sexta-feira, 25 de agosto de 2023

O termómetro, a pastelaria e a Arte


© Manuel Cardoso



Ela parou no passeio e as colegas ficaram a vê-la fazer o seu ritual de sempre que escolhiam aquela rua.

Agora só volto depois do Verão!, confirmou ele ao dono do café, deixando as moedas em cima do balcão, pegando na mala e no chapéu para se dirigir à estação de comboios. A silhueta dela apareceu-lhe de tal maneira inesperada ao sair da porta que, ao abrandar o passo e acertar os óculos para poder prolongar por uns segundos o relance, obrigou a que um outro homem, que seguia atrás, tivesse de o ultrapassar subitamente com umas “boas tardes, senhor doutor!” em tom mais aceso, mas a que respondeu absorto e sem desviar o olhar, concentrado em admirar aquele flash de sandálias e soquetes, saia lisa e fina a descair pelas curvas que adivinhava, a tapar até à meia perna, blusa de manga curta e mãos finas, uma apoiada na cintura, cabelo apanhado em rabo-de-cavalo cujas pontas brilhavam com o sol. Um perfil de capa de almanaque ou revista, com o narizinho espetado como se fizesse pontaria, olhar convergente na parede, queixo que lhe apeteceria trincar, prolongado para um colo tão bom para segredos e para o peito despontado de menina que seria uma fruta, toda ela ali para se colher e ele já a imaginar um rapto em sonho, quimera fugaz de volúpia e puro prazer, a ter de passar o dedo pelo colarinho para descolar a camisa e engolir em seco, a travar-se de não dizer uma palavra imprópria e doce, mais pessoas se cruzavam no passeio, num passo ficou a menos de palmos e reprimindo a mão para não lhe apalpar as nádegas, girando um pouco a cabeça e olhando para trás, a vê-la mais um instante. O preciso instante em que ela se pôs em bicos de pés, continuando virada para a parede, esticando mesmo uns dedos para a frente para se apoiar nos azulejos e conseguir ler bem, na escala da coluna colorida do termómetro SINGER, a temperatura dessa tarde. “Estão trinta e um graus, ainda…”, disse no seu meio sorriso educado com que seguiu adiante, segurando uma pasta de estudante, as colegas do internato aguardando uns metros mais à frente, livros e cadernos nas mãos, ele só então reparando nelas. Todo o instinto lhe ficara a ferver e aquela sua obsessão fulminante faria com que o comboio se perdesse, a partida se adiasse um dia e os pais e a família dela os fizessem casar em Setembro. Ela nem tempo teve de saber a que saberia um namoro, enrolada no drama da inevitabilidade e das discussões em casa em que se viu privada de dar opinião, a quererem-lhe incutir uma culpa que não se justificava e o marido, logo a seguir, a impor-lhe ficar interna nas Doroteias do Porto para que acabasse os estudos, que não queria ao lado uma menina como mulher enquanto parecesse menina, que se diria de si e de todos?      

As frases optimistas dos jornais com o fim da guerra, as sensacionais com a entrada do mundo na era atómica, dos sucessos dos filmes nos cinemas, as mais trágicas dos relatos da miséria nos países vencidos, todo esse frenesi de notícias fazia um turbilhão contrastante com a seca, as carências, as senhas do racionamento que perduravam, a velocidade dos comboios que ainda permaneciam ronceiros, as luzes de incandescência tremeluzindo fracas e a obrigar a velas frequentes. Com a rotina do colégio, as novidades entradas com as latas de fiambre e de queijo americano da Caritas, a míngua de novas de casa. Do marido, umas raras linhas, umas visitas e saídas que preferia não ter, que ainda por cima chovia sempre, naquele Porto. Muitos tempos preenchidos com um olhar sobre si, as memórias das casas na aldeia e na vila, das colegas do colégio de Bragança – que seria delas?!, a recordação escura do acender da lareira a crepitar, tachos e obrigações. Valia a tia, cada vez mais habitual a visitá-la no Porto, a irem as duas à baixa, a pastelarias ou alguma loja, preciosas horas que compensavam bem as que a tia demorava nos comboios do Tua e do Douro, para uma ida e volta dum dia para o outro, para ter a sua visita no colégio. Valia-lhe, também, um irreprimível desejo de desenhar e escrever. Desconcertante opinião da perspectiva das coisas, na rotina do colégio, nas ruas, nas viagens, será que ninguém sente todo o tempo biológico, todo o denso fluxo de vida, todo o atrito dilacerado entre a vontade e o ter-de-ser? A vida tem pouco de científico, não se pode gastar em tentativa e erro, mas vive-se em duplas, triplas, múltiplas dimensões. Aquele rapaz parece um bonitão de cinema!, diziam-lhe as colegas, Um frasco com um pincel espetado!, sorria ela. E desenhava um frasco naïf com o pincel espetado, cerdas de riscas desalinhadas, algo que de se mexer ou tocar suscitaria o horrível. A beleza do caos, a que ela dava sentido, envolvendo numa ideia os objectos e as situações à sua frente – ou fazendo o processo inverso, dispondo a ordem em obediência à ideia do seu pensamento. Porque o próprio caos era uma ideia para si, a forma amiga de lidar com a amargura e a intensidade. Fechado. Imaginado. Contido, mantido no interior da caixa porque na vida de conveniência não podiam chocar isto nem aquilo nem aqueloutro, acumulando-se-lhe no íntimo os ritmos da Lua, das gravidezes, das sombras e melancolias dos puerpérios, do permanente e insidioso reflectir sobre a sua circunstância.

