- E ainda há a
questão dos trasgos, senhor engenheiro!
- Trasgos, que
trasgos?!
- Então, dizem
que ainda há trasgos a viver aí pró rio…
- Trasgos, que é
isso, trasgos?!
- Ora, senhor engenheiro,
são trasgos!
O homem olhava
fixamente para o Rui, desarmado perante aquela dificuldade. Então o senhor
engenheiro não haveria de saber o que eram trasgos?! Afinal, com um curso de
universidade, a andar ali pela aldeia já há tantos anos e não sabia o que eram
os trasgos?! Tirou o chapéu, semicerrou os olhos, ajeitou a melena que se lhe
ensopava com o suor, sentiu uma breve aragem a soprar sobre a humidade e a
arrefecer-lhe a testa. Agradável. Voltou a pô-lo e olhou para o rio, lá muito
ao fundo, correndo miúdo entre os pedregulhos, como se não existisse.
Não se ouvia um
ruído de água, só o vento restolhando nas giestas e silvas, numa ou noutra
amendoeira de verde empoeirado que mal sobrevivia naqueles tons torrados de
Agosto. O Rui pousou a mão numa rocha quente, de que se destacaram alguns
pedaços secos de líquenes como se fossem as escamas de um peixe já morto. Apoiou-se
nos dois cotovelos e ajeitou melhor a posição para voltar a fixar o binóculo
sobre o leito, lá em baixo, onde a água aparecia como uma mancha rara, quase
invisível, a adivinhar-se mais do que a ver-se, no meio do caos de penedos,
areias e calhaus rolados, pontificada aqui e ali por renques de salgueiros e um
ou outro amieiro mais alto. Lá estava a grande escarpa, massa desconforme de
granito saliente da encosta, lisa como se fosse uma escultura, sem fendas nem
sobressaltos. Seria o ponto ideal para ancorar o muro de betão da barragem. De
um lado e de outro haveria que mandar fazer as sondagens, estudar tudo, mas era
ali, no ponto mais estreito do rio que a água não rompera em milhões de anos,
era ali que se devia fazer a represa. Um grande lago se estenderia para cá,
água como nunca se vira por estas terras, nem nos anos lendários das cheias de
1909 ou de 62. Água com fartura que traria fartura. Daria electricidade, daria
para regar hortas e campos, traria gente nova para tomar banho e andar de barco…
- Olhe, já viu
quantos empregos se depois se fizer um hotel neste sítio?!
- Mas, ó senhor
engenheiro, ao tempo que se fala nisso, vai ser ainda para nós, essa barragem?
- Vai ser,
senhor Rodrigues, vai ser. Isto agora vai ser rápido. Um ano para estudos e
projectos, mais um para os políticos se entenderem, para acertar tudo, depois o
concurso. Daqui a dois anos e meio ou três estaremos com as obras a começar.
Ainda não sabemos… mas que durem ano e meio… há-de ver: até o presidente da
república virá aqui!
- E os trasgos,
senhor engenheiro?
Dirigiram-se
para o carro, que tinha ficado uns cem metros atrás, estacionado no fim do
trilho de saibro, ao pé do cruzeiro. Nele estava a Ana a ler um livro e a ouvir
a RFM, motor ligado para manter o ar condicionado. Ao vê-los voltar, abriu a
porta e saiu, compondo o cabelo que trazia apanhado e dando um puxãozinho à
bainha do minivestido justo. Sorriu para o Rui e disse ao velho Rodrigues:
- Nós já
voltamos, Titó!
- Eu fico aqui,
menina, a conversar comigo! - e entrou para o carro, sentando-se no banco de
trás, ofegante como quem afunda no estofo um alívio de uma vida, e baixando o
vidro para não se abafar com o ar condicionado.
- É um instante,
senhor Rodrigues!
A Ana passou o
braço à volta da cintura do Alberto e com um andar cuidadoso para que a areia
não lhe entrasse nas sandálias de salto, foram até à borda do desfiladeiro,
para junto das grades do mirante de onde ele estivera há pouco a perscrutar o
rio, onde ela gostava de estar sem terceiros. Não fora ali um dos seus locus amoenus preferidos dos de todo o
seu namoro?
- Que é que são
trasgos, Ana?
- Trasgos?
- Sim, o Titó
diz que os há pelo rio...
Ela esboçou um
sorriso e piscou devagar os olhos como quem vê saudades.
- Trasgos!
Coisas dos mais velhos, dizem que havia trasgos, assim uns seres mitológicos
que nunca ninguém viu… eu nunca vi!
- Nunca me
falaste disso!
