segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

ADRIANO MOREIRA - Um livro biográfico

"Adriano - Vida e obra de um grande português"




A sala estava cheia, convidados, população, grupo de escuteiros e coral da aldeia, com instrumentos entre os quais um oboé! Frio, um frio fim de tarde sem chuva. Dentro da sala estava abafado, da gente e de uns aquecedores de gás. Mas cumpriu-se a função, que acabou com vinho-do-porto para todos, enquanto o Professor e o autor do livro escreviam dedicatórias e autógrafos.

Palavras proferidas pelo autor deste blogue na apresentação do livro biográfico escrito por Manuel Vieira Pinto sobre o Professor Doutor Adriano Moreira em Grijó, Macedo de Cavaleiros, 11 de Dezembro de 2010:


Os livros biográficos têm, muitas vezes, um de dois defeitos ou os dois simultaneamente: um, o de transporem, para o passado dos visados, as nossas preocupações, polémicas e preconceitos e, outro, o de permitir que a imaginação de quem escreve faça afirmar, pela voz dos biografados ou na descrição dos factos vividos, mais do que os dados documentais permitiriam escrever (1). Não é o caso deste livro, Adriano - Vida e Obra de Um Grande Português, da autoria de Manuel Vieira Pinto(2). Não é um livro que nos transponha para o passado: pelo contrário, faz o passado vir ter connosco, com tudo o que de saboroso isso possa ter e tem e com tudo o que de importante isso possa permitir e permite. E se põe a imaginação a cumprir o seu papel, é porque a coloca no plano e na perspectiva do leitor, que a faz voar para os sucessivos quadros em que se desenrola a acção, a de uma vida real e tangível, preenchidíssima e riquíssima vida, e a coloca ao serviço de uma reconstituição fiel das linhas dessa mesma vida, passo a passo, ideia a ideia. Minhas senhoras e meus senhores: estamos perante um grande livro!

[Excelentíssimo Senhor Professor Doutor Adriano Moreira

Excelentíssimo Senhor Doutor Manuel Vieira Pinto

Excelentíssimo Senhor Dr. Duarte Moreno, Vice-Presidente da Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros

Excelentíssimo Senhor Presidente da Junta de Freguesia de Grijó, meu amigo Simão Ferreirinha

Excelentíssimo Senhor Daniel Gouveia, Editor

Minhas Senhoras e meus Senhores]

Devo dizer que não é menor a dificuldade de ter de me exprimir diante do autor e do biografado. Corro o risco de, ao querer agradar a ambos, desagradar aos dois: como não sei até que ponto o Professor Doutor Adriano se revê neste volume, se o elogio, posso, porventura, desagradar-lhe, se o critico, desagradarei a ambos. Ainda por cima eu não sou aqui nada nem ninguém, ao pé de quem o escreveu, e muito menos ao pé daquele que é o seu tema. Mas creio bem que andarei certo se adoptar como metodologia de crítica, neste caso não apenas literária, a mesma que o livro contém como tendo sido a que norteou as decisões de vida do Homem nele retratado. Assim, procurarei dizer apenas aquilo que em consciência estiver certo, sem qualquer preocupação de agradar ou desagradar seja a quem for e com a finalidade única de que a virtude fique no seu lugar. Em tudo o mais, cumprirei com desvelo o imperativo que me ditava o meu Pai quando eu, com nove ou dez anos, tendo que preencher algum lugar na mesa do King, inchadíssimo por ocupar a cadeira de alguém muito mais velho do que eu, me punha a opinar sobre as jogadas deste ou daquele. Aí, o meu Pai me dizia com indesfarçável tom de voz: “o cavalheiro reduza-se à sua insignificância!” É o que farei, cingindo-me, pois, ao que aqui nos traz.

Dizia eu que estamos perante um grande livro: são quase quatrocentas páginas de dados, de descrições e de inserções em contextos históricos, escritas com uma preocupação pela fundamentação das afirmações nele contidas, académica e rigorosa. Só notas de rodapé são mais de oitocentas! Mas não se pense que são estes números que tornam o livro grande, nada disso. O que o torna grande é, antes de mais, o seu tema e é a forma como se encontra estudado e redigido para apresentação ao leitor. É um livro grande porque em todas as suas linhas se nota um sem número de escrúpulos: escrúpulos em dizer a verdade; escrúpulos em não dizer nem de mais nem de menos; escrúpulos em não ferir susceptibilidades e escrúpulos em não atraiçoar, por causa dos mesmos escrúpulos, a finalidade de uma biografia. Grande, porque não está escrito para bajular nem para agradar a gregos ou a troianos mas para testemunhar, para ser um instrumento de transmissão de conhecimento e de preservação da memória.