Ela e o marido mudaram-se para a província, na realidade um regresso, pequena vila com casas, estação, igreja, cinema, estabelecimentos, cafés e jardim – e alguma gente, pouca, muito entretida no diz-que-diz. Pequeno universo medido a metros. Com uns picos de mais rotações no Natal, Páscoa, Verão, festa na aldeia, bolos de anos com glace e velinhas, ajustar vestidos para um ou outro baile cheio de aferições e preconceitos. As filhas. A família ali a dois passos, o tempo de atravessar a rua. Viviam numa casa-andar, sentimento de ser uma caixa, sem bálsamos nem cânforas porque tinha vida ainda – e tanta! – mas cheia de paredes.

Promovido a notário, senhor de si e queixo mais levantado, humor dos de que ninguém-se-meta, o marido tinha o escritório à distância de atravessar o jardim. A tia, com uma pastelaria nova, Queres um queque? Um imperador? Um para as “minhas” meninas?, ficava ao tempo e à meia-distância de seguir pelo passeio o trajecto para a repartição do notário. Os biberons, as fraldas, as papas, as meninas a andar e a aprender. As pessoas a cumprimentar, a reparar nas gracinhas, olhos parecidos com a mãe, porte bonito da mãe. O pequeno buliço da vila. Um apito de comboio ou buzina da automotora que se ouvia lânguida e ao longe, as sirenes da serração e da oficina dos automóveis a marcar turnos, o sino muito perto, demasiado perto com as missas e as avé-marias – não lhe tinham já sido demasiadas?! Um bando de miúdos que brincavam com gritos e gargalhadas, a correrem com aros na estreita rua travessa, descalços alguns, senhora de lenço à cabeça tomando conta, escola antes da escola. A música do rádio e a que vinha do chão, da loja dos discos e de apetrechos eléctricos, vizinha de baixo, sob o soalho. Jornais, livros e revistas, por correio ou de mão em mão, felizmente, ou vindos do Porto, duma ida ali ou a Espinho, ou a Bragança, ou aonde quer que fosse. Folhas em branco para anotar, visão para muito mais do que as evidências do trivial. Mas o quê, se não lhe ensinaram? Um dos irmãos, piloto, de vez em quando levava-a a voar, maravilhosamente, no pequeno Cessna – uma beleza a deslizar sonhos, haverá outras formas de liberdade? Sempre a Mãe e irmãos, do outro lado da rua, farmácia a dois passos, conmel para dores de cabeça e de outros dias. As idas e voltas de tarde, passeio ao longo das casas e da pastelaria da tia até ao fundo, a constante pastelaria nova naquele tempo intenso, afinal quem lhe teria dado o dinheiro para montar a pastelaria?, regresso pelo passeio do jardim, filhas ali consigo, canteiros com flores e árvores.

Dentro de portas, rotinas e ralhos de mau génio que ela sofria, fosso gigante entre os quarenta e sete dele e os vinte e seis dela, anos assim, suportara onze. Mas não só os anos. Alguns vislumbres das pessoas que, ao cruzaram-se e falarem às filhas, olhavam atentamente na direcção da pastelaria, algumas coincidências de não ver a tia ao passar, A senhora está lá dentro… quer que a chame?, e a cada mais significativa de o marido não estar nem sentado na sua secretária, O senhor doutor saiu, não deve demorar, quer que vá saber dele?, nem na mesa do Café Central. E as mais frequentes meias frases da vila, os olhares das senhoras a treslerem-lhe bons-dias e boas-tardes, o ar compungido dalguém da família, o balbucio da tia que não explicava a ninguém a origem dos contos que custaram montar o salão com mesas, balcão e cadeiras altas, o desaforo sem palavras do marido, o som do sino, as conversas passadas com esta, aquela e aqueloutra, um enorme remoinho perturbador e condensado de vertigem… despertaram em si uma determinação, forjada nas aulas dos dias frios de Bragança, nas idas à casa de aldeia, nas salas das Doroteias no Porto, na leitura meditada dos textos e imagens de jornais e revistas. Inabalável vontade, decisão de deixar brotar o tudo que acumulara, de que o tempo teria de ser muito mais do que o repetitivo e diário dar à corda no despertador. Uma saída em frente, em desiderato. Tribunal, separação de pessoas e bens, fosse o que fosse, qualquer coisa que o não deixasse ter as filhas, qualquer coisa que a deixasse voar com elas, queria-as a voar consigo!

Quando fechou a porta à chave por dentro, abriu de repente o seu novo mundo. Não o fez apenas com o sentido de impedir que entrasse alguém para si já não-existente, jamais. Fê-lo a fechar um capítulo de modo material, determinada, chave de ferro em fechadura de ferro. Tudo seria novo.

A tia e o marido sumiram-se, empurrados para Zamora com impropérios escancarados por toda a vila, que lhes não perdoava, acabaram corridos até África.

Ela, de malas feitas para Coimbra, um querer ir respirar. Do bater de asas, deixou rasto de vestígios, traços e actos indeléveis, um voo para a Arte. Nessa Arte permanece. Para sempre. 

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