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sexta-feira, 22 de agosto de 2008

FRAGA DOS CORVOS

Fraga dos Corvos, Verão de 2008



Depois de percorrido o caminho de Montemé sempre a subir desde o Vilar do Monte, chega-se entre os castanheiros e para-se. Um silêncio de mundo antigo envolve-nos no verde religioso da serra. Naquela encosta da Serra de Bornes, voltada a Norte, há um conforto especial de quem se sente em casa, mesmo não sendo dali. O sol está forte mas é manso entre as folhas. E, ao voltarmos a nossa vista para o esplêndido vale onde fica Macedo de Cavaleiros, com as outras serras, a de Ala, da Nogueira e do Cubo a emoldurá-lo e a servir de horizonte próximo – que ao longe estão o Marão e o Alvão, o Gerês e o Castro Laboreiro, a Galiza, os Montes de León e La Culebra – começa a ouvir-se um murmúrio ao pé, de entre as ramagens, um scratch, scratch, scratch que é inconfundível. Aproximamo-nos, calcando ervas rasteiras e afastando um ramo de castanheiro bravo. Uma plataforma de rochas em aconchego na vertente, uma turma da Faculdade de Letras de Lisboa de olhos no chão, esgaravata a colher e destapa suavemente com brocha de cerda, não a ver o que está ali mas a saber o que ali estava há três milénios antes de agora, a mexer no que ali era há mais de três mil anos antes de agora. É um momento raro. Estar em comunhão com dez pessoas e todos embarcarmos numa viagem no tempo até à Primeira Idade do Bronze. Nada como nos livros, imaginada. Toda real, ali. Um dia destes descreverei como é. Obrigado ao Bruno, à Joana, à Raquel, à Débora, à Elsa, ao Francisco, à Helena, à Liliana, ao João e ao grande amigo João Senna-Martinez!






Para verem mais fotos podem pesquisar os álbuns do blogue ou irem para http://picasaweb.google.com/mcardoso.mmacedo/Arqueologia2008 Até já!



terça-feira, 15 de julho de 2008

primeira exposição individual






A partir de 15 de Julho de 2008 e até ao último dia do mês, uma pequena exposição de telas a óleo estará patente no Hospital de Macedo de Cavaleiros. Para os que não possam ir vê-la in loco, aqui se deixam algumas anotações. São oito trabalhos em duas séries de quatro.



The Doctor, emoções I, II, III, IIII





Sir Henry Tate encomendou a Luke Fildes, em 1887, um quadro de grande realismo e intensidade emocional, grande também nas medidas (166,4 cm * 241,9 cm) e no preço (3000£). A obra ficou terminada em 1891, foi apresentada por Sir Henry Tate em 1894 e, desde então, tem sido reproduzida milhões de vezes em litografias, gravuras, selos, postais, posters, etc.
Apesar de omnipresente e vulgarizada nos estabelecimentos médicos um pouco por toda a Europa e por todo o Mundo, nem por isso perdeu a sua força. É que cada pincelada estava embebida, mais do que em óleo e pigmentos, na saudade de um filho do pintor, morto de doença uma década antes. Na tela está também, com um vigor impressionante, um preocupado reconhecimento à devoção médica do Doutor Gustav Murray, que o assistiu até à morte.
Os quatro estudos agora presentes e inspirados nesta obra de Luke Fildes, The Doctor ©Tate Gallery, não são mais do que uma expressão de emoções e propostas de perguntas. Sendo a cena original o resultado de um memory sketch de 1877, presenciado e vivido pelo pintor, qual o papel do médico nesse momento e, depois, na tela? A curar a doença, aliviar a dor, a confortar o doente e os pais? Que mais? E será que hoje…


Depois de concluir o quadro e de receber o pagamento, Luke Fildes terá comentado que teria ganho mais se entretanto tivesse estado a pintar retratos de gente rica. Ainda bem que não esteve.