A técnica utilizada, para nos fazer agarrar a toda a vida que pulsa no texto, tem um trabalho enorme por trás: o autor, para lá do seu texto original escrito num estilo limpo de bom português, seguindo a gramática que usa vírgulas e põe acentos, utiliza colagens de textos do biografado como recurso de escrita. Muito bem, me dirão. Mas eu digo-lhes que dizer “muito bem” é pouco, porque para isso, para fazer a selecção dos parágrafos a utilizar, para ter escolhido os representativos para o ponto de vista que, em cada capítulo e sub-capítulo, nos quis apresentar, tal significa que foi feito um esforço imenso de leitura, anotação e selecção que deve ter ocupado milhares de horas! Esta biografia não se fica, pois, por um ensaio árido sobre o objecto de estudo. Esta biografia é um exercício antológico do pensamento do Professor Adriano Moreira. É uma mistura de biografia propriamente dita, de memórias e de preocupação pedagógica em utilizar o testemunho da vida retratada como fonte de sabedoria para as gerações presentes e futuras.

A história poderia ter sido de outra maneira? É uma pergunta que percorre os bastidores em que estamos a assistir ao desenrolar de uma vida, desde Grijó a Lisboa, de Campolide à Rua da Junqueira, do Aljube ao Ministério do Ultramar, de Angola ao Brasil e a todo o Mundo. Há Portugal em todo o Mundo e o sangue que dá vida a este livro pode bem chamar-se Portugal! Porque foi esse sangue que animou e é esse sangue que anima, o sangue da Família Portuguesa, a vida do Professor Doutor Adriano Moreira.

Vida e obra de um grande português: não está escrito à distância indiferente de quem arruma a cronologia e expõe um curriculum. Está escrito página a página com o entusiasmo de quem aderiu e adere, de quem quer ver o leitor arrebatado por essa vida e por essa mesma obra. Arrebatado em nome de quê? Em nome do tenaz esforço que é preciso para a preservação da nossa Identidade, dos valores da Pátria e da Família, da sucessão dos factos, decisões e contingências que implicam toda uma vida. A roda e o eixo, em que o eixo são esses valores, imutáveis, sejam quais forem as voltas que a vida faça dar à roda!(3)

São sempre possíveis muitas leituras para um mesmo livro e este não foge à regra. Mas há uma leitura, dentre as demais, que é indispensável que aqui se faça e se diga. A sua leitura política. Quem o fizer, limpo de espírito e capaz de ser portador de um ideal, deparará com uma lição de política, sim. A de que a política, o serviço a favor da polis, deve sempre ser praticada como promoção do Bem-Comum e não como a conquista do poder para interesses particulares.

Este livro é uma contribuição para a História, uma contribuição benévola mas valiosa. A história tem sempre protagonistas e espectadores, uns e outros nos seus papéis de portadores dos testemunhos. Ao lermos factos e termos a percepção dos seus actores (aqui alinhados com um fio condutor que os faz ver com outra clareza e com uma perspectiva, nalguns casos, surpreendente), ficamos mais gratos por termos chegado até aqui e, sem dúvida, por termos tido o privilégio de, hoje, nesta sala, termos podido estar no mesmo local e hora em que estão também dois protagonistas tão especiais dessa mesma História. No fundo, ao percorrermos os treze capítulos em que nos é dado poder participar do que foi e é o pensamento e a acção de um grande português, ficamos com a sensação de que todos acabamos por estar empenhados nesta corrida que nos coloca num determinado espaço e num determinado tempo à procura de um sentido para a nossa própria existência e também de “saúde e dinheiro, já que Deus não nos pode dar tudo!”.

Finalmente, mas antes de me reduzir à minha insignificância, meu caro Doutor Manuel Vieira Pinto, devo dizer que, quando cheguei ao fim do livro, me veio a ideia de que o meu amigo corre o risco sério de que seja classificado academicamente pelo Professor Doutor Adriano Moreira. Não sei que nota lhe dará. Mas tenho a certeza que, no mínimo, tem garantida uma ida à oral, se é que não mesmo uma dispensa. É que a prova escrita, esta prova escrita está, sem dúvida, muito bem!