- Ora, coisas
para encantar meninos, histórias antigas. Diz-se que viviam nos açudes e nos
velhos moinhos… que passavam a vida a pregar partidas aos moleiros ou a quem se
aventurasse por ali!
- Um bicho?
- Não, não! (risos).
Iguais às pessoas mas em ponto pequeno. Uma espécie de miúdos em tamanho mas já
crescidos, vestidos quase de bobo, com berloques e guizos, barrete verde ou
vermelho, conforme…
- Conforme o
quê?
- Sei lá! Era o
que diziam! Grandes orelhas, capa de zorro sobre os ombros… ora, patranhas! Quando
era pequena bem os procurei, quando íamos ao rio! Ahah!
- Uma coisa como
andar aos gambuzinos?
- Hmm… era
diferente! Os gambuzinos é coisa para entreter quem não é de cá, pregar
partidas a quem cá vem. Não, era diferente. Os trasgos eram levados mais a
sério, dizia-se que tinham sido vistos pelos moleiros a atirar a farinha ao ar,
que andavam sempre a emperrar a vida de certas pessoas, a espantar gados das
curriças para fora, a fazer verter o vinho das pipas, a entornar as remeias de
azeite, a por lagartos nas grelhas onde as pessoas assavam sardinhas!
- Eheh! Então
ainda te fartaste de os procurar, nas idas ao rio…
- Ora, o tempo
dava para tudo!
Dantes, ir ao
rio era estafa que durava um dia. Saía-se logo de manhãzinha, a pé, as mulas
carregadas com os cestos de verga, garrafões e mantas. Levavam um cantil de
cabaça a tiracolo, chapéu de palha e pau para espantar cobras e lagartos. A
excursão parecia uma colorida caravana de nómadas, fila indiana ao longo dos
trilhos incríveis que descreviam ziguezagues pela encosta íngreme, sempre a
descer por entre os blocos de granito e as amendoeiras de onde voavam pássaros
e rolas. Uma vez lá em baixo, hora e meia depois de se ter deixado a aldeia,
estendiam-se as mantas num troço de pasto ou num areal miúdo, à sombra dalgum
freixo com folhas rendadas de cantáridas. “Não se mexe nesses bichos verdes!”.
A água pasmava num fio subtil, bordas perfumadas de mentrastos. O pai armava
uma cana de pesca, o Titó e as criadas iam varejar e apanhar amêndoas molares,
ela e os irmãos atravessavam nas alpondras e inspeccionavam as rodas já
desengonçadas e os alcatruzes enferrujados da velha azenha. “Não entrem para o
moinho que o telhado está podre e pode cair!”. Mas eles entravam, pé-ante-pé,
olhando brilhantes para aquele mundo bafiento e misterioso onde cresciam musgos
e bolores verdes e onde se estendiam teias de aranha monumentais. “Cuidado que
ainda lhes sai daí algum trasgo!”. Uma tábua a ranger assustava um melro que os
assustava a eles. Correrias e gritos. Manhã quase passada, deitavam-se nas
mantas olhando o céu límpido onde voavam grifos e águias, lá muito acima, em
grandes círculos. Depois vinha o banho no açude grande, ao pé dos garrafões que
estavam imersos e presos por um fio de nylon, água corrida pelos alfaiates, galhofa
que baste até ofegarem, cabelos a pingar e a mãe a pôr-lhes as toalhas nas
costas. Estendiam-se ao sol, só o tempo de fazer parar os arrepios. “Vá, toca a
vestir!”. No meio de mais galhofa ainda, toalhas enroladas sobre si, tiravam os
fatos de banho e aprontavam-se com calções e t-shirts. Entretanto as criadas
tinham já estendido as toalhas aos quadrados e, de dentro dos cestos de verga,
tinham tirado as panelas do arroz, os panados, as fatias de pão, os frangos
assados, os bolos de bacalhau, as batatas fritas, os salpicões de azeite,
melões e melancias, uma ementa imensa. O resultado era uma grande sesta, feita
na maior das quietudes, só cortada de tempos a tempos pelo ruído da bóia e dos
empates a fazer splash na água, do carreto a pô-los em posição, do bater do
casco das mulas no chão e do chicotear das crinas da cauda a afastar as moscas,
do volitar de uma vespa que os alertava de sentinela. As brincadeiras da tarde
eram mais sossegadas, o sol e o calor faziam faltar a vontade, alguns livros
que a mãe lhes trouxera eram bons de ler na sombra dos choupos, sentados em fragas.
