terça-feira, 18 de março de 2025

Portugal, o vinho e Donald Trump

 


©Manuel Cardoso

Giovanni Papini e O Relógio Parado às Sete, a nossa vida a sincronizar-se com o resto do mundo apenas quando este coincide com a nossa imobilidade, duas vezes por dia. Giovanni Guareshi com Don Camillo e Peppone,[1] metáfora sobre a impossibilidade de se mandar no tempo, quando ambos rivalizam para que o relógio se antecipe a dar as horas, ou, se quisermos, do que acontece quando nos alheamos da realidade para impor as nossas vontades sobre a verdade, neste caso o tempo. Tempo que vai ficando cada vez mais desfasado! Estes desfasamentos, literários, ganham outros contornos e significados quando aplicados à nossa vida real. Vivemos num mundo a ficar com horas desfasadas, muito desfasadas. O desfasamento não será nosso?

1.      Portugal é um país importante, entre outras coisas, pela produção de vinho. Tanto no presente como historicamente falando. Não se entende, por isso, o quase alheamento da população em geral para com o vinho, a timidez da promoção, quando não, mesmo, o combate interno que lhe é feito, o desprezo a que é votado em muitos ambientes, se o compararmos com a cerveja, por exemplo. Muito menos se entende a ignorância política sobre o vinho, quer em relação à produção quer ao comércio e, muito mais ainda, ao consumo. Não se entende mesmo! Será propositada? Deveria fazer parte do dia a dia o conhecimento do vinho nacional pela positiva, na economia de Portugal e na nossa cultura. Mas não. Não é compreensível nem é aceitável tanta ignorância – e este estado de coisas tem de mudar, a começar pelos políticos.

2.      Há três ou quatro dias que, mais uma vez, se foi sobressaltado por uma ameaça de Donald Trump, o Presidente dos Estados Unidos da América, que, desta vez, nos afectaria estrondosamente: 200% de aumento nas tarifas de importação de vinho. Logo começaram os megafones com as vozes contra Trump. Tem sido assim que o tempo vai correndo quando se trata de Trump em relação a seja o que for: talvez o pensamento de muitos esteja parado antes de Trump, quase como o relógio de Papini, ou o compasso das horas acicatado por Trump, como os ponteiros nas torres do pequeno mundo de Don Camillo, tenha dessincronizado as moléculas dos que não se deveriam deixar dessincronizar.

3.      Há dias, também, estava na sala dos microfilmes da Biblioteca Nacional a desbobinar as páginas dos Diário de Notícias de há mais de cinquenta anos, e os meus olhos iam lendo títulos dos mais diversos, parando só aqui e ali para apontamentos que me interessavam para o tema de estudo, que nessa manhã não era o do vinho. Mas alguns dos títulos de primeira página eram inevitavelmente sobre o vinho, sobre as tarifas alfandegárias que pendiam sobre o Vinho do Porto, sobretudo, por políticas de diferentes países. Tarifas sempre houve. E haverá. Não é de agora. A ameaça de Trump em impor tarifas de 200% sobre o vinho e produtos alcoólicos europeus não partiu de Trump. Partiu dos europeus, ao considerar tarifas sobre o bourbon, o whiskie americano, em retaliação pelas de outros produtos, como metais, da ordem dos 50%. É incompreensível que não se antecipasse a reacção da Casa Branca às tarifas ameaçadas pela Europa! Por isso a minha estupefação perante a reacção dos europeus em relação à reacção de Trump. Não se mentalizaram ainda de que estamos numa guerra comercial de reciprocidade de medidas e de ricochetes constantes? Não compreenderam ainda os argumentos da nova Administração Americana? Não compreenderam ainda Trump?

4.      Presta-se um muito mau serviço à estratégia e tácticas comerciais das nossas empresas se um sentimento em relação ao Presidente do mais poderoso país do mundo antecipar uma análise fria e uma decisão informada – e precipitar reacções descabidas! Portugal exportou mais de 100 M€ de vinho para os Estados Unidos da América no último ano. É um número importante à nossa escala. E estão de parabéns as empresas que o têm feito. E está muitíssimo de parabéns a ViniPortugal pelas iniciativas perseverantes que tem desenvolvido, e em que tem sido exemplo e tem sido seguida, para que o potencialmente mais significativo destino de exportação dos nossos vinhos seja desbravado, e sejam estabelecidas redes de promoção e de comercialização perduráveis. A promoção dos vinhos nacionais no estrangeiro, e dentro de portas, deveria merecer muitíssimo mais atenção do que aquela que tem tido e é uma tristeza que não tenham sido esgotadas as verbas previstas no programa para o efeito. Sim, mudaram normas ou regulamentos, sim, em Espanha também isto ou aquilo, mas, desculpem lá!, em Portugal deveria ter havido capacidade de antecipação e manobra para que se fizesse doutra maneira. Quer por parte das empresas quer por parte das entidades. Ainda por cima o nosso orçamento é tão pequeno! Deveria ter havido imaginação e diligência da parte dos mentores e decisores. Poderei estar a ser um pouco injusto porque também não disponho de todos os dados sobre o assunto, mas quero com isto dizer que tem de haver proactividade, criatividade e inovação para que se possam ampliar e tornar muitíssimo mais eficazes as acções de promoção dos nossos vinhos!

