoga em silêncio, do gás que mata adormecendo, do choque eléctrico que quebra qualquer resistência, da pancada que traumatiza o cérebro e o anula, é esta morte mais pequena em escala mas maior em sofrimento e em remorso, aquela que esvazia verdadeiramente toda a vida: a vida já tinha começado a abandonar-se e a dar lugar á morte mesmo antes de esta chegar.

A sombra desta morte não é tão grande como a de uma explosão que num instante destrói um milhão de vidas: mas é mais negra. Porque não é anónima. Não é fria, irreal e inconsequente. Não é tão colossal que possa ser ignorada ou vitoriada. Não faz parte da renovação da natureza. Não é a morte como corolário de uma vida. Não é, sequer, a morte encomendada de um mandarim no oriente a troco de dinheiro, conforto e sucesso: é a morte solitária, quente e absoluta de uma alma. Uma morte que espalha e mancha. Uma morte que vai ficar como indelével a ser carregada por quem está vivo. É a morte das mortes. A que dá uma vertigem.

A sombra da morte não é uma sombra como a das árvores, viva e agitada pelo vento nas folhas, semeada de tons de luz a passar e a sobrepor-se pelos espaços do recorte dos ramos revestidos. Não há transparência na sombra da morte. Não. É uma sombra opaca como o chumbo. Mas multiplicada por todos os lados onde se espalha. Tal como a luz se espalha, também assim a sombra da morte. Com uma qualidade característica: a sombra da morte é invisível. Não se sabe por onde está a impedir que passe a luz a não ser no preciso momento em que se faz escuridão, choro e lamento. Esta invisibilidade (de que só me dei conta muito tarde, embora dela tivesse o pressentimento quando li a Divina Comédia ou quando um velho, numa rua de Santiago, meio bêbado, insistia que o morto da catedral não podia ser o Santo porque estava morto – pareceu-me um dia que este mesmo velho estava também à porta da Sé de Lisboa a tresandar a sardinha e a vinho e a recitar de cor argumentos de refutação do Tomismo) foi a mais difícil de entender e, por isso mesmo, a dificuldade em conseguir surpreender a morte. Daí a facilidade audita com que a morte nos surpreende.

Não haverá, então, possibilidade de antecipar o momento, de prever o momento em que essa sombra nos atinge? Há, claro. Soube-o Shakespeare (disseram-me numa pequena biblioteca inglesa, numa daquelas bibliotecas de paróquia de luz incandescente de abat-jour de pano e em que servem chá enquanto lemos livros, que este autor não terá morrido, terá conseguido iludir a morte e, daí, toda a polémica sobre se terá ou não existido – se o não tivesse, como poderia, de facto, ter morrido?) e escreveu-o nas entrelinhas do Romeu e Julieta. Já o tinham sabido os medievais que produziram Eloísa e Abelardo, flagrantes a intuir a morte e a sublimá-la em todos aqueles romances e gestas de cavalaria. Herculano, no “Eurico,o Presbítero”. Wagner, na sua música, particularmente nos coros do Tannhauser. Mozart, nalgumas frases do Requiem. Tantos.      

Confesso que, primeiro, não percebi nada disto. Mas um dia, num arquivo em Coimbra, ao cair-me uma folha escrita a pena dum in-fólio em que procurava uma iluminura alusiva à morte, entrevi, numa letra disfarçada com evidente ingenuidade mas com artifício, uma velha receita que atiraria para a fogueira dominicana, sem remissão, quem quer que fosse o seu autor: nada mais nada menos que uma antiga oração para escapar à morte, escrita em português, em latim e em hebraico. Comecei a lê-la quando uma mão nodosa e pigmentada me tapou o texto. Olhei para o lado e vi uns olhos azuis aguados que me diziam mais do que queriam, cercados de rugas e de bondade. “Schiu”, disse-me, como se temesse ser escutada pelas estantes, acordar qualquer lombada inquisitorial. “Não leia isso! Desperta o contrário do que está a ler”. Depois, colocada a folha frente a um espelho, via-se uma sombra a passar sobre o texto, uma sombra opaca que tapava algumas das palavras e resultava numa invocação à morte. Compreendi então todos aqueles quadros de todas as épocas e estilos em que há alguém a ver o seu reflexo na água. Não está apenas a contemplar, numa atitude de narcisismo, a própria face: está a ver a morte a aproximar-se.

Espelhos! Sempre e mais uma vez o sortilégio dos espelhos! “Tem tudo a ver com a luz”, disse-me ela ainda. “Há sete sombras da morte, visíveis em sete espelhos diferentes. Porque há sete cores no arco-íris. O preto anula-as todas. Tal como o branco. Por isso o luto é preto ou branco ou ambos. Este é um desses espelhos”. Afastou-se entre as estantes, levando debaixo do braço alguns livros para arrumar. Quis encontrá-la mais tarde. Não fui capaz. O bibliotecário disse-me que não trabalhava ali nenhuma mulher, que nessa tarde não entrara ali nenhuma professora, assistente ou aluna. Podia garantir-mo já que teriam de ter passado por ele para entrar ou sair, sentado que estava na secretária da porta. Perguntei-lhe que espelho era aquele, ali na cabeceira de uma estante, emoldurado num torcido barroco e dourado. “Está aí desde D.João V. É um espelho precioso, de vidro italiano e prata do Brasil. Dizia-se que brilhava sozinho sempre que morria um rei ou um escravo na cidade. E que depois ficava escuro uns dias, sem servir para nada porque nada reflectia”.

Como não consegui encontrar o livro que eu queria sobre a morte, escrevi este texto, entretanto, como uma prevenção. Nunca o coloque o leitor diante de um espelho. Não sabe se será um dos outros seis. Se o souber, poderá não ter tempo de o contar a alguém.

© manuel cardoso