Neuma est Veritas



Esta série de quadros, genericamente intitulada Neuma est Veritas (se bem que já não sejam neumas primitivos a neles figurarem mas sim a notação perene da escrita de cantochão), é um conjunto de instrumentos como se as próprias telas emitissem sons. E não emitem? Não os ouvimos mesmo tapando os ouvidos? Atravessar o tempo e o espaço. Deixar de ter os pés no chão. Perceber a verdade. Ultrapassar a mortalidade. Música!




domingo, 25 de novembro de 2007

Os últimos e os outros

© Manuel Cardoso



- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!

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Um dos esqueletos mais bem guardados nos antigos armários da casa era loura, tinha olhos azul-água e a cara estampada dalgumas das nossas antepassadas. Dizem que foi despachada para o Brasil com a mãe, levando na bagagem um dote condicionado a não voltar a aparecer. Nunca nenhum de nós soube dela a não ser por uma frase aqui e ali, em momentos mais graves de discussão e temor.
Parece que a avó lhe fez referências, uma vez por outra, naqueles instantes de viuvez em que ainda lhe vinham à flor da alma as sombras do seu casamento com o avô, nem sempre feliz. Quase não me lembro da avó!
Mas houve outros, mais patentes, que ainda hoje se cruzam comigo na rua, com aqueles traços de família que são mais do que um vestígio genético – a evidência flagrante de antepassados comuns e muito mais recentes do que Adão e Eva. Destas e destes, não houve nenhum que me constasse ter morrido em nossa casa.
Uma das pessoas mais chegadas foi a que foi ama de meu Pai. Ficou sempre a governanta da casa e foi da família muito mais que outros que tiveram dela o apelido e a sorte. Mandou ali dentro com a determinação das avós lendárias do século dezoito, senhoras do seu nariz e doutras coisas dos homens e verdadeiras fundadoras dos cabedais que aguentaram toda a parentela durante os dois séculos seguintes. Mas também esteve cá com mansidão e com a delicadeza das mais santas e mais apagadas, dotadas daquela discrição firme que se revela como uma rocha nos momentos mais instáveis dos dramas íntimos de cada família – dotadas também daquele génio que, nos momentos precisos, arrasa qualquer obstáculo. Morreu no quarto das duas camas, depois de uma agonia que lhe desfez definitivamente o fígado. Lembro-me apenas que respirava a espaços como se gorgolejasse e que exalava um hálito pestilento. Quando já não respirava nem palpitava, o pai e a mãe enfiaram-lhe na boca um algodão embebido em álcool canforado, na vã tentativa de disfarçar o cheiro. Foi levada para a sua aldeia, já morta, muito sentada e direita, de automóvel, num táxi cujo chauffeur ainda protestou qualquer coisa quando a viu soçobrar. Desta história ficou um eco ainda vivo nas histórias de ócio nos cafés da terra. Foi a última pessoa da casa a morrer na casa.
Houve tantos a morrer aqui! Alguns no berço ainda, outros já maiores, houve mesmo um pedinte, ainda no tempo do trisavô morgado, que, numa noite de temporal desabrigado, conseguiu que o ouvissem a mal bater, já sem forças, na pesadona porta da cozinha velha que dava para a varanda das galinhas. Entrou para ao pé do lume, onde a criadagem lhe deu um caldo quente e lhe secou a roupa. O homem tremia e tartamudeava qualquer coisa. Morreu aconchegado numas mantas. Que estranha casa, a que se vinha pedir para cá morrer!
A avó morreu pouco depois de eu nascer mas não morreu na casa. Lembro-me muito vagamente de ver bombeiros com capacetes reluzentes a ir junto da cama dela, uma cama grande, D.José, com dossel, na casa das tias, em frente à nossa, onde passara os últimos anos com as irmãs, a Tina e a Ticha. Trouxeram-na para a casa para se lhe rezar e para ser velada.
A irmã mais nova do Pai morreu ainda menina, no ano em que a monarquia se preparava também para morrer. Foi um prenúncio de infelicidades ainda maiores na casa, que os avós quase acabavam de reinaugurar, depois de umas obras posteriores a partilhas.
O tio Alberto, o mais velho, morreu em Lourenço Marques no início dos setenta e a tia Lygia morreu muito antes e muito nova, em trinta e nove e com apenas 34 anos, deixando órfãos os três primos Malheiro: o José, o João e o Chico.
O pai também não morreu na casa. Aliás, saiu de casa para morrer. Lembro-me nitidamente – como poderia esquecer?
De tarde sentiu-se indisposto e com uma dor contínua no peito que se foi esbatendo. Depois de jantar foi até ao Café Central onde esteve com amigos, conversou, gracejou até e ainda passeou com a Pilar, que estava cá porque era fim-de-semana comprido do Corpo de Deus. Sentiu-se, então, pior. Voltou para casa e dali foi para o hospital (um hospital que ele próprio ajudara a construir no Estado Novo e para o qual lhe arranjara algum dinheiro o Frederico Ulrich, então ministro, e no qual nascemos todos os irmãos, excepto o mais velho, tido na casa). A Mãe e a Dulce telefonaram-me, estava eu em Travanca. O Álvaro levou-me ao hospital. O pai estava deitado numa marquesa, o Dr. Simão e o Dr. Urze inclinados sobre ele a fazer-lhe uma massagem cardio-pulmonar. A irmã Judite estava junto. Vi-o ainda a respirar ofegante e profundamente, duas ou três vêzes. Estava morto. Apareceu entretanto o Padre Melo que ainda o ungiu. Levei-o para casa numa ambulância. Fui buscar um caixão. Foi o último da casa que foi velado em casa, no quarto do pátio. Foi o último dos irmãos a morrer.
Foi o último a morrer que foi velado na casa.

