©Manuel
Cardoso
Giovanni Papini e O Relógio Parado às Sete,
a nossa vida a sincronizar-se com o resto do mundo apenas quando este coincide
com a nossa imobilidade, duas vezes por dia. Giovanni Guareshi com Don Camillo
e Peppone,[1]
metáfora sobre a impossibilidade de se mandar no tempo, quando ambos rivalizam
para que o relógio se antecipe a dar as horas, ou, se quisermos, do que
acontece quando nos alheamos da realidade para impor as nossas vontades sobre a
verdade, neste caso o tempo.
Tempo que vai ficando cada vez mais desfasado! Estes desfasamentos, literários,
ganham outros contornos e significados quando aplicados à nossa vida real. Vivemos
num mundo a ficar com horas desfasadas, muito desfasadas. O desfasamento não
será nosso?
1.
Portugal
é um país importante, entre outras coisas, pela produção de vinho. Tanto no presente
como historicamente falando. Não se entende, por isso, o quase alheamento da
população em geral para com o vinho, a timidez da promoção, quando não, mesmo,
o combate interno que lhe é feito, o desprezo a que é votado em muitos
ambientes, se o compararmos com a cerveja, por exemplo. Muito menos se entende
a ignorância política sobre o vinho, quer em relação à produção quer ao
comércio e, muito mais ainda, ao consumo. Não se entende mesmo! Será
propositada? Deveria fazer parte do dia a dia o conhecimento do vinho nacional
pela positiva, na economia de Portugal e na nossa cultura. Mas não. Não é
compreensível nem é aceitável tanta ignorância – e este estado de coisas tem de
mudar, a começar pelos políticos.
2.
Há
três ou quatro dias que, mais uma vez, se foi sobressaltado por uma ameaça de
Donald Trump, o Presidente dos Estados Unidos da América, que, desta vez, nos
afectaria estrondosamente: 200% de aumento nas tarifas de importação de vinho. Logo
começaram os megafones com as vozes contra Trump. Tem sido assim que o tempo
vai correndo quando se trata de Trump em relação a seja o que for: talvez o
pensamento de muitos esteja parado antes de Trump, quase como o relógio de
Papini, ou o compasso das horas acicatado por Trump, como os ponteiros nas
torres do pequeno mundo de Don Camillo, tenha dessincronizado as moléculas dos
que não se deveriam deixar dessincronizar.
3.
Há
dias, também, estava na sala dos microfilmes da Biblioteca Nacional a desbobinar
as páginas dos Diário de Notícias de há mais de cinquenta anos, e os meus olhos
iam lendo títulos dos mais diversos, parando só aqui e ali para apontamentos
que me interessavam para o tema de estudo, que nessa manhã não era o do vinho.
Mas alguns dos títulos de primeira página eram inevitavelmente sobre o vinho,
sobre as tarifas alfandegárias que pendiam sobre o Vinho do Porto, sobretudo,
por políticas de diferentes países. Tarifas sempre houve. E haverá. Não é de
agora. A ameaça de Trump em impor tarifas de 200% sobre o vinho e produtos
alcoólicos europeus não partiu de Trump. Partiu dos europeus, ao considerar
tarifas sobre o bourbon, o whiskie americano, em retaliação pelas de outros
produtos, como metais, da ordem dos 50%. É incompreensível que não se
antecipasse a reacção da Casa Branca às tarifas ameaçadas pela Europa! Por isso
a minha estupefação perante a reacção dos europeus em relação à reacção de
Trump. Não se mentalizaram ainda de que estamos numa guerra comercial de
reciprocidade de medidas e de ricochetes constantes? Não compreenderam ainda os
argumentos da nova Administração Americana? Não compreenderam ainda Trump?
4.
Presta-se
um muito mau serviço à estratégia e tácticas comerciais das nossas empresas se
um sentimento em relação ao Presidente do mais poderoso país do mundo antecipar
uma análise fria e uma decisão informada – e precipitar reacções descabidas! Portugal
exportou mais de 100 M€ de vinho para os Estados Unidos da América no último
ano. É um número importante à nossa escala. E estão de parabéns as empresas que
o têm feito. E está muitíssimo de parabéns a ViniPortugal pelas iniciativas
perseverantes que tem desenvolvido, e em que tem sido exemplo e tem sido
seguida, para que o potencialmente mais significativo destino de exportação dos
nossos vinhos seja desbravado, e sejam estabelecidas redes de promoção e de
comercialização perduráveis. A promoção dos vinhos nacionais no estrangeiro, e
dentro de portas, deveria merecer muitíssimo mais atenção do que aquela que tem
tido e é uma tristeza que não tenham sido esgotadas as verbas previstas no
programa para o efeito. Sim, mudaram normas ou regulamentos, sim, em Espanha
também isto ou aquilo, mas, desculpem lá!, em Portugal deveria ter havido
capacidade de antecipação e manobra para que se fizesse doutra maneira. Quer
por parte das empresas quer por parte das entidades. Ainda por cima o nosso
orçamento é tão pequeno! Deveria ter havido imaginação e diligência da parte
dos mentores e decisores. Poderei estar a ser um pouco injusto porque também
não disponho de todos os dados sobre o assunto, mas quero com isto dizer que
tem de haver proactividade, criatividade e inovação para que se possam ampliar
e tornar muitíssimo mais eficazes as acções de promoção dos nossos vinhos!
