© Manuel Cardoso
Toda ela é rica ou, senão, especial,
a gastronomia transmontana. Especialíssima nos pontos de transição entre a Terra Quente e a Terra Fria, que
conseguem juntar o melhor dos dois mundos. Quer os produtos característicos
duma e doutra das zonas neles confluem de forma feliz, quer os saberes, nalguns
casos ancestrais, se apuram no resultado das receitas que, inspiradas das
cozinhas, já de si saborosas, dos vales do Tua e do Sabor, sobem para o
Planalto Mirandês e para as Terras de Bragança e de Vinhais, levadas pelos
viajantes ao longo de milénios, que daqui foram fazendo descer outros tantos
ingredientes, condimentos e fórmulas, ainda por cima coloridas com Castela e
Leão, com a nossa querida vizinha Espanha.
As antiquíssimas vias de comunicação
de Trás-os-Montes, que cruzavam os trajectos leste-oeste com os norte-sul,
serviram para que os produtos e as receitas pudessem fluir e as necessidades desses
viajantes pudessem ser satisfeitas nos seus pontos de paragem ao longo dos
itinerários. As velhíssimas redes de circulação pré-históricas ao longo dos
rios e das linhas dos vales vieram a ser sobrepostas pelas vias romanas, cuja
principal, que daria características ao nosso território, foi a XVII Via, dita
de Braga a Astorga, que antecipou a direcção de todas as outras que se lhe
seguiram. Por isso as estradas reais lhes vieram a fazer o paralelismo, sobretudo
a que depois o Estado Novo denominou Nacional 15, do Porto a Bragança, subindo
do Romeu para o planalto da Serra de Ala por Gradíssimo, descendo a seguir para
o Pontão de Lamas antes de seguir para Vale de Nogueira e Rossas, dali se
avistando já Bragança.
A descrição duma viagem no A Arte
e A Natureza em Portugal, há mais dum século, merece a nossa admiração
perante as muitas horas do dia e de toda a noite num carro a cavalos, desde a
estação de caminho de ferro de Mirandela até à cidade de Bragança.
Ao longo destes trajectos havia “estalagens”,
onde umas carreiras se articulavam com outras, pessoas e cavalos
retemperando-se, haveres à espera nos patamares das escadas por onde se
carregavam para o estrado superior das carroças, dos carros-matos e das
diligências. Todo um mundo que sumiu há muito, de que hoje restam algumas
designações na região de Macedo de Cavaleiros, cruzamento de diversos
corredores de passagem. O quiosque da diligência, a estação e barracões do
Menezes Cordeiro, a Estalagem do Ruço, de Sesulfe, a taberna e muda
de cavalos do Pontão de Lamas.
Hoje há a A4, que sucedeu à N 15, e esta
à Estrada Real, e esta à XVII Via. E à Estação de Muda do Pontão de
Lamas, onde se entroncava a estrada que vinha de Macedo de Cavaleiros e de Vale
de Prados, sucedeu o Restaurante e Hotel Panorama, um ponto de passagem e
paragem rés-vés à autoestrada. Há que tempos eu não parava ali! Mas o Filipe
desafiou-me há dias a ir lá comer umas casulas secas – em boa hora lá fui, ao
fim duma manhã de trabalho!
Uma forma antiga de conservar o
feijão, na Terra Quente, era fazendo-o secar com a vagem, guardando-se em sacos
de linho ou em arcas de madeira, depois de desidratar ao sol sobre uma lona
durante uns dias, modo de ganhar a aparência conhecida de casulas secas. A
forma antiga de conservar a orelha, os pezinhos, as costelas e as tiras de
toucinho entremeadas com carne magra, era na salgadeira e num sítio escuro da
despensa, às vezes numa mosqueira espetados nos ganchos de pendurar e onde se
mantinham inalcançáveis aos ratos. Sobretudo na Terra Fria, todas estas vitualhas
se aguentavam primorosamente semanas ou meses depois das matanças do porco.
Nesta época de frio e de mau tempo, o
cinzentão dos dias faz apetecer mais um prato forte e original como o é o das
casulas secas, bem quentes, com ou sem butelo. Por isso em Bragança, em
Vinhais, no Planalto, sabem tão bem nesta altura. E muito melhor ainda se forem
comidas em Macedo, onde o tempero e a textura do feijão, das batatas, das
carnes gordas e dos enchidos ganham um sabor (será da altitude? Talvez da água…)
especial. E muitíssimo melhor se forem cozinhadas com a receita cuidada da Dona
Lúcia, a mãe do Filipe.
Ao ver a travessa que veio para a
mesa, temi fazer má figura pela abundância da dose ser muito superior à minha
avaliação do que comeria. Mas postos no prato os troços de entremeada, as
costelas, as batatas, as casulas translúcidas com os feijões a escorregarem
para fora, a orelha que se desfazia ao encostar o garfo, tudo regado abundantemente
com azeite dos Olmos, da Casa Cordeiro, tudo a fumegar, tudo a rescender um
cheiro antigo de recordações a que se misturou o do tinto colheita de 2008 da
Duorum, ao olhar lá para fora pelo vidro até ao chão, de que avistava o
Inverno, acabei com a travessa. As melhores casulas secas dos últimos anos.
Seria por estar a pensar nas que terão sido servidas aos extenuados viajantes
das diligências que por ali passavam há mais dum século?
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