Eças e da Elaine Sanceau. As criadas e o Titó enchiam a terceira saca de
amêndoas, atada e pronta a ser carregada nas mulas. A pouco e pouco a sombra do
planalto vinha estender-se sobre a encosta de cá. Estava na hora de encetar o
regresso. Iriam ser mais de duas horas, sempre a subir, arrastando-se trilhos
acima, esforço imenso entrecortado por paragens para beber água, encorajado por
um copo de vinho que todos bebiam, crianças incluídas, quando já estivessem a
mais de meia ladeira. O jantar em casa, nessa noite, era da praxe ser entrado
de canja com ovo. Sentiam-se os músculos das pernas com picadelas e uma enorme
vontade de ter a maior noitada de sono de todas as férias. Eram assim as idas
ao rio. Mais tarde, já a estudar na faculdade, a Ana voltara lá, de jeep, coisa
de quarto de hora por um estradão aberto pelos da hidráulica, tirando fotos e
recolhendo amostras para o seu relatório de estágio, nova dimensão que lhe fizera
rebaptizar os alfaiates de Gerris remigis
e os mentrastos de Ageratum. Mas
muitas mais vezes tinham sido aquelas em que apenas observara o rio visto de cima,
centenas de metros acima, empoleirada numa das pedras do mirante, primeiro umas
simples rochas que sobressaíam sobre a escarpa do vale como uma pala, depois um
local a que os do parque tinham vindo acrescentar uma balaustrada de ferro e
fios de aço entre os blocos de granito, e em que tinham posto um letreiro que
identificava o sítio e explicava a paisagem. Pretendia explicar a paisagem.
Como se a beleza daquilo tudo - e aquilo tudo não era só o horizonte, o rio, o
céu, era muito mais - não estivesse no facto de que o mais importante era o que
naquela mesma paisagem ficava sem explicação. Pois não via ela, daquela sacada
sobre o vale imenso, pedaços da sua vida? Tantos recantos da sua alma?
Ali estava
agora, agarrada ao Alberto, o seu Alberto, sentindo o vento quente a subir do
vale e a roçar-lhe a cara, vendo os grifos ao longe, talvez além um
abutre-do-egipto, falando de trasgos que vinham até si trazidos da sua
infância, inesperados. Ali estava agora, no seu miradouro. Tão seu. No íntimo
sabia que fora ali, numa noite quente de Agosto de há anos, que engravidara do
Alberto, logo no primeiro Verão que ele viera à aldeia para ela o apresentar
aos pais, no ano do seu casamento.
- O Titó é que
me perguntou pelos trasgos. Deve pensar que a barragem virá a alagar os sítios
dos trasgos!
- Não inunda
este sítio, pois não? - perguntou com alguma ansiedade.
- Claro que não!
O nível máximo da água fica ali em baixo, mais ou menos onde está aquela casota
além, ao lado daquela amendoeira maior…
O ar estava
mesmo quente, uma bruma de calor empastelava pormenores à distância e a luz do
sol a descer para o ocaso tornava baço o horizonte. Ervas secas e alguns cardos
pareciam ir incendiar-se com a tonalidade a jorrar de poente. Ao Alberto
pareceu-lhe ver qualquer coisa a correr e a meter-se entre as giestas, num
patamar. Teria sido uma raposa? Um grifo passou vagaroso, surgido de repente
sobre as suas cabeças, a planar para as fragas. Deram um beijo e dirigiram-se
ao carro, de mão dada.
De longe ainda
perceberam que o Titó dormia. Mas havia algo que não batia certo... o carro
tinha os pneus em baixo! Ele deu a volta, incrédulo. Os quatro! Estavam todos
completamente em baixo! De certeza que tinham passado por fosse o que fosse que
os furara e esvaziara lentamente, talvez duma casa que estava em obras à beira
do caminho, à saída da aldeia, quaisquer pregos deitados para o trilho… O Titó
acordara entretanto, participando do espanto. Só chamando um reboque é que o
carro sairia dali! Foi o que se fez, chamar o reboque pelo telemóvel. E foram
andando a pé para aldeia, a escasso quilómetro e meio, sol a pôr-se.
No dia seguinte,
na oficina na vila, o mecânico assegurava-lhe:
- Não, senhor
engenheiro, os pneus não estavam furados. Alguém lhe pregou a partida de os
esvaziar aos quatro… e voltou a por as tampas nas válvulas!
Manuel Cardoso, 2011
[Publicado em "Trás-os-Montes e Alto Douro: mosaico de ciência e cultura (colectânea de autores oriundos de Trás-os-Montes)", sob a coordenação de Armando Palavras, volume propriedade da Comissão de Festas Nossa Senhora das Graças 2011, uma antologia focada sobretudo em Lagoaça, Freixo de Espada-à-Cinta]
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