© Manuel Cardoso
Ela parou no passeio e as colegas
ficaram a vê-la fazer o seu ritual de sempre que escolhiam aquela rua.
Agora só volto depois do Verão!, confirmou ele ao dono do café, deixando
as moedas em cima do balcão, pegando na mala e no chapéu para se dirigir à
estação de comboios. A silhueta dela apareceu-lhe de tal maneira inesperada ao sair
da porta que, ao abrandar o passo e acertar os óculos para poder prolongar por
uns segundos o relance, obrigou a que um outro homem, que seguia atrás, tivesse
de o ultrapassar subitamente com umas “boas tardes, senhor doutor!” em
tom mais aceso, mas a que respondeu absorto e sem desviar o olhar, concentrado
em admirar aquele flash de sandálias e soquetes, saia lisa e fina a descair
pelas curvas que adivinhava, a tapar até à meia perna, blusa de manga curta e
mãos finas, uma apoiada na cintura, cabelo apanhado em rabo-de-cavalo cujas
pontas brilhavam com o sol. Um perfil de capa de almanaque ou revista, com o
narizinho espetado como se fizesse pontaria, olhar convergente na parede,
queixo que lhe apeteceria trincar, prolongado para um colo tão bom para
segredos e para o peito despontado de menina que seria uma fruta, toda ela ali
para se colher e ele já a imaginar um rapto em sonho, quimera fugaz de volúpia
e puro prazer, a ter de passar o dedo pelo colarinho para descolar a camisa e
engolir em seco, a travar-se de não dizer uma palavra imprópria e doce, mais
pessoas se cruzavam no passeio, num passo ficou a menos de palmos e reprimindo
a mão para não lhe apalpar as nádegas, girando um pouco a cabeça e olhando para
trás, a vê-la mais um instante. O preciso instante em que ela se pôs em bicos
de pés, continuando virada para a parede, esticando mesmo uns dedos para a
frente para se apoiar nos azulejos e conseguir ler bem, na escala da coluna colorida
do termómetro SINGER, a temperatura dessa tarde. “Estão trinta e um graus,
ainda…”, disse no seu meio sorriso educado com que seguiu adiante,
segurando uma pasta de estudante, as colegas do internato aguardando uns metros
mais à frente, livros e cadernos nas mãos, ele só então reparando nelas. Todo o
instinto lhe ficara a ferver e aquela sua obsessão fulminante faria com que o
comboio se perdesse, a partida se adiasse um dia e os pais e a família dela os
fizessem casar em Setembro. Ela nem tempo teve de saber a que saberia um
namoro, enrolada no drama da inevitabilidade e das discussões em casa em que se
viu privada de dar opinião, a quererem-lhe incutir uma culpa que não se justificava
e o marido, logo a seguir, a impor-lhe ficar interna nas Doroteias do Porto
para que acabasse os estudos, que não queria ao lado uma menina como mulher
enquanto parecesse menina, que se diria de si e de todos?
As frases optimistas dos jornais com
o fim da guerra, as sensacionais com a entrada do mundo na era atómica, dos
sucessos dos filmes nos cinemas, as mais trágicas dos relatos da miséria nos
países vencidos, todo esse frenesi de notícias fazia um turbilhão contrastante
com a seca, as carências, as senhas do racionamento que perduravam, a
velocidade dos comboios que ainda permaneciam ronceiros, as luzes de
incandescência tremeluzindo fracas e a obrigar a velas frequentes. Com a rotina
do colégio, as novidades entradas com as latas de fiambre e de queijo americano
da Caritas, a míngua de novas de casa. Do marido, umas raras linhas, umas
visitas e saídas que preferia não ter, que ainda por cima chovia sempre,
naquele Porto. Muitos tempos preenchidos com um olhar sobre si, as memórias das
casas na aldeia e na vila, das colegas do colégio de Bragança – que seria
delas?!, a recordação escura do acender da lareira a crepitar, tachos e
obrigações. Valia a tia, cada vez mais habitual a visitá-la no Porto, a irem as
duas à baixa, a pastelarias ou alguma loja, preciosas horas que compensavam bem
as que a tia demorava nos comboios do Tua e do Douro, para uma ida e volta dum
dia para o outro, para ter a sua visita no colégio. Valia-lhe, também, um irreprimível
desejo de desenhar e escrever. Desconcertante opinião da perspectiva das coisas,
na rotina do colégio, nas ruas, nas viagens, será que ninguém sente todo o
tempo biológico, todo o denso fluxo de vida, todo o atrito dilacerado entre a
vontade e o ter-de-ser? A vida tem pouco de científico, não se pode gastar
em tentativa e erro, mas vive-se em duplas, triplas, múltiplas dimensões. Aquele
rapaz parece um bonitão de cinema!, diziam-lhe as colegas, Um frasco com
um pincel espetado!, sorria ela. E desenhava um frasco naïf com o pincel
espetado, cerdas de riscas desalinhadas, algo que de se mexer ou tocar
suscitaria o horrível. A beleza do caos, a que ela dava sentido, envolvendo
numa ideia os objectos e as situações à sua frente – ou fazendo o processo
inverso, dispondo a ordem em obediência à ideia do seu pensamento. Porque o próprio
caos era uma ideia para si, a forma amiga de lidar com a amargura e a
intensidade. Fechado. Imaginado. Contido, mantido no interior da caixa porque na
vida de conveniência não podiam chocar isto nem aquilo nem aqueloutro, acumulando-se-lhe
no íntimo os ritmos da Lua, das gravidezes, das sombras e melancolias dos puerpérios,
do permanente e insidioso reflectir sobre a sua circunstância.