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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
Esta frase, ouvida vezes sem conta a minha mãe que a soltava num misto de queixume revoltado e de desesperança, irritou sempre de modo especial a minha irmã Margarida para quem a afirmação era mais do que uma ofensa. E se, então, fosse dita num momento de suspiro, diante de uma parede em que a água infiltrada desenhava modelos elaborados do caos, ou depois de uma manhã de limpezas num quarto, em que um tecto de estuque caído fazia uma simulação de guerra, nesses momentos era ainda mais insuportável a ambas: à minha mãe conter-se e à minha irmã ouvi-la:
- A casa é velha, está uma choupana, vão-se mas é embora, meus filhos, isto está tudo a cair!
Levei anos a compreender aquela atitude. De ambas.
A primeira vez que a mãe vira a casa fora dias depois de casar.
Conhecera o meu pai na Guarda, no sanatório, para onde tinham ido nos anos trinta. O pai tinha vindo tuberculoso de Moçambique e a mãe tinha vindo com a tia Aida de Lisboa. Todos tinham chegado à Guarda como quem vai para uma estação de destino – quem diria que seria apenas um apeadeiro?
Decorria a II Grande Guerra quando casaram na igreja de Nª.Sª.de Fátima, ainda em obras, às Avenidas Novas, em Lisboa. Dias depois, a mãe vê-se diante de um meio solar dividido em partilhas de que nunca ouvira falar porque o pai falava sempre na casa.
A mãe chegava como quem ia para um chá na Pastelaria Versailles ou para um passeio a uma esplanada no Jardim da Estrela ou no Campo Grande: chapéu, carteira e sapatos brancos, tailleur de verão com saia curta por cima do joelho, pálpebras e lábios lilases. Foi um choque.
Um bando de outra idade estava à espera no pátio, vestidos de escuro como se ainda velassem por D.Carlos e o Príncipe, tias e tios, primalhada curiosa de ver quem é que o pai trouxera de Lisboa, para uma casa que fora sempre amarga para as mulheres. Amarga para a avó e para as duas filhas que ela tivera, ambas mortas, uma com mêses de idade e a outra, a tia Lygia, tristeza ainda recente, a que deixara os tais três filhos rapazes.
A mãe entrava no pátio, escuro naquela tarde de Outubro de 42, sentindo que uma indefinível hostilidade brotava daquelas paredes.
A pouco e pouco foi mudando algumas coisas. Os soalhos, de esfrega à mão por criadas que, de joelhos, os passavam a escova e sabão, começaram a ser de cêra e lustro puxado. As paredes, de uma cal antiga, nas quais se recortavam as manchas castanhas dos quadros pendurados há décadas e detrás dos quais fugia uma multidão de percevejos quando se remexiam para limpar o pó, foram pintadas de fresco.
O primeiro Inverno foi frio, como o são os de Trás-os-Montes e, à temperatura baixa, com a água a congelar nos canos, vieram juntar-se as contingências do racionamento e da Guerra, a electricidade disponível apenas por horas e a cintilar a espaços, a simpatia apenas educada dos sogros. Além do mais, na casa vivia muita gente, muita mais gente do que a mãe gostaria: os meus avós, sendo que o avô estava já com uma aterosclerose avançada e davam-lhe ataques, os Malheiro, o pai deles e a criadagem, a velha Leonida e as ajudantes.
Do desconforto do frio passava-se para o tórrido do Verão. A mãe tinha preferido o Inverno, o calor fora-lhe sempre insuportável.
Para ter tempo só para si, deixava-se ficar a ler até tarde, na varanda ou na sala, e com o vagar das horas recomeçara até a escrever, como já o fizera em Lisboa em solteira. Ficava normalmente até o petróleo estar a acabar no depósito bojudo de um candeeiro francês, portas abertas para a varanda, escuridão lá fora de onde vinha apenas o ruído constante e agradável da fonte da praça, dos grilos e do canto compassado dos rouxinóis e dos melros, a responder do fundo das hortas.
O pai da minha mãe, militar de carreira, republicano e extremamente racionalista, não instruíra os filhos na religião católica. As convicções da mãe neste domínio formaram-se muito tarde, e foi já depois de casada que aderiu de alma e coração e de tal modo que ficou com aquela fé dos convertidos, muito mais fundamentalista e intolerante do que a dos tradicionalistas como o meu pai, mais aberto e compreensivo, a acreditar mais na redenção do que no castigo final. Na época em que veio para Trás-os-Montes, a mãe ainda não era uma católica convicta, convicta a sério... seria antes uma racionalista praticante. E com aquela tendência que todos temos para adaptar um pouco a religião a nós próprios, pode dizer-se que a mãe começou por praticar mesmo um catolicismo racional.