Manuel Cardoso

Grijó, 11 de Dezembro de 2010

1- Ver sobre este tema de biografias o prefácio de Maria Filomena Mónica em Vidas, Alêtheia Editores, Lisboa, Abril de 2010.



2- DG Edições, Linda-a-Velha, ©2009 M.Vieira Pinto e DG Edições, 1ª edição Outubro 2010, ISBN 978-989-8135-55-1.


3- O Professor Adriano, nas suas palavras de agradecimento e comentário feitas a seguir a ter-me ouvido ler este texto, explicou que esta imagem da roda e do eixo o tem acompanhado toda a vida desde que na juventude leu um livro, um romance de Morgan, intitulado Sparkenbroke, que o marcou.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Um livro que me ofereceram

Moedas Romanas
 Achados no Alto Tâmega e Barroso
Fernando Cantista Pizarro Bravo
Câmara Municipal de Chaves
2006

Há tempos ofereceram-me um livro. Um destes livros decorativos, capa com design cuidado e papel de luxo de gramagem pesada, fotografia profusa a acompanhar um texto sóbrio e espaçado. Um destes livros – pensei eu ao pegar-lhe pela primeira vez, ao desembrulhá-lo porque me chegou pelo correio – que são bons para ficar em cima de uma mesa a encher espaço e a encher o olho, mas cujo recheio cumpre a função menor de apenas justificar o empate de dinheiro com que as câmaras têm subsidiado tantas edições inúteis. Um livro pesado, de título especial: “MOEDAS ROMANAS”, a que se segue um subtítulo “Achados no Alto Tâmega e Barroso”. Como me era enviado por um amigo de Chaves e que era o seu autor, pessoa consideradíssima, pousei-o gravemente em cima da papeleira da sala a aguardar um dia, de vagar e vontade, para lhe pegar e agradecer.


Só que o tempo encarrega-se de nos envolver nos seus caprichos e fados e os dias foram passando sem que eu lhe desse uma atenção devida. Então mal o folheei, apenas ficando com a impressão de ser bastante mais do que os meus preconceitos formados sobre ele – mas mais nada do que isso. Entretanto meteram-se assuntos que relegaram para o esquecimento os dias da minha memória recente e acumularam-se sobre ele, no tampo aberto da papeleira, estratos e estratos de jornais, revistas, outros papéis e livros, ocultando-o e subtraindo-o à minha atenção e interesse imediato. Passei pela vergonha de receber um telefonema do autor a saber se o dito me tinha chegado ainda antes de eu o ter agradecido, como devia! Que vergonha e que falta de chá a minha! Mas nem assim o pus em cima da pilha. Ficou a aguardar ainda.

Até que numa destas manhãs de fim-de-semana, colhendo uma braçada de papéis e segurando com firmeza uns quantos volumes desirmanados para arrumar em prateleiras, me volta a aparecer o dito cujo, muito azul e branco com duas moedas de prata e ouro na capa, muito inconveniente porque o seu tamanho não dá para uma prateleira normal, e então me surge com ele a determinação de cumprir o dever de o ler ou, pelo menos, de o folhear de modo atento, para dele poder dar notícia e encerrar capítulo tão incómodo, escrevendo um agradecimento para Chaves e remetendo-o para o armário dos livros menos necessários no dia-a-dia – sentenciei interiormente. E como adivinhava umas horas penosas para cumprir tal desígnio, mentalmente preparei-me para o sacrifício e abonar assim em meu favor a perda de tempo que iria ser. Num repente passei as folhas como um baralho de cartas, apenas para introdução na tarefa, e mais uma vez se materializou a ideia de ter pela frente um monótono catálogo de moedas, com anotações e minudências numismáticas de coleccionador obsessivo. Mas tinha de ser. Era o dia. Suspirei.

