segunda-feira, 2 de setembro de 2019

LONDRES



Tenho lido tantos artigos sobre os ingleses e o Brexit…
Não sei precisar qual a primeira vez em que Londres passou a fazer parte da minha vida, de modo consciente. Seria muito pequeno quando terei ouvido as histórias cómicas do animatógrafo ambulante que, na infância de meu Pai, que no-las contava, vinha a este recôndito de Trás-os-Montes: “Ora aí está Londres, capital da Rússia, com o seu porto de mar!”. E com essas histórias, o Pai fazia-nos a pedagogia necessária e aprendíamos todas as suas soluções: que capital, que porto, que rio. Também me lembro bem de folhear, sem entender mas fascinado pelas gravuras e fotografias, velhíssimas Illustrated London News, muitas do tempo da Guerra de 14-18, que havia lá por casa, com as suas locomotivas, navios, automóveis, aviões, soldados fardados, bem como doutras mais recentes, da fase do Blitz e em que aparecia repetidamente o tal Senhor de charuto. Intuí que ele seria um chefe e, mais tarde, aprendi que fora um grande líder e, hoje, tenho por si, pelo seu legado e memória, uma imensa admiração.
Londres! Os autocarros de Lisboa eram como os de Londres; era em Londres que se ia aprumar em alfaiate da Saville Row o Dr. Águedo de Oliveira, ex-ministro de Salazar que era figura da nossa terra e que eu via conversar por ali; de Londres havia ecos quase constantes no Diário de Notícias e acerca de tudo; nos álbuns de quadradinhos do Edgar P. Jacobs, Londres era a capital da nossa imaginação, tal como nos livros de Dickens, no da peste de Daniel Defoe, nos de Conan Doyle e doutros policiais. O Big Ben marcava a hora do mundo e a BBC secção portuguesa, que emitia de Londres, ouvida em nossa casa com alguma frequência, marcava o padrão de qualidade com que o meu Pai aferia a verdade dalguns acontecimentos. Em Londres vivia uma Rainha!
Sei precisar muito bem o impacto de Londres na minha vida pessoal quando eu estava ainda para sair da infância e entrar na adolescência: a minha irmã Pilar, um dia, decidiu deixar de ser escriturária na secretaria municipal e foi para Londres estudar e trabalhar como au pair para uma casa de judeus ricos, com quem ela descobriu Espanha, as Baleares, o Mediterrâneo e um bikini que, nas nossas praias, por pouco não obrigaria, nesse tempo, a que interviesse a polícia! De repente Londres era toda uma novidade! Foi pela Pilar que eu percorri e passei a viver numa Londres notável mas sem sair de casa, das diversas vezes que ela veio a Portugal: Procol Harum, uma colecção The New Pictorial Knowledge e, logo numa das primeiras vezes, números de jornal em que a Page 3 foi uma inesperada descoberta naquela minha fase da década de setenta! Quando saí do colégio interno e passei para o externato, foi com a Pilar, recentemente regressada em definitivo de Londres, que passei a ter novas aulas de inglês e com quem aprendi como funcionava Londres: as Houses of Parliament, The Buckingham Palace, The Tower of London, Tower Bridge, Picadilly Circus, Trafalgar Square (durante anos sonhei ir a Londres só para poder flanar por Trafalgar Square!) as diferenças entre o West e o East End, a City e, claro, a gigantesca e multivariada multidão que circulava pelas ruas a comer fish and chips, frequentava cinemas, teatros e exposições, lia jornais, fazia parte de clubs ou vivia em bairros operários,  participava em manifestações, passeava pelo Hide Park e ouvia toda a liberdade do speaker’s corner (“só não podem dizer mal da Rainha!”). Em cada aula havia sempre uma história vivida que ilustrava a vida na mais fantástica metrópole! Fiquei então a saber quem eram os Harold Wilson, os Eduard Heath e muitos outros…
A minha admiração por Londres foi sempre crescendo e o progressivo conhecimento que fui tendo da história inglesa (como doutras nações) foi-me dando consciência da safadeza da História Universal e, também, felizmente e sobretudo, do seu heroísmo e grandeza. Com tudo isso, passei a considerar uma coisa certa: com muitos defeitos, com muitas particularidades, com muitas sinuosidades, a democracia inglesa é a mais antiga, das que se encontram vigentes há mais tempo, e a que melhores provas tem dado de resiliência, de capacidade de lidar com as monstruosidades. E outra coisa é certa: por maiores que estas monstruosidades pareçam (ou sejam inaparentes nos seus inícios), os ingleses sempre foram um exemplo de lhes saber fazer frente e de ter a arte em conseguir passar para lá do seu horizonte.
A Inglaterra sente instintivamente a necessidade de sair da UE, por muitas e variadas razões, umas das quais são suas, intrinsecamente, e outras serão nossas, mesmo que as não queiramos ver na íntegra para já. Para além de estarem no seu direito, o seu governo está agora no dever de fazer cumprir um referendo recente. Não fazer cumprir o referendo seria não aceitar as regras da democracia e isso, para os ingleses democratas, seria impensável. Só que tal está a esbarrar com uma onda enorme, soi-disant bem pensante – a meu ver, pouco mais do que histérica! – que, com todo o tipo de argumentos, tenta demonstrar que será o caos com esse Brexit! Aquando da II Grande Guerra, antes e durante, a propaganda alemã usou alguns argumentos também apocalípticos em relação ao futuro de Inglaterra e contra Winston Churchill, muito parecidos com os que agora são usados para tentar achincalhar Boris Johnson!!! Sabe-se como acabou essa história de então…
Tenho a convicção que o futuro demonstrará que a velha Albion irá mais uma vez surpreender-nos e saber passar para lá deste nosso horizonte. Muitos me dirão, como me têm dito, que Boris Johnson é isto e aquilo - só que eu não aceito isso que me dizem: se Winston Churchill não tivesse sido isto e aquilo e se tivesse apenas decidido pelo politicamente correcto, nem quero tentar adivinhar o que teria sido… 
A velha Albion shall never surrender e, tenho a certeza, continuará a ser uma hipótese segura de porto de abrigo nos piores momentos que possamos vir a ter no nosso futuro, como o foi tantas vezes no passado. É claro que no momento presente não se trata de fazer frente ao nazismo – mas o que é certo é que um pouco por todo o lado dentro da UE estão a surgir fenómenos extremistas – só que na cabeça de muitos ingleses (para não falar também dos raciocínios financeiros que estão na de muitos outros) se entende que é necessário para o seu país estar em alternativa ao que dentro do bloco europeu possa acontecer.
Vivemos uma época emocionante, um pouco por todo o mundo mas sobretudo aqui na nossa Europa onde, mais do que pensamos, se jogam decisivas cartadas de sobrevivência. Sou dos que somos a favor da vinda de refugiados e da aceitação de imigrantes num espírito de grande liberdade – como a Inglaterra tem feito desde sempre e em maior número desde a desmontagem da sua administração imperial, já há meio século. Sem abdicarmos do nosso carácter. 
Numa ida a Londres com um grupo animado de amigos vets, lá vai uma vintena de anos, numa das noites andámos a comer, beber copos e a dançar: The Talk of London, nalguns pubs, na The Hipodrome, num kiosque onde às tantas conseguimos beber um excelente café servido por um bem humorado viseense, noutros locais cujo nome agora me não ocorrem… mas num deles, com espectáculo, o apresentador a certa altura cumprimentou ao microfone um grupo de indonésios, turistas como nós. Estava no auge o problema de Timor e nós fizemos um sonoro Aaaahhh! O speaker olhou para eles e para nós, sorriu, com uma frase de um de nós ficou a par da razão de ser da nossa exclamação invectiva, sorriu novamente mas disse-nos, tapando o microfone: behave yourselves! No final, todos nos cumprimentámos ao sairmos com grandes vénias. Todos tínhamos sido capazes de conviver naquela sala multicultural – ou não estivéssemos em Londres, já então e desde sempre em grande naquilo que Lisboa tem sido nestes últimos anos, com toda esta multidão de turistas e imigrantes.
Estes fim de Verão e Outono vão ser emocionantes na política inglesa, na esteira dum ano sem silly season e em que não foi preciso rentrée porque temos estado sempre no fio da navalha, com Boris Johnson a fazer um bom papel: o necessário na presente circunstância. Com uma coisa certa: a democracia inglesa vai perdurar! Isto por que os ingleses, com imenso estardalhaço (digo estardalhaço no verdadeiro sentido da palavra porque se se conhecer a história do parlamentarismo inglês ou, basta, a história dos debates de Churchill no parlamento inglês nas suas diversas cores políticas, estardalhaço é uma palavra autêntica e explícita e não tira a seriedade política de fundo) irão decidir e fazer algo que, daqui a uns anos, quando tivermos perspectiva sobre este tempo que passa, iremos ver que terá sido o melhor para o futuro. Até por que nesse grande País têm algo com um poder enorme (como tenho sorrido quando leio artigos que dizem que não tem poder nenhum!) que é o de a Rainha, que não depende do voto de ninguém, quando lhe aprouver, poder dizer em privado, seja a quem for, da esquerda ou da direita: Behave yourself!  
             
        

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