quinta-feira, 28 de outubro de 2021

AZEITE 1. As lonas das azeitonas

Um dos cheiros guardados da minha infância nasceu no abrir da arca das lonas de serapilheira, um cheiro seco e doce que anunciava azáfama e trabalho heróico: iniciava-se a apanha da azeitona. Basta fechar os olhos e inspirar, perdura ainda. Estou a ver o senhor Maximino de Grijó, em pé, junto a meu Pai, a ouvir as últimas instruções, sob a varanda, e depois todo o rancho a partir para o Olival do Lameirão, olhando o céu, perscrutando as nuvens, carregado de varas de castanho e paus de varejo, sobressaindo o vareiro para as oliveiras mais altas, rolos de sacas e lonas, cestos de verga de pôr ao braço e canastras maiores, que uns levavam viradas sobre a cabeça. Muitas vezes fui com eles e experimentei o sentir os dedos hirtos no regelo dos dias de geada a pegar com esforço e dor em cada bago, o peso do balanço que dar à vara, certo, regulado e travado para não ferir demais a oliveira, o correr para baixo duma árvore maior se a bátega aumentava e alagava tudo, costas a gelar com a água. Parava-se para um pão com toucinho salgado e bolos de bacalhau, café de cevada quente ou vinho em caneca, tirado duma cabaça, acesa uma fogueira de guiços juntados, cujo fumo morno era um consolo e secava aventais e xailes. Que bem sabiam então uns figos secos, umas nozes ou umas rodelas da chouriça assada com pão de centeio! O orgulho do grupo e promessa de dia pago ia ficando aqui e ali, sacas cheias de madurais, verdeais, cobrançosas e santulhanas, entremeadas com as galegas das oliveiras grandes, com as negrinhas mais esmagáveis, mistura de cores e tamanhos, recolhidas ao longo do regresso num carro de bois que nos acompanhava. Seriam ainda descarregadas numa tarde de sol e vento frio, num monte, no qual se cravava uma pá de madeira que as atirava ao ar com exímia pontaria, indo cair adiante, sobre as lonas, deixando nesse voo ficar para trás as folhas, e sendo novamente ensacadas apenas as azeitonas, atadas com baraços de sisal por duas mulheres mais possantes que as passavam aos rapazes mais expeditos, a pô-las de novo no carro que as traria para o cabanal a aguardar a vez de as levar ao lagar. Bojudas, as sacas remendadas e manchadas tinham alguns dizeres: café de Angola, qualquer coisa Alcácer, qualquer coisa Brasil, uma delas a palavra Farinha já mal distinta num tom desvanecido.


Esse cheiro guardado da infância das lonas e sacas da azeitona, quase todas de serapilheira marcada com AC ou MC (as letras das iniciais do meu Avô e do meu Pai), uma ou outra ainda, mais remendada, de estopa com S (de Sousa, da casa das minhas Tias e do meu Bisavô), esse cheiro, digo, chega até mim como um perfume dum tempo difícil e bom (porque os tempos podem ser difíceis mas bons), de ritmo marcado pelas culturas do ano em que a da azeitona era uma das nobres! Essas lonas e sacas saíam das arcas lavadas e secas, depressa se manchavam com o trabalho, a terra, a chuva, as azeitonas esmagadas. Rasgavam-se e eram logo remendadas com fio-de-norte e agulha grossa que também refazia bainhas nas pontas esfiapadas. Aguentavam todos os tratos durante a apanha da azeitona (e uma delas iria servir para cobertura duma tenda que eu montara no quintal, qual Baden-Powell, com uma armação de choupo e freixo de galhos tirados do sequeiro!). Aguentavam tudo e que pena tenho de as não ter com as suas histórias, remendos eloquentes, testemunhos de fabrico duma economia circular que já o era avant-la-lettre, memória de civilização e também duns namoros que se pressentiam quando ficavam a secar, já no fim, confortáveis sobre a palha e o feno guardados no palheiro. Logo que em Fevereiro ou Março vinham uns dias de sol firme com manhãs de geada, eram levadas para o tanque da horta de “lá-detrás” e lavadas com sabão, passadas por água, postas a escorrer, depois suspensas no longo arame de pendurar a roupa, esticado entre o freixo, olmo grande e a catalpa do quintal. Logo que secas, dobravam-se e ainda esperavam uns dias, ou na cozinha, ou já na despensa em cima da vasta arca do grão (centeio e trigo, que cheiro tão bom, também!) antes de irem para a sua. De onde voltavam a sair em dias quentes de Maio ou Junho, se lhes reavivavam as letras com tinta vermelha, se espairecia algum mofo de guardado, se preparavam, mas poucas, para quando surgisse terem de ir às nozes ou às amêndoas, também alguns dos seus dias de glória, completados pela honra destes frutos em cima de si secarem, ao sol no chão do quintal ou no telhado de zinco, aqui a acompanhar as ameixas.

Guardei sempre o cheiro das lonas como um dos cheiros da minha infância. Pelo seu carácter, pelo seu significado, por ser tão bom! Um cheiro de trabalho e dificuldade mas também um cheiro de satisfação e abundância. Um cheiro de alegria e felicidade. Um cheiro de vida. Um perfume.

Hoje o azeite já nada tem que ver com o cheiro destas lonas mas tem ainda muito de si: o de permanecer na memória com o brilho das coisas dignas de permanecer na memória. E se este cheiro vem de tão longe até ao teclado do meu computador, é porque dele também se faz a luz que o azeite, ao arder desde há milénios de civilização, tem espairado sobre nós. De forma doce e seca, brilhante, como quem abre as arcas de guardar lonas e sacas de apanhar azeitonas com o mesmo encanto e expectativa de quem puxa o lustro à lâmpada do génio de Bagdad. No dia de começar. Para a apanha das azeitonas da nossa vida. Doces, secas, cheias de luz.