Levei-o para a mesa do computador, pousei-o sob o candeeiro articulado e comecei a sua análise. Levantei pela primeira vez as abas da sobrecapa e tive uma surpresa: por dentro a capa dura é forrada a tecido azul liso, suave ao toque, com o título e o subtítulo gravados em dourado sóbrio e sob eles as tais moedas, mas aqui sem cor, apenas em relevo afundando-se no tecido e no cartão, como dois apagados enigmas. Muito bem concebida, esta capa! Depois o cólofon, onde uma simpática e imerecida dedicatória fez germinar em mim um remorso ao relê-la, elegantemente manuscrita. Segue-se uma página de apresentação do autor, de agradecimentos e de dedicatória pública à sua Família, uma Família em sentido intemporal e eterno. Nova folha, com uma breve mas eloquente sucessão de quatro pequenos parágrafos em que o então Presidente da Câmara de Chaves justifica o livro e o seu tema e agradece ao autor o seu trabalho. E chega-se ao Prefácio, em que a primeira frase parece escrita premonitoriamente para mim, uma frase de aviso ao leitor que “possui em suas mãos uma obra que trata de um assunto que nem sempre tem a consideração que lhe é devida”. Que sibila terá soprado tal ideia ao autor do prefácio?! Fiquei sorridente com a coincidência e fui ler o nome dele, que é, nada mais nada menos, que Manuel João de Morais Sarmento Pizarro Bravo, filho do autor, historiador. Em duas páginas agarra-nos para a importância do estudo das moedas, situa-nos no contexto da história do dinheiro e na importância civilizacional e cultural do seu uso, posiciona-nos geograficamente para compreendermos a importância do conteúdo deste livro. Três importâncias complementares a que junta uma outra: a da visão e experiência do autor como conhecedor da Terra e da Matéria desta obra. A partir daqui tomei consciência da minha grande ignorância e fiquei apto a compreender a Importância do livro que tinha por diante. E passei a lê-lo com a reverência de quem penetra numa floresta virgem e fica embasbacado a cada árvore que vê.

Cuja primeira tem logo a ver com uma das tais moedas que estão na capa, a prateada, um denário, em que uma cabeça de mulher se apresenta “com expressão de tristeza e os cabelos da frente não penteados” e que é uma moeda que faz alusão ao triunfo de Lúcio Postúmio Albino sobre os lusitanos e vaceus em 576, era de Roma (178 a.C.). Isto, logo no capítulo de Introdução. A que se segue o A Moeda Romana. Aí encontramos a outra moeda da capa, um denário áureo, de Trajano. Como encontramos muitas outras, todas com particularidades e explicações cabais sobre a sua cunhagem, valor e circulação, a servir de chave à leitura e interpretação dos achados arqueológicos mais tarde referidos no livro, no capítulo IV. Há um capítulo sobre falsificações, um aspecto curioso e que revela a cuidada atenção do autor posta nesta obra. A descrição dos achados acaba por conduzir-nos numa interessante leitura da paisagem geográfica da região do Alto Tâmega e do Barroso e seu decalque histórico no período em estudo. A romanização não se fez sem instrumentos e um dos instrumentos foram os pagamentos de serviços em metálico. De que estes achados assim tratados em livro são um bom decalque, como digo, suficiente por si para se poder ter uma imagem e traçar em grandes linhas a persistente e profunda acção da administração romana na península e, em particular, neste sector da península. A datação provável da ocultação de alguns tesouros achados permite distinguir as duas épocas mais problemáticas de convulsão social e até civilizacional, a coincidir com a da fase de ocupação republicana mais violenta, nos finais do primeiro século antes de Cristo, e com a fase das hordas bárbaras, particularmente as dos suevos a partir de 411 d.C. Muitos dos numismas são acompanhados das circunstâncias do seu achamento, da história do numisma em si, com a cunhagem e todas as variáveis a ela associadas (o ordenante da cunhagem, o metal empregue, a datação, etc.), as hipóteses sobre a sua ocultação, se é caso disso, e a forma como se encontra hoje ao dispor do público e condições de exposição. A região objecto de estudo é Boticas, Chaves, Montalegre, Ribeira de Pena, Valpaços, Vila Pouca de Aguiar e ainda o Alto Tâmega Galego. Além das notícias inéditas, revisitamos com o autor algumas colecções célebres de investigadores consagrados. Tudo acompanhado de uma bibliografia abundante e adequada a cada caso em particular. Um trabalho notável, só possível com a dedicação de uma vida a este tema!