Ela e o marido mudaram-se para a
província, na realidade um regresso, pequena vila com casas, estação, igreja,
cinema, estabelecimentos, cafés e jardim – e alguma gente, pouca, muito
entretida no diz-que-diz. Pequeno universo medido a metros. Com uns picos de mais
rotações no Natal, Páscoa, Verão, festa na aldeia, bolos de anos com glace e
velinhas, ajustar vestidos para um ou outro baile cheio de aferições e
preconceitos. As filhas. A família ali a dois passos, o tempo de atravessar a
rua. Viviam numa casa-andar, sentimento de ser uma caixa, sem bálsamos nem
cânforas porque tinha vida ainda – e tanta! – mas cheia de paredes.
Promovido a notário, senhor de si e
queixo mais levantado, humor dos de que ninguém-se-meta, o marido tinha o
escritório à distância de atravessar o jardim. A tia, com uma pastelaria nova, Queres
um queque? Um imperador? Um para as “minhas” meninas?, ficava ao tempo e à meia-distância
de seguir pelo passeio o trajecto para a repartição do notário. Os biberons, as
fraldas, as papas, as meninas a andar e a aprender. As pessoas a cumprimentar,
a reparar nas gracinhas, olhos parecidos com a mãe, porte bonito da mãe. O
pequeno buliço da vila. Um apito de comboio ou buzina da automotora que se
ouvia lânguida e ao longe, as sirenes da serração e da oficina dos automóveis a
marcar turnos, o sino muito perto, demasiado perto com as missas e as
avé-marias – não lhe tinham já sido demasiadas?! Um bando de miúdos que
brincavam com gritos e gargalhadas, a correrem com aros na estreita rua
travessa, descalços alguns, senhora de lenço à cabeça tomando conta, escola
antes da escola. A música do rádio e a que vinha do chão, da loja dos discos e
de apetrechos eléctricos, vizinha de baixo, sob o soalho. Jornais, livros e
revistas, por correio ou de mão em mão, felizmente, ou vindos do Porto, duma
ida ali ou a Espinho, ou a Bragança, ou aonde quer que fosse. Folhas em branco
para anotar, visão para muito mais do que as evidências do trivial. Mas o quê,
se não lhe ensinaram? Um dos irmãos, piloto, de vez em quando levava-a a voar,
maravilhosamente, no pequeno Cessna – uma beleza a deslizar sonhos, haverá
outras formas de liberdade? Sempre a Mãe e irmãos, do outro lado da rua,
farmácia a dois passos, conmel para dores de cabeça e de outros dias. As
idas e voltas de tarde, passeio ao longo das casas e da pastelaria da tia até
ao fundo, a constante pastelaria nova naquele tempo intenso, afinal quem lhe
teria dado o dinheiro para montar a pastelaria?, regresso pelo passeio do
jardim, filhas ali consigo, canteiros com flores e árvores.
Dentro de portas, rotinas e ralhos de
mau génio que ela sofria, fosso gigante entre os quarenta e sete dele e os
vinte e seis dela, anos assim, suportara onze. Mas não só os anos. Alguns
vislumbres das pessoas que, ao cruzaram-se e falarem às filhas, olhavam atentamente
na direcção da pastelaria, algumas coincidências de não ver a tia ao passar, A
senhora está lá dentro… quer que a chame?, e a cada mais significativa de o
marido não estar nem sentado na sua secretária, O senhor doutor saiu, não
deve demorar, quer que vá saber dele?, nem na mesa do Café Central. E as
mais frequentes meias frases da vila, os olhares das senhoras a treslerem-lhe
bons-dias e boas-tardes, o ar compungido dalguém da família, o balbucio da tia
que não explicava a ninguém a origem dos contos que custaram montar o salão com
mesas, balcão e cadeiras altas, o desaforo sem palavras do marido, o som do
sino, as conversas passadas com esta, aquela e aqueloutra, um enorme remoinho perturbador
e condensado de vertigem… despertaram em si uma determinação, forjada nas aulas
dos dias frios de Bragança, nas idas à casa de aldeia, nas salas das Doroteias
no Porto, na leitura meditada dos textos e imagens de jornais e revistas. Inabalável
vontade, decisão de deixar brotar o tudo que acumulara, de que o tempo teria de
ser muito mais do que o repetitivo e diário dar à corda no despertador. Uma
saída em frente, em desiderato. Tribunal, separação de pessoas e bens, fosse o
que fosse, qualquer coisa que o não deixasse ter as filhas, qualquer coisa que
a deixasse voar com elas, queria-as a voar consigo!
Quando fechou a porta à chave por
dentro, abriu de repente o seu novo mundo. Não o fez apenas com o sentido de
impedir que entrasse alguém para si já não-existente, jamais. Fê-lo a fechar um
capítulo de modo material, determinada, chave de ferro em fechadura de ferro.
Tudo seria novo.
A tia e o marido sumiram-se,
empurrados para Zamora com impropérios escancarados por toda a vila, que lhes
não perdoava, acabaram corridos até África.
Ela, de malas feitas para Coimbra, um querer ir respirar. Do bater de asas, deixou rasto de vestígios, traços e actos indeléveis, um voo para a Arte. Nessa Arte permanece. Para sempre.
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