©Manuel Cardoso
Tentávamos meter ordem, para fazer caber uma estante num vão de janela, e uma pilha de publicações deslizou como se fosse um glaciar que descongela, deixando ver de relance coloridas capas e títulos e trazendo, para este avançar para o segundo quartel do século XX em que estamos, inúmeras imagens e temas que nos fizeram viajar no tempo.
Acaso de arrumações, numa rima de antigas revistas Figaro
Magazine e Madame Figaro, com outras de séries menores, que se acumulam no caos
do meu escritório, apareceram mais de meia dúzia de números, que julgava
perdidos, da “Viver no Campo”, publicação portuguesa dos anos 90 com existência
fugaz, infelizmente fugaz.
Numa conversa de livraria em Lisboa, nesses anos, contaram-me
que se tratava duma ideia da Isabel
Stilwell levada à prática por um grupo de entusiastas da vida no campo, um
certo sabor neo-rural. Não sei. Talvez isso fosse um resumo demasiado redutor
mas significativo. Vivendo nós, a Mariana e eu e os nossos filhotes, no
Portugal profundo, a revista foi, então, uma espécie de promoção e atestado de
vida dos que, apesar da distância ao litoral e à Cidade, pelo menos tínhamos a
audácia de viver nesse Portugal profundo. Fomos, por isso, leitores atentos. Ao
rever e reler agora essas páginas, ilustradas com belíssimas fotografias,
paginadas com arte e escritas com uma dose qb da paixão que costuma imbuir o
ruralismo, fica-se com uma pena enorme de que não tenham continuado a ser publicadas.
De vez em quando há suplementos ou números dedicados à vida
no campo compostos por jornais e revistas generalistas, bem sei, e há algumas
publicações sectoriais que trazem uma ou outra reportagem… há-as, até, temáticas
sobre agricultura e agroturismo, vinhos e produtos, mas numa perspectiva diferente
daquela que começava a respirar-se na Viver no Campo. Às que se publicam falta-lhes
autenticidade, um olhar de quem observa, vive e sente, e não apenas de quem vê
e relata.
Se a Viver no Campo estivesse toda escrita em inglês,
passaria por revista inglesa, se em castelhano, por espanhola. E existiria
ainda. Mas em Portugal há esta pecha de estarmos sempre a mudar pela ilusão de
tudo ter de estar sempre a recomeçar para se justificar existir! Quantos
esforços, tantas vezes frustrados, para fazer perdurar uma ideia ou atingir um
desígnio, entre nós!
Que bom seria se voltasse a existir uma Viver no Campo!
Bem sabemos que um certo mundo rural já desapareceu. Mas há
outro, com o seu sabor, com a sua vida que vale a pena, com o entusiasmo e a
perspectiva actual de se poder viver no Portugal profundo com muito mais
facilidade do que nos anos 90. Também a exigir denodo para enfrentar
dificuldades, que as há novas, a começar pela solidão e rarefação do tecido
social da província, despovoada que está. Viver no campo e viver do campo são
coisas diferentes, como bem explicava Tomaz Dentinho num dos artigos.[1]
Reaparecidas ontem pelas arrumações no meu escritório do sótão, iremos fazer cá em casa algumas das receitas em memória desses anos 97, 98… e estamos a reler alguns desses artigos, tão actuais, tão intemporais nas suas observações! Num dos Editoriais, Carmo van Uden escreve “A Golegã, tal como muita coisa nesta vida, é muito difícil de explicar mas muito fácil de sentir”.[2] Em vez de Golegã, poderemos ler o monte alentejano, a quinta, o casal, ou Vale Pradinhos, o Romeu, Latães… os lugares longínquos e tão perto de nós. E, noutro Editorial: “Há sempre alguém ou alguma coisa que nos abre os olhos para aquilo que muitas vezes durante uma vida inteira nos esteve à mão sem termos sequer querido estender o braço para lhe tocar”[3]. Será que alguém com engenho e arte poderá voltar a pegar nesta ideia? Seremos assinantes!
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