A leitura e interpretação da centena e meia de páginas em que se expõe esta matéria não é feita isenta de dificuldades, sobretudo porque muitos pormenores históricos relativos à República e ao Império Romano escapam a quem se debruça em coisas específicas como estas moedas. E sobretudo a leitores menos preparados como nós. Mas o autor pensou em ajudar-nos nessas dificuldades e acrescentou ao livro preciosos anexos: um mapa da República Romana e um mapa do Império à data da sua maior expansão no tempo de Trajano (117 d.C.); um modelo para se fazer a classificação duma moeda imperial romana e para a leitura e interpretação das suas inscrições; uma tabela com a sistematização das diferenças principais entre as cunhagens consulares e imperiais; um mapa com as oficinas monetárias do Império Romano; uma listagem das abreviaturas das casas da moeda imperiais; um conjunto de tabelas de equivalência de valores entre as moedas romanas; uma cronologia dos imperadores e familiares cujos nomes figuram nas moedas do Império Romano; um elenco das divindades, alegorias e personagens representadas nas moedas romanas e ainda uma fotografia da Praça da Misericórdia de Chaves ou Praça do Município ou Praça de Camões onde, sob as raízes de um olmo, apareceram centenas de moedas ao longo do período de trabalhos que demorou a remoção da árvore e arranjo do local. A bibliografia do volume conta com mais de sessenta entradas e as notas de rodapé são quase duzentas!

Confesso que a leitura do livro foi empolgante, apesar do sentimento árido que ao início me fez temer não chegar ao fim e que exprimi ao começar a escrever este artigo. Foi empolgante, não só por tudo o que expus até agora e que me fez rever positivamente a minha impressão do livro, mas por outros motivos ainda. Um deles é o de que se nota, na escrita do autor, um grande amor à sua terra e um amor entranhado, não apenas aquele bairrismo de bandeira e pregão, mas algo que lhe corre naturalmente nas veias: o autor sente-se a própria terra. E há pormenores reveladores, uma frase aqui, uma nota acolá, uma ironia insuspeita com o uso deste ou daquele adjectivo, desta ou daquela pontuação. Teve a capacidade de fazer-nos sentir que aqueles que percorreram este horizonte nos tempos recuados de há dois milénios atrás tiveram, através das moedas, uma forma de comunhão com uma realidade mais vasta e abstracta que foi a do vasto Império. Tangível nesses documentos de ouro, prata, bronze e cobre, o cumprimento de mais do que lhes esteve na origem: é que se foram instrumento de troca e de civilização nesse tempo, sobreviveram até hoje em dia, forjando-nos um sentimento de pertença ao mundo ocidental, de ontem e de hoje, que muito nos orgulha. O sentirmo-nos também romanos é algo de estruturante em nós, região e país. Este sentimento de identidade e a sua assunção como um valor é, talvez, uma dimensão que o livro tem e que ficará para os elementos da sua Família que hão-de vir. Que o experimentarão ao, um dia, lerem o livro. Um livro que é, lido assim porque o autor assim o soube escrever, muito mais do que um trabalho de história ou de numismática. Também por isso fica agora, afinal!, arrumado à mão, na estante dos meus livros de consulta.
Bem haja por um livro tão bom!

Moedas Romanas – Achados no Alto Tâmega e Barroso, de Fernando Cantista Pizarro Bravo, Dep. Legal 241819/06, Edição da Câmara Municipal de Chaves, 2006

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Portugal Republicano e Portugal Monárquico: o transe de um povo aflito

Texto resumido de uma comunicação feita no Arquivo Distrital de Bragança em Novembro, no âmbito das comemorações da Implantação da República, nas palestras “ A República no Distrito de Bragança”. O tema da comunicação foi o da razão de ser do romance Um Tiro na Bruma.



Fragmento de granada incendiária
disparada contra Mirandela
no combate de 9 de Fevereiro de 1919,
pelas tropas realistas.

Sempre desconfiei da história quando ela é contada pelos vencedores: esquecem-se os argumentos dos vencidos e demoniza-se o inimigo, continuando-se a fazer cair sobre ele todas as famas de todos os males, mesmo depois de derrotado. Há disto imensos exemplos, de que nem vale a pena estarmos agora a citar casos ilustrativos porque de todos são conhecidos, quer se refiram a conflitos recentes quer a conflitos antigos.