5.
A
existência de delegados comerciais residentes e itinerantes além-Atlântico,
para os nossos vinhos, tanto na América do Norte como na América do Sul, com
uma estratégia definida de promoção, uma carta de missão clara e de objectivos
e metas mensuráveis e geríveis, estatuto e acção que fossem estabelecidos e
protocolados pela ViniPortugal, pela ACIBEV, pela AEVP e por empresas que
quisessem aderir independentemente, financiados pelos orçamentos dos IVV e
IVDP, poderia e deveria ser uma resposta séria, para além duma manifestação de
intenções, na tentativa de contrariar os efeitos prejudiciais que as tarifas, ou
seja o que for, possam causar. Um menu de acções possíveis poderiam ser
desenhadas a partir disto, com benefícios certos para as marcas e os vinhos
nacionais, perduráveis, a dar sustentabilidade às transacções, continuidade no
tempo a coisas que só se conseguem manter se tiverem essa continuidade no
tempo. A boa política comercial só o será se for acompanhada dum claro
movimento de impregnação da cultura do vinho de Portugal na cultura americana.
Há tanto a fazer nessa perspectiva! Há tanto que se pode beneficiar duma
política comercial bem conduzida!
6.
Na
circunstância actual de que só quem tenha unhas é que poderá tocar guitarra, ou
seja, só quem tenha massa cinzenta e capacidade de conceptualização, é
imprescindível estudar bem e conhecer bem os adversários, porque duma guerra
comercial se trata. E conhecer muito melhor os aliados para que não se tornem
nossos competidores sem darmos por isso. Há quem o faça, quem o esteja já a
fazer. Por isso, no meio do coro, algo uníssono em volume mas cacofónico e
desafinado por falta de maestro, ouvem-se algumas vozes – felizmente! – a encarar
a realidade. A de que é necessário pensar o que e como o fazer perante tarifas
impostas e conseguir sobreviver comercialmente, assim. A de que há que perceber
como tirar partido de tarifas percentualmente iguais inter pares, a de ser
engenhoso e ter a arte de o conseguirmos. Se os 200% se aplicarem igualmente ao
champagne, ao cava e aos nossos espumantes, nós ficamos em vantagem
competitiva? E os outros nossos vinhos, não podem tirar partido disso? Os
americanos não vão deixar de beber vinho se estivermos presentes e atentos,
poderão fazê-lo momentaneamente mas rapidamente recuperarão o seu poder de
compra!... E dependerá de nós preferirem o nosso vinho e não outro. Não nos
enganemos com argumentos fáceis de que o melhor será mudarmos de mercados e
deixarmos livre para outrem o nosso espaço na América! Saibamos ver para lá das
tarifas, saibamos penetrar no gigantesco mundo e futuro americanos!
Ao longo da História de Portugal houve sempre mitos a tolher-nos
e a ensombrar o nosso horizonte mas para os quais houve sempre gente de
categoria para os ultrapassar. Foi assim com o Bojador, com o das Tormentas,
com o do Mostrengo que estava no Fim do Mar! Que não nos deixemos amedrontar
por mitos, hoje. Que assumamos o nosso papel e esforço. E saibamos estudar e
entender os novos tempos. Outrora soubemos estender a mão e fazer tratados com
povos que desconhecíamos. Também hoje temos de o saber fazer. Compreender
aqueles com quem nos queremos continuar a dar porque podem ser, serão, o nosso
melhor cliente. Mesmo com tarifas.
Não nos intimidemos com estas tarifas nem com a perspectiva
de que as vindimas serão em excesso, de que morreremos afogados em vinho! Não
nos iludamos com a responsabilização de outros pelos nossos fracassos. Saibamos
decompor os problemas nos seus diversos factores e resolver cada uma das suas
equações. Com brio e com optimismo no futuro. Sem mitos, sem medos, com
inteligência. Se outros são capazes, nós também somos.
Donald Trump está a querer fazer a América grande outra vez e
está no seu direito. Teremos tudo a ganhar se pudermos continuar a vender o
nosso vinho aos americanos: fazendo-o bom, vendendo-o bem, garantindo que
continua a chegar aos seus destinos, a fazer parte da vida americana – e bebendo-o
também! Saúde, aos nossos clientes!
Foto: composição livre com páginas em papel da Collier’s de 9 de Abril de 1949. Sobre a Collier’s: https://en.wikipedia.org/wiki/Collier%27s
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