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domingo, 11 de janeiro de 2009

AS SETE SOMBRAS DA MORTE ©

Tentei encontrar um livro sobre a morte. Para sobre ela poder escrever um outro. Mais bem dito: sobre as mortes. Pensei que, com todas as filosofias que o homem elaborou, com todos os poemas declamados a um pôr-do-sol mediterrânico, com todos os contos que os nórdicos repetiram nos longos serões árcticos, com todos os romances que encheram milhões de páginas e fizeram chorar donzelas nas suas torres, com todos os corpos que juncaram chãos em todas as batalhas, com todo o sangue que correu em quartos, em noites, em jardins e em sonhos, pensei que houvesse um estudo metódico, profundo, sensível e, até, verdadeiro, sobre a morte. Mas não há. Nem pode haver. Porque todas as filosofias, poemas, contos, romances, todos os corpos que juncaram chãos, todo o sangue que correu tem como origem alguém que está vivo. Estando vivo, não tendo a experiência própria da morte, é impossível descrevê-la metodicamente, analisá-la profundamente, senti-la verdadeiramente. Teria que ser um morto a discorrer sobre a morte para ser autêntico o que sobre ela se dissesse. Por isso, da morte só temos a sua definição pela negativa, o seu estudo exterior, a sua decomposição incompleta em livros incompletos. Talvez que a incapacidade ou impossibilidade de se saber algo da morte esteja no próprio homem: está vivo e não sabe, também, definir a vida! Como o poderia da morte?

Divaguei, então, por velhos autores que circunspecta e gravemente se ocuparam da morte. Desde a morte domesticada de um romano mandando um escravo cortar-lhe as veias num banho morno, à morte celta de Artur em que um mundo morreu consigo, às mortes bíblicas – tão universais e diferentes – e às mortes hindus e tibetanas com grandes aves vindo dilacerar a carne putrefacta e abrindo as entranhas para soltar hálitos e espíritos para os céus. Meditei no horizonte (há sempre uma morte a passar no horizonte, sobretudo ao fim da tarde, momento em que os druidas e sacerdotes de muitas épocas e mundos veneravam a morte diária do Sol), nas mortes perfumadas dos egípcios, dum morto em posição fetal e coberto de pétalas aninhado numa cista neolítica, nas mortes horrendas das vítimas sacrificiais dos Incas ou dos desesperados condenados por infames estalines e hitleres, nas dos Távoras sob o sorriso íntimo do Pombal. Divaguei por muitas mortes. Inevitáveis, suicidas, heróicas, desesperadas, nefandas. Nenhuma delas foi uma morte completa no sentido que abarcasse todos os tipos de morte. Não há morte sem mortos e os mortos são de uma infinita série diferente de tipos. Daí também uma infinita série diferente de mortes.

Mas houve uma morte – há uma morte – que se sobrepõe a todas as outras. Uma morte prodigiosa. Nela se resumem todas as capazes de ser substantivas: o horrível, o heróico, o suicida?, o inevitável, o perfume, tudo, tudo está nessa morte. É a morte de Cristo. O único morto que se afirma estar vivo. Não me vou, por isso, ocupar desta morte que, afinal, o não foi definitiva. Alguma morte o será?

Tantos escritores que esbarraram sobre a impossibilidade de saber o que é a morte! Apesar de haver milhares deles a descrever milhões de mortes! Aconteceu-me, até, algo até certo ponto perturbador: para um romance que escrevi, investiguei um certo Patrício Nolan, há trezentos anos negociante de escravos no Bairro Alto, em Lisboa, em cujo estabelecimento há um crime de morte. Coincidentemente, Borges usa este nome num dos seus contos em que coloca também um Manuel Cardoso a vencer um desafio no momento da morte, esvaindo-se em sangue! …

Cheguei a pensar que este será, um dia, porventura, o derradeiro esforço que se exigirá a um literato, a um sábio, a um cientista: compreender e saber o que é a morte. Não podendo, por tudo isto, escrever algo de palpável (das vezes que rocei por ela e ela por mim senti o frio medo de a ter por irreversivelmente perto e afastei-me, receoso e aflito), resta-me fazê-lo sobre a sua sombra. E não podendo escrever algo de vivido sobre a morte (como se se pudesse viver a morte!), resta-me fazê-lo sobre a sua ficção, porventura mais medonha do que se o fosse sobre a sua realidade!

Pus-me, então, a admirar iluminuras esguias e descarnadas de velhos pergaminhos, a ver gravuras antigas, lavradas por Dürer, de caveiras encapuzadas com mangas empunhando uma foice sinistra, do Triunfo da Morte de Pieter Brueghel, dum colorido escuro pintado de desespero e inevitabilidade, de clips do Youtube em que esqueletos grotescos são caricaturas absurdas do dia a dia deste século, um século de morte escamoteada pela propaganda, a querer escondê-la. Sentei-me para ver as mortes dos campos alemães, dos prisioneiros russos, dos refugiados das guerras, de todos aqueles pelos quais a morte passou mas que, em si, já não são a morte mas mortos (deviam os mortos ter outro nome?). E há ainda outras representações da morte mas em que ainda estão vivos os homens que a ela vão sucumbir, como se o artista não pudesse, não quisesse ou não atingisse como teria sido o derradeiro momento (o primordial momento) do desfecho fatal: na Morte de Sócrates, na Morte de Nelson, na de Marat, na de César, na de Napoleão, na de Lavoisier, nas dos mitos antigos, nas dos combates coloniais do século XIX, nas dos piratas lançados ao fundo do mar amarrados a um peso. Em todas, os mortos ainda estão vivos, ainda não exalaram o último suspiro, quando não, estão mesmo fitando-nos nas telas ou nas fotos com uma exoftalmia irreal ou com o ar denunciado de uma representação.

A morte teve momentos ébrios de alucinada atracção de massas: as do Circo Máximo de Roma, as do Gólgota dos Judeus, as das fogueiras medievais em França e em Inglaterra, as dos Auto-de-Fé de Portugal, as da guilhotina da Revolução Francesa. As forcas, as execuções públicas, as punições dos condenados de guerra crucificados ao longo das estradas romanas, os empalados para aviso nas fronteiras transilvânicas da Europa, os massacrados pelas formas mais eficazes da guerra moderna. O calafrio provocado sempre acicatou a curiosidade mórbida – quando não o prazer – de um incontável número de necrófilos. Mas é a morte que toca à porta, a morte caseira, a da almofada que abafa ou do pescoço que se aperta, do punhal que se enterra na pele mole, do veneno que entorpece ou paralisa num esgar, do tiro que surte instantâneo, da água que afoga em silêncio, do gás que mata adormecendo, do choque eléctrico que quebra qualquer resistência, da pancada que traumatiza o cérebro e o anula, é esta morte mais pequena em escala mas maior em sofrimento e em remorso, aquela que esvazia verdadeiramente toda a vida: a vida já tinha começado a abandonar-se e a dar lugar á morte mesmo antes de esta chegar.

A sombra desta morte não é tão grande como a de uma explosão que num instante destrói um milhão de vidas: mas é mais negra. Porque não é anónima. Não é fria, irreal e inconsequente. Não é tão colossal que possa ser ignorada ou vitoriada. Não faz parte da renovação da natureza. Não é a morte como corolário de uma vida. Não é, sequer, a morte encomendada de um mandarim no oriente a troco de dinheiro, conforto e sucesso: é a morte solitária, quente e absoluta de uma alma. Uma morte que espalha e mancha. Uma morte que vai ficar como indelével a ser carregada por quem está vivo. É a morte das mortes. A que dá uma vertigem.

A sombra da morte não é uma sombra como a das árvores, viva e agitada pelo vento nas folhas, semeada de tons de luz a passar e a sobrepor-se pelos espaços do recorte dos ramos revestidos. Não há transparência na sombra da morte. Não. É uma sombra opaca como o chumbo. Mas multiplicada por todos os lados onde se espalha. Tal como a luz se espalha, também assim a sombra da morte. Com uma qualidade característica: a sombra da morte é invisível. Não se sabe por onde está a impedir que passe a luz a não ser no preciso momento em que se faz escuridão, choro e lamento. Esta invisibilidade (de que só me dei conta muito tarde, embora dela tivesse o pressentimento quando li a Divina Comédia ou quando um velho, numa rua de Santiago, meio bêbado, insistia que o morto da catedral não podia ser o Santo porque estava morto – pareceu-me um dia que este mesmo velho estava também à porta da Sé de Lisboa a tresandar a sardinha e a vinho e a recitar de cor argumentos de refutação do Tomismo) foi a mais difícil de entender e, por isso mesmo, a dificuldade em conseguir surpreender a morte. Daí a facilidade audita com que a morte nos surpreende.

Não haverá, então, possibilidade de antecipar o momento, de prever o momento em que essa sombra nos atinge? Há, claro. Soube-o Shakespeare (disseram-me numa pequena biblioteca inglesa, numa daquelas bibliotecas de paróquia de luz incandescente de abat-jour de pano e em que servem chá enquanto lemos livros, que este autor não terá morrido, terá conseguido iludir a morte e, daí, toda a polémica sobre se terá ou não existido – se o não tivesse, como poderia, de facto, ter morrido?) e escreveu-o nas entrelinhas do Romeu e Julieta. Já o tinham sabido os medievais que produziram Eloísa e Abelardo, flagrantes a intuir a morte e a sublimá-la em todos aqueles romances e gestas de cavalaria. Herculano, no “Eurico,o Presbítero”. Wagner, na sua música, particularmente nos coros do Tannhauser. Mozart, nalgumas frases do Requiem. Tantos.      

Confesso que, primeiro, não percebi nada disto. Mas um dia, num arquivo em Coimbra, ao cair-me uma folha escrita a pena dum in-fólio em que procurava uma iluminura alusiva à morte, entrevi, numa letra disfarçada com evidente ingenuidade mas com artifício, uma velha receita que atiraria para a fogueira dominicana, sem remissão, quem quer que fosse o seu autor: nada mais nada menos que uma antiga oração para escapar à morte, escrita em português, em latim e em hebraico. Comecei a lê-la quando uma mão nodosa e pigmentada me tapou o texto. Olhei para o lado e vi uns olhos azuis aguados que me diziam mais do que queriam, cercados de rugas e de bondade. “Schiu”, disse-me, como se temesse ser escutada pelas estantes, acordar qualquer lombada inquisitorial. “Não leia isso! Desperta o contrário do que está a ler”. Depois, colocada a folha frente a um espelho, via-se uma sombra a passar sobre o texto, uma sombra opaca que tapava algumas das palavras e resultava numa invocação à morte. Compreendi então todos aqueles quadros de todas as épocas e estilos em que há alguém a ver o seu reflexo na água. Não está apenas a contemplar, numa atitude de narcisismo, a própria face: está a ver a morte a aproximar-se.

Espelhos! Sempre e mais uma vez o sortilégio dos espelhos! “Tem tudo a ver com a luz”, disse-me ela ainda. “Há sete sombras da morte, visíveis em sete espelhos diferentes. Porque há sete cores no arco-íris. O preto anula-as todas. Tal como o branco. Por isso o luto é preto ou branco ou ambos. Este é um desses espelhos”. Afastou-se entre as estantes, levando debaixo do braço alguns livros para arrumar. Quis encontrá-la mais tarde. Não fui capaz. O bibliotecário disse-me que não trabalhava ali nenhuma mulher, que nessa tarde não entrara ali nenhuma professora, assistente ou aluna. Podia garantir-mo já que teriam de ter passado por ele para entrar ou sair, sentado que estava na secretária da porta. Perguntei-lhe que espelho era aquele, ali na cabeceira de uma estante, emoldurado num torcido barroco e dourado. “Está aí desde D.João V. É um espelho precioso, de vidro italiano e prata do Brasil. Dizia-se que brilhava sozinho sempre que morria um rei ou um escravo na cidade. E que depois ficava escuro uns dias, sem servir para nada porque nada reflectia”.

Como não consegui encontrar o livro que eu queria sobre a morte, escrevi este texto, entretanto, como uma prevenção. Nunca o coloque o leitor diante de um espelho. Não sabe se será um dos outros seis. Se o souber, poderá não ter tempo de o contar a alguém.

© manuel cardoso