Nesse tipo de história, são sempre heróicos os gestos dos vencedores e desprezíveis os actos dos vencidos quando, na realidade, pode ter havido heroicidade de ambos os lados tal como pode ter havido – houve, certamente – actos reprováveis de ambos, também.


Normalmente “quem se trama” sempre é o povo, entendido “o povo” como toda a massa que é arrastada pelos acontecimentos e não como classe social. Apesar de sempre muito elogiado e usado como motivo, como argumento ou como cortina de fumo, o povo não só “paga as favas”, para usar uma expressão eloquente por si, como se vê obrigado a engolir em seco os silêncios politicamente correctos e a acenar de assentimento – quando não a ter de cantar a vitória – às palavras e actos dos novos vencedores, também numa lógica do politicamente correcto, entenda-se, do jogo pela sobrevivência do mesmo povo...



Acontece isto também com as famílias e com a sua crónica, depois de terem passado por períodos de prevalência de uma perspectiva a partir de um dos seus ramos ou após algum sobressalto fracturante que as tenha desestruturado ou colocado em dificuldades. Nas famílias também se enaltecem ou se depreciam caracteres e percursos, ao sabor do critério dos que contam essas crónicas. Também há os santos e os pecadores. E os demónios. Na vida das famílias, tal como na história, aparece, à mão ou na boca de quem conta, um bode expiatório para fazer o papel. Quero dizer, não aparece, é lá colocado, tal como fazem os vencedores na política e nas tragédias de um povo. Se, para estes, esse papel é fácil para dele serem investidos os vencidos, para os dramas familiares mais ligeiros está sempre uma sogra à vista, para os mais pesados há sempre um ex-cônjuge que terá traído os votos do compromisso matrimonial, ou da sua união sentimental, e que terá dissipado o seu capital de bens e de bom nome. As famílias e a história estão cheias de exemplos destes, de anjos exemplares e de filhos pródigos de quem se conta a parte rebelde mas de quem se esquece, propositadamente, já se vê, de contar antecedentes, condicionantes ou de revelar o verdadeiro final. No exemplo do Evangelho, porque se trata de uma parábola contada por um autor que dispensa adjectivos, o drama é-nos contado completo e substantivo mas na nossa vida já não é o caso…



…tal como não o foi para mim quando comecei a perceber como era a história de vida do meu Avô Amadeu. Que morreu mais de uma década antes de eu nascer. Médico, arrivista (era de Alijó e veio viver e a casar em Macedo), republicano, muito culto, muito senhor das suas opiniões, muito mulherengo, mesmo muito mulherengo e gastador do pecúlio familiar. O contraponto da minha Avó, senhora de Macedo, monárquica, também culta, também senhora das suas opiniões, fiel ao seu marido e filhos, muito fiel ao seu marido e filhos apesar dos que a cortejaram mesmo depois de casada e que exploravam o tentar adoçar, junto da Micas, tal era o seu petit-nom, o lado amargo de se saber traída. Aos quais nunca cedeu. Tinha sido educada na convicção de que os prazeres proibidos não são maneira nem de curar o orgulho ferido nem, muito menos, de conservar a autoridade inatacável da posição em que o marido a colocara. Várias vezes o Avô Amadeu precipitou as finanças familiares em situações difíceis, várias vezes a Micas teve de acorrer, com jóias ou com legítimas de herança, para saldar contas e calar usurários. O Avô acabou por morrer, em meados dos anos quarenta, e a avó sobreviveu-lhe uma década e meia. Durante esses anos, passados no pós-guerra e na década de cinquenta, a Avó continuou a ser um esteio da família da maneira como são as Avós: espalhando sorrisos e contando histórias aos netos, estando sempre atenta para ser seus cúmplice nos pequenos caprichos que deixam saudades. E continuou a fazer o que sempre tinha feito ao longo da vida: a ajudar os pobres, a valer com uma palavra ou com um gesto a todos os que lhe chegavam ou de quem lhe chegavam vozes aflitas. E a ajudar, depois de o meu Avô morrer, para cúmulo, algumas daquelas que se encontravam desamparadas e o tinham tido nos braços, em vida…

Claro que, com um tão grande período de sobrevivência da minha Avó sobre o meu Avô, a história dele chegou até mim com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Neste caso, sobreviventes. Ainda por cima, pessoas que tinham tido convívio com a minha Avó e às quais, inconscientemente ou conscientemente, tinha “comprado” uma versão dos acontecimentos com o seu desvelo.

Em casa não se falava, praticamente, do Avô, a não ser para se exclamar “não te ponhas como o Avô” quando alguém discutia de uma determinada maneira ou adoptava um determinado comportamento. Quando eu perguntava a alguém pelo Avô, em Macedo, a conversa em menos de um minuto estava invariavelmente centrada na minha Avó: “uma Senhora, muito bonita, tão boa para todos, tão infeliz com o seu Avozinho…”. Sobre o Avô, nada ou quase. E quando eu, caso a caso, comecei a agarrar uma palavra a este, outra àquele, sobre o Avô, comecei então a descobrir que a realidade tinha sido outra. Não radicalmente diferente mas outra, simplesmente. O Avô tinha tido qualidades, afinal. Também defeitos inegáveis, sem dúvida. Mas não era aquele ser de quem nem se poderia falar!

E comecei a perceber que muitos dos que logo me falavam da minha Avó, ao serem interpelados sobre o Avô, tinham sido, directa ou indirectamente, beneficiários da caridade da minha Avó…

Ora, quando comecei a querer contar esta história e a situá-la na sua época, no início do século XX, na transição da Monarquia para a República, comecei a investigar passo a passo todo esse período mas de uma forma autêntica e directa. Ou seja, em vez de me por a ler obras daqueles que sobre esse período escreveram com este ou aquele partis pris ideológico, pus-me a ler os jornais, as revistas, os romances e folhetins que nesse tempo se liam. Pus-me, dessa maneira, a viver na realidade da época. Foi fascinante. Segui o decurso de meses e anos lendo o Diário de Notícias e muitos outros jornais que se publicavam, folheando e vendo as fotografias da Ilustração Portuguesa e doutras revistas e almanaques, seguindo o dia-a-dia dos acontecimentos. Mas como, ao mesmo tempo, eu lia também os livros de autor escritos sobre essa época, comecei a notar uma diferença enorme entre o que era a percepção do que acontecia no dia-a-dia, que eu fazia para mim ao ler os jornais e outros documentos, e aquilo que sobre isso era contado pelos tais autores de livros sobre essa época. Comecei-me a dar conta que havia um distorcer da verdade, entendendo como verdade o desenrolar dos acontecimentos e a sua cronologia, critérios necessários para que a história possa ser objectiva. E então percebi o que estava a acontecer: a história que nós conhecemos sobre a Implantação da República, a que nos é contada desde a escola primária, não é mais do que a história contada pelos vencedores, com todos os defeitos de uma história contada pelos vencedores. Ainda por cima com uma agravante: é-nos contada para camuflar não só uma realidade diferente mas, muitas vezes, uma realidade inexistente! É incrível! O que se passou na realidade é de tal modo diferente do que tantos hoje afirmam que, para quem souber e conhecer verdadeiramente esse período, toda a nossa história subsequente sobre o século XX ganha uma nova leitura.

Fiz uma descoberta, em certo sentido, infeliz e que me tem trazido triste nesse assunto: a de que havia e há uma conspiração, de muita gente que escreve e que dá opiniões, que ainda hoje persiste, uma conspiração que não é apenas contra a monarquia ou a favor da república mas que é muito pior: é contra a verdade.

Descobri, assim, que havia um paralelismo entre o que se dizia ou não dizia sobre o Avô Amadeu, em nossa casa, e o que se diz ou não diz por todo o lado sobre o que foi o fim da nossa Monarquia e a vigência da nossa Primeira República. E decidi-me a escrever sobre isso. Escrever um ensaio, argumentar, envolver-me em discussões que não levam a lado nenhum na maioria das vezes? Não. Preferi tentar escrever um romance sobre esse período. Um romance baseado na realidade. Foi assim que nasceu Um Tiro na Bruma.

Que isto não sirva apenas para se dizer que “afinal nem o fim da monarquia foi assim tão mau nem a república assim tão boa”. Não. É muito mais do que isso. Porque há, no fim de contas, vencedores e vencidos. Nestes últimos está sempre o povo, entendido na acepção referida acima, e esteve, quase sempre, a verdade. O que me deixa com uma esperança: a de que, apesar de tudo e contra tudo, ela venha a prevalecer e, com ela, nós venhamos a poder, um dia, sair triunfantes das dificuldades do nosso dia-a-dia.

O verdadeiro sacrificado, na transição da Monarquia para a República, foi o povo. O povo viu-se mesmo aflito, depois do 5 de Outubro. Com fome, doente, obrigado a combater, a morrer, a vestir-se de luto, impedido de rezar por decreto. Ainda por cima com uma conjuntura de pavor: caíam as monarquias e os impérios, assistia-se a uma destruição sem precedentes, com máquinas e venenos sem precedentes, a batalhas e desastres antes inauditos, a epidemias de escala total que não poupavam ninguém. As greves, os tiroteios nas ruas, os saques e assaltos das lojas e casas, os meses de trabalho sem soldo, os atentados e assassinatos constantes faziam da intranquilidade e do medo uma vivência permanente. O povo pensou que o mundo ia acabar – e imediatamente. Foi uma época vivida em transe e com uma grande aflição. Uma época difícil, extremamente difícil.

Mas são precisamente essas épocas difíceis que nos devem merecer olhá-las e invocá-las com todo o respeito. Respeito pelos que a viveram e lhe souberam sobreviver. Respeito pela sua verdade. Em nome deste respeito nos propusemos deixar o nosso testemunho.

sábado, 18 de dezembro de 2010

MÚSICA

Habituei-me desde muito cedo a estudar com música. Gira-discos (primitivíssimo, um Dual portátil que era da minha irmã mais velha e que funcionava a pilhas) ou rádio (pré-histórico, um Phillips 38 a válvulas com esplêndido som, que o meu pai prezava muito e que quando se ligava tinha primeiro de aquecer e emitir um característico Hhummm!), a primeira coisa que eu fazia antes de abrir os livros e os cadernos na mesa do quarto era sintonizar o posto (o canal dois da Emissora Nacional ou o Rádio Clube Português) ou colocar um disco no prato (as Sylphides de Chopin em 33 rotações ou o Grand Hotel dos Procol Harum, que a minha irmã Pilar tinha trazido de Inglaterra, ou ainda os 45 rotações da Suzi Quattro que se esgotavam num ápice). Mais tarde, já na faculdade, passou a ser a RFM a onda de eleição que me tem acompanhado até hoje, em casa ou no carro, se bem que quando estou diante do écran do computador faça grandes variações com emissoras de países longínquos on-line ou com escolhas do Youtube. Enquanto estou a escrever este artigo, tenho estado a ouvir Rachmaninoff, o segundo concerto para piano e orquestra, muito romântico e arrebatador, cujos clips vou partilhando no facebook…


Música! Conjunto de sons capaz de produzir superiores sensações, capaz de nos fazer sorrir e de nos levar às lágrimas em menos de um estalar de dedos. Um estímulo à criatividade, à reflexão, à comunhão. Música! Fantástico denominador comum que junta no mesmo sítio, para assistir e participar num concerto, seja ele clássico ou pop, as pessoas mais diferentes nas suas ideias, no seu modo de estar na vida. No filme A Missão vê-se qual foi a ponte que os Jesuítas estabeleceram com os Índios para ultrapassar, num primeiro passo, o abismo civilizacional que os separava: música, Bach, como pedagogia do princípio de uma relação cultural e religiosa!

O ensino da música deveria ser obrigatório e deveria ser ampliado em todas as escolas. Ainda no número de Novembro último da Scientific American, prestigiadíssima revista científica de divulgação e debate, vem um artigo em que mais uma vez se refere que as nossas capacidades de aprendizagem se ampliam pelas profundas e perduráveis mudanças que a música é capaz de produzir no cérebro. “As escolas deveriam aumentar as suas aulas de música em vez de as cortar”, escreve-se. “A prática musical desenvolve as capacidades de prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. A música não é nem deve ser um extra, mesmo que os orçamentos sejam apertados. Aprender e tocar um instrumento, para lá do prazer imenso que proporciona, aumenta a capacidade de aprendizagem e tem um efeito benéfico sobre um cérebro em desenvolvimento”.

A música tem ainda o condão extraordinário de preencher o tempo, de ultrapassar em muito o simples entretenimento. É uma das nossas melhores companhias e não só para estudar. É uma excelente companhia para nos ajudar a passar os momentos de crise. Devia haver muito mais música na escola e na vida.

(Este meu artigo foi publicado no último Mensageiro de Bragança, se bem que com alguns pormenores modificados)