5.      A existência de delegados comerciais residentes e itinerantes além-Atlântico, para os nossos vinhos, tanto na América do Norte como na América do Sul, com uma estratégia definida de promoção, uma carta de missão clara e de objectivos e metas mensuráveis e geríveis, estatuto e acção que fossem estabelecidos e protocolados pela ViniPortugal, pela ACIBEV, pela AEVP e por empresas que quisessem aderir independentemente, financiados pelos orçamentos dos IVV e IVDP, poderia e deveria ser uma resposta séria, para além duma manifestação de intenções, na tentativa de contrariar os efeitos prejudiciais que as tarifas, ou seja o que for, possam causar. Um menu de acções possíveis poderiam ser desenhadas a partir disto, com benefícios certos para as marcas e os vinhos nacionais, perduráveis, a dar sustentabilidade às transacções, continuidade no tempo a coisas que só se conseguem manter se tiverem essa continuidade no tempo. A boa política comercial só o será se for acompanhada dum claro movimento de impregnação da cultura do vinho de Portugal na cultura americana. Há tanto a fazer nessa perspectiva! Há tanto que se pode beneficiar duma política comercial bem conduzida!

6.      Na circunstância actual de que só quem tenha unhas é que poderá tocar guitarra, ou seja, só quem tenha massa cinzenta e capacidade de conceptualização, é imprescindível estudar bem e conhecer bem os adversários, porque duma guerra comercial se trata. E conhecer muito melhor os aliados para que não se tornem nossos competidores sem darmos por isso. Há quem o faça, quem o esteja já a fazer. Por isso, no meio do coro, algo uníssono em volume mas cacofónico e desafinado por falta de maestro, ouvem-se algumas vozes – felizmente! – a encarar a realidade. A de que é necessário pensar o que e como o fazer perante tarifas impostas e conseguir sobreviver comercialmente, assim. A de que há que perceber como tirar partido de tarifas percentualmente iguais inter pares, a de ser engenhoso e ter a arte de o conseguirmos. Se os 200% se aplicarem igualmente ao champagne, ao cava e aos nossos espumantes, nós ficamos em vantagem competitiva? E os outros nossos vinhos, não podem tirar partido disso? Os americanos não vão deixar de beber vinho se estivermos presentes e atentos, poderão fazê-lo momentaneamente mas rapidamente recuperarão o seu poder de compra!... E dependerá de nós preferirem o nosso vinho e não outro. Não nos enganemos com argumentos fáceis de que o melhor será mudarmos de mercados e deixarmos livre para outrem o nosso espaço na América! Saibamos ver para lá das tarifas, saibamos penetrar no gigantesco mundo e futuro americanos!

Ao longo da História de Portugal houve sempre mitos a tolher-nos e a ensombrar o nosso horizonte mas para os quais houve sempre gente de categoria para os ultrapassar. Foi assim com o Bojador, com o das Tormentas, com o do Mostrengo que estava no Fim do Mar! Que não nos deixemos amedrontar por mitos, hoje. Que assumamos o nosso papel e esforço. E saibamos estudar e entender os novos tempos. Outrora soubemos estender a mão e fazer tratados com povos que desconhecíamos. Também hoje temos de o saber fazer. Compreender aqueles com quem nos queremos continuar a dar porque podem ser, serão, o nosso melhor cliente. Mesmo com tarifas.

Não nos intimidemos com estas tarifas nem com a perspectiva de que as vindimas serão em excesso, de que morreremos afogados em vinho! Não nos iludamos com a responsabilização de outros pelos nossos fracassos. Saibamos decompor os problemas nos seus diversos factores e resolver cada uma das suas equações. Com brio e com optimismo no futuro. Sem mitos, sem medos, com inteligência. Se outros são capazes, nós também somos.

Donald Trump está a querer fazer a América grande outra vez e está no seu direito. Teremos tudo a ganhar se pudermos continuar a vender o nosso vinho aos americanos: fazendo-o bom, vendendo-o bem, garantindo que continua a chegar aos seus destinos, a fazer parte da vida americana – e bebendo-o também! Saúde, aos nossos clientes!

Foto: composição livre com páginas em papel da Collier’s de 9 de Abril de 1949. Sobre a Collier’s:  https://en.wikipedia.org/wiki/Collier%27s                      

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