Na época foi assim – a fé veio depois, e reforçada. Mas, por isso, nunca aceitara até aí que o sobrenatural pudesse estar no dia a dia da vida de cada um – e nunca o aceitou. Tudo o que lhe contassem que fosse sobrenatural teria concerteza uma explicação racional.
Numa dessas noites abafadas de Julho, silêncio cortado apenas por uma ou outra melga que volitava, a mãe escrevia na sala. Embrenhada no texto, não se apercebeu logo de um ruído ritmado e surdo que parecia vir do tecto. Quando notou, achou estranho: por cima do tecto não havia nada, apenas o terceiro, o sótão em bruto que ficava sob o telhado, como podia produzir-se aí um ruído daqueles?! Prestando melhor atenção...o ruído desaparecia. Depois voltava, mais nítido, mais insistente... então parava. Entretanto apareceu por ali o meu pai. Também ouvia, havia ali qualquer coisa a mexer-se. Pegaram num candeeiro de azeite e avançaram para o sótão. Quando abriram a porta puderam ver que, sobre um estrado poeeirento de tábuas, o velho berço de baloiço da casa oscilava sozinho.
Para uma racionalista, foi um episódio algo perturbador, embora a mãe tivesse arranjado uma explicação arejada sobre poder ter sido uma brincadeira de gatos – e os gatos são dados a brincadeiras do género e na casa havia vários. Pelo sim pelo não, o berço que as mãos da tia Lygia tinham empurrado pela última vez e que agora estaria na iminência de ser empurrado pelas da minha mãe, uma estranha na casa, foi arrumado longe, no palheiro, e não serviu mais, nem sequer para o mais velho dos meus irmãos. A mãe mandou vir um berço novo de Lisboa, de rodas com molas e caixa forrada de pergamóide.
A vida da mãe, cá em casa, foi sempre difícil. Crónicas faltas de água, repetidas reparações do telhado e dos tectos, incêndios na cozinha, complicadas teias de relacionamento com a família de meu pai, periódicas dificuldades financeiras. As revistas que chegavam cá e traziam a propaganda alemã, inglesa e americana alimentaram no seu espírito a firme certeza de que a vida americana era a melhor: recurso a meios modernos, electricidade para tudo, sociedade sem preconceitos, casas fáceis de manter. Ainda me lembro de a ouvir dizer ao meu pai, onze anos mais velho e de saúde sempre problemática, num misto de coisa séria, sonho impossível e testemunho para nós, os filhos:
- Devíamos era ir para a América, começar vida nova, nem que fosse lavar pratos. Lá é tudo moderno, é tudo mais fácil!...
Somos seis irmãos. O mais velho é o Carlos, depois a Lígia, a Guida, a Pilar, a Dulce e, no fim, a meia dúzia de anos de distância, eu. Quando as manas eram pequenas, dormiam no quarto lá de cima, o da janela do mirante, paredes-meias com o terceiro e ao cimo das escadas em meio caracol de madeira.
Numa noite em que as luzes já estavam apagadas mas em que ainda conversavam, começaram a ouvir dois sons alternados, um surdo e outro de madeira a martelar madeira, corredor adiante, como de alguém com perna de pau que avança. Primeiro pensaram ser sugestão e os sons virem da rua, mas, a certa altura, notaram distintamente que o alguém subia as escadas na direcção do quarto. Começaram então a chamar alto e bom som pelo pai.
Rapidamente, quem quer que fosse se escapuliu corredor adiante em direcção à saleta. O pai acorreu, inteirou-se do sucedido e passou revista às portas e janelas. Não viu ninguém. As portas e janelas estavam todas fechadas por dentro. Oficialmente, ao almoço do dia seguinte, a avó cunhou a versão, concertada durante a manhã em conversas semiescondidas com o pai, de que teriam sido, ela e a sua bengala, as noctívagas misteriosas. Só que a bengala da avó tinha ponta de borracha...
Uma outra vez, já mais crescidas, ocupavam o quarto das duas camas. A meio da noite notaram um ponto de luz pairando sobre os pés da cama e que se movia, aumentando de volume e aproximando-se, baixando sobre a colcha. Mais uma vez desataram a chamar o pai em brados, que veio correndo e que, ao abrir a porta do quarto delas, esboçou um ar de espanto e recuou, logo recobrando a serenidade e procurando sossegá-las.
Ambos os episódios foram contados e recontados já muitas vêzes ao longo dos anos e até têm servido para fazermos brincadeiras sobre fantasmas e coisas do género a propósito. Contudo, nenhum dos episódios teve uma explicação cabal, várias vêzes foram motivo de conversa mas de nenhuma conclusão e os nossos pais sempre procuraram desvalorizá-los, atribuí-los a sugestões e a pesadelos.

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A vinda com a Mariana comigo para a casa, mais de quarenta anos depois da minha mãe, implicou fazermos obras na casa para adaptarmos o rés-do-chão a ser o nosso apartamento de casados. Na antiga adega fizemos a sala com a lareira, na antiga despensa, quarto dos cestos e casa dos banhos fizemos o quarto da filharada, corredor e uma casa de banho. O nosso quarto ficava no que dantes era a loja das batatas e a respectiva casa de banho ocupa agora o antigo galinheiro pequeno.
A Mariana, tal como a minha mãe, também veio de fora para a casa. Tivemos três incêndios na chaminé e algumas inundações. Tudo acontece ou se inicia quando eu não estou. Essas peripécias, às vêzes pequenos nadas, foram avolumando em nós ao longo dos anos um sentimento de já basta, de exaustão. Decidimos um dia mudar de casa, até porque os nossos filhos vão crescendo e começámos a necessitar de mais espaço.
E decidimos, até, mais do que isso: deixar definitivamente esta casa. Curioso que, sempre que pensava nisso, inspirava-se-me um sentimento de alívio. E sempre que hesitávamos, sempre que por um instante nos assaltava a vontade de prolongar ainda um pouco mais a nossa estadia ali, algo acontecia como que a empurrar-nos a pôr-nos dali para fora.
As últimas reparações depois de um dos incêndios que tivemos puseram a sala confortável como ainda nunca a tínhamos tido. Talvez nos tenha assaltado a ideia de ficar mais um pouco, sentir a sala assim quente e afável. De imediato uma chuvada veio argumentar o contrário, arranjou maneira de se infiltrar pelo canto da televisão, molhou tudo, íamos ficando sem parabólica e sem canais por satélite. Reparei rapidamente os estragos – nova infiltração na parede mestra que ficou inchumbada de água, ressumando humidade para todo o ambiente, tornando desconfortável como nunca a sala que estava acolhedora como nunca!
Já por duas vêzes distintas, eu já quase a adormecer, ouvira nitidamente como num filme de alucinação, no nosso quarto, vozes explícitas numa conversa breve e urgente:
- Diz-me quem, diz-me quem!
A que uma voz aflita respondia um queixume:
- Não, mãe! Não, mãe!
- Mas por que é que...
E neste momento o diálogo interrompia-se, eu levantava a cabeça da almofada e perguntava à Mariana se ouvira também. A Mariana também ouvira. Apesar das dúvidas fui várias vêzes à casa paredes meias com a nossa, a tal metade do solar que as partilhas partiram, ver se nas lojas térreas havia pegadas frescas, mas em vão. Um das noites fui mesmo à polícia...”ora, senhor dr., isso lá é algum namoro às escondidas!”. Só que as vozes não eram de namorados, eram vozes mesmo aflitas, numa conversa rápida de sussurro mal disfarçado.
E acontecia-me muitas vêzes estar precisamente no mesmo quarto com a clara sensação de que estava ali mais alguém, de que aquela torneira a pingar eu tinha fechado antes, aquela gaveta mal metida para dentro eu tinha composto há instantes. O nosso quarto estava com infiltrações nas paredes que vinham desde o telhado, dois pisos acima, de um velho caleiro de zinco podre. E o chão, de tijoleira vermelha, estava a esboroar de humidades capilares. A um canto, o salitre estava já a carcomer uma parede rebocada de novo ainda só há meia dúzia de anos.

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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, mais moderna, mais nova!

Esta frase da minha mãe foi produzida, a primeira vez, nunca soube eu quando. Talvez lhe tenha ocorrido pela primeira vez logo depois de, no pátio de entrada da casa, ter entrado, pelo braço de meu pai, e ter visto todos os outros.
Foi sempre impossível à minha irmã Margarida ouvir essa frase sem ripostar. Talvez que se tenha sempre sentido parte orgânica da casa. É que eu não sei explicar porquê mas quando imagino a cena da mãe toda up to date de Lisboa anos quarenta a entrar no pátio, pelo braço do meu pai, e toda aquela parentela grave ali postada à espera de poder fazer o cumprimento de boas vindas, de casaca preta, vejo nitidamente, num dos degraus de granito das escadas, em pé e ao lado de um vaso de folhas verdes de aspidistra, a cara sorridente, francamente sorridente, da minha irmã Margarida, - como se fosse a cena final do Shining, ! –, no meio dos semblantes sorridentes, cerimoniosamente sorridentes, de todos os outros.

O caixote

© Manuel Cardoso

- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!



Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.

O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!

O frasco azul

© Manuel Cardoso


Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?

A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!


No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?

O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.

A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.



Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!

FOGO!

© Manuel Cardoso


- Deixa arder! Deixa arder, que é do Menéres!
- Sai daí que ainda te chamuscas, ó palonço!, deixa arder, que é do Menéres!
O incêndio lavrava feroz na encosta de cá do rio, um mato denso de tojo e de estevas em que pontificavam umas dezenas de sobreiros, tochas gigantes a sumir-se num estralejar mirífico e portentoso que se fundia na noite. Um grupo assistia, cá de longe, encavalitado numa fraga vasta a servir de balcão ao espectáculo, armado de pás, machadas e sachos, sôfrego às labaredas a consumirem, uma a uma, as árvores centenárias. De onde em onde viam-se os pirilampos azuis dos carros de bombeiros vogando no meio do negrume sobreposto no laranja. Um rapaz, camisa meia rasgada por alguma ponta de esteva, chegava ofegante, olhar suado:
- Não se consegue fazer parar! O vento voltou e agora não se segura deste lado!
- Mas tu que andas praí armado em valente? Deixa arder que ninguém te paga para isso! Os bombeiros não andam aí?
- E nós não devemos ajudar?
- Ajudar, a quê? Os sobreiros não são nossos, não fomos nós que chegámos o fogo, não temos nada que ver com isto. O Menéres, que é rico, que venha cá! E também, a ele, não lhe faz diferença.
Um carro dos bombeiros passou mais perto, acertou com os faróis no grupo, assim descoberto no meio do mato como numa ilha de anedota e acelerou a roncar numa reduzida em direcção ao magote. Empoleirados no cimo, agarrados a um canhão de água, dois bombeiros distinguiam-se contra o clarão vermelho que refulgia nos capacetes e nas viseiras levantadas. O carro parou com uma oscilação que levantou poeira.
- Olha! – ouviu-se uma voz do grupo – eu não me importava de ir lá em cima pra que me ajudassem a segurar na mangueira!
- Mas, quem é aquela?!
- É uma bombeira!
- Estes são de Mogadouro! Caramba, andam cá muitos bombeiros!
- Ó menina, ó menina! Não precisa de mais um ajudante?
- Cala-te! Não vês que os outros podem não achar piada?
- Ora, isso que tem? Nós somos mais, não há que ter medo!
Um bombeiro que vinha dentro da cabina esticou a cabeça mais para fora para fugir à confusão das mensagens rádio que algaraviavam e perguntou:
- Daqui há algum caminho para a aldeia?
- Precisam de água para o depósito, é? – perguntou um dos do grupo.
- A gente queria era beber uma cerveja. Já há uma hora que andamos aqui e estamos cheios de sede.
- O caminho é por ali, detrás daquelas carrasqueiras, sempre prá direita.
- Obrigado.
Arrancaram com uma fumarada de gasóleo e poeira.
- Olha-me estes! Então os bombeiros podem beber em serviço?
- Por isso é que depois não são capazes de apagar os incêndios!
- Uma cerveja agora também não ia mal! Ó Artur, vai lá buscar uma grade à Zita. Traz cá para a gente.
- Pagas tú?
- Deixa na conta do Menéres! Hoje o incêndio é por conta dele!
- Olha que ele hoje não mete para aqui as botas!
- E pra quê? Mesmo que isto lhe arda inda vai ganhar a nota se meter um projecto. Mais lhe vale estar quieto.
- Os ricos têm sempre sorte!
- Anda que não é a mim que ele apanha para ir para ali!
- Está descansado que aqui não o vês, pá. Inda se fosse no Verão a medir a pilha da cortiça...
- Uma das pilhas! Praí eu ia! Podia ser que me desse sociedade! Agora práli pró fogo...
- Inda chamuscas as farrepas!
- Quer não que eu não gosto da minha farpela!
O incêndio recrudescia. Ouvia-se o crepitar, aumentava o clarão e o fumo, subia pela encosta o ruído de fritadeira que fazem as estevas e as urzes quando o calor lhes ferve as seivas e lhes rebenta os caules. O barulho mais intenso chamou a atenção do grupo que olhava todo na mesma direcção onde agora aumentava o vermelho, de que o vento levava pedaços céu acima, misturados com cinzas e fumos.
- Ele inda há-de ir ter aos pães dos da Paradinha. Os pobres. Aquilo já não vale muito...
- Se agora estávamos lá abaixo no Carril inda atalhávamos a algum coelho a fugir!
- Ou a algum porco! O ano passado o Zé Monte caçou um a fugir ao fogo de Malta.
- Eu inda comi um cacho desse!
- Deu-lhe um tiro?
- Qual tiro! Atirou-se a ele e cravou-lhe uma faca de mato entre as costelas que o tombou logo!...Isso sim, foi de ser visto!...
- E o porco não o feriu sequer?
- Não era grande e vinha já cansado, meio tonto…
- Ah! Assim está bem. Senão anda que o Zé inda se lixava, que os porcos com aqueles dentes haviam de o deixar pior que um Cristo!
- Com’ó cão do Zé Preto que quando foi da batida ficou co’as tripas de fora!
- E inda se safou! Eu quando os vi dar aquele dinheiro ao veterinário inda lho disse “mas pra que ides gastar? O cão vai morrer decerto! Deixai-o mas é!” E inda se safou, o lafrúzio!
Mais dois homens vinham a pé, ar cansado e roçadoura nas mãos, ignorando o grupo que se calou ao vê-los. Seguiram caminho adiante, meio curvados do esforço e dos anos que já tinham. Passado o resquício de respeito, o magote recuperou o pio.
- Bem, pessoal, vamo-nos mas é para a aldeia que são horas. Assim como assim inda podemos ver o programa das garinas na SIC.
- E elas são boas! Na sexta passada aquilo era material...
- Calai-vos lá! Material do melhor era o que Talas trazia há dias no BM quando parou no Feira Nova. Aquilo sim!
Assobios.
- Pois o que tu querias era ter uma mula dessas, ó Chamusco! Olha que dá muita despesa!
- Mas também dá rendimento! E mais que a minha a lavrar por aí!
- Ai isso é! Rende mais essa numa hora no bem-bom do que a tua à semana a lavrar sulcos!
- Mas também a minha contenta-se com feno e erva enquanto que as outras...
- Caramba, desgraçam um homem! Olha o Zé Ruivo: foi-se a elas, andava por lá uma dessas de alto sustento que era de Braga...
- Era brasileira!
- Não era nada, era dessas russas ou romenas...
- Então foi outra porque esta era de Braga...
- Não era! Porque enteimas? Era brasileira!
- Então não era aquela que aparecia no Duque...
- Não, pá! Essa era das de Bragança, do Abano! Esta, a do Zé Ruivo, era de Braga...
- Caramba que és teimoso! Era brasileira!
- Mas tu viste-a, foi?
- Não só a vi como ainda lhe botei as mãos...
- Aaaah! Então tu também ajudaste à festa do desgraçado!
- A mim lixou-me duzentos contos! Em quinze dias!
- Pois o Zé ficou sem mais de mil! Teve que vender o lameiro das Lagas.
- E ficou sem a mulher que lhe fugiu com os filhos para casa da mãe!
- Quanto a isso não sei se foi mal se foi bem porque com um pau de virar tripas como aquela rabujona ele não ia longe!
Gargalhadas.
- Eh! Pá, olhai lá além ao fundo: é um carro a arder?
- Não, não. É o sobreiro da Mesa que acabou de tombar e está a arder.
- Mas está lá mais qualquer coisa...
- Ai está, está...
- Ah! Já sei! É o carreto do teu tio que estava debaixo.
- Ena, pois é! E ainda este ano lhe tinha posto tábuas novas e uma folha de zinco!
- Já não volta a dormir lá com a Marquinhas!
- Vamos embora ou não? Já tenho a garganta seca.
- Vamos! Pode ser que ainda lá estejam as bombeiras de Mogadouro!
Saltaram da fraga abaixo, dois dos que estavam mais na beira. Entretanto, uma luz de faróis varreu o grupo e quando chegou mais perto, a vir do caminho da aldeia e a roçar pelas carrascadas, percebeu-se que era um Range Rover.
- Altamente! Quem é que mete para aqui um jeep destes?, disse um dos que ainda estavam em cima.
Abriu-se o vidro do condutor e uma pronúncia só levemente à Porto, saída debaixo de um boné de padrão inglês, perguntou:
- Se faz favor dizem-me, para ir para a clareira dos Quatro Caminhos é por aqui, não é?
- É sim, sempre para baixo até ao rio e depois um desvio à direita ao pé de uma fraga grande.
- Estão para lá os bombeiros – acrescentou outro -, vai ver logo as luzes.
- Estão a bombar água de um fundão que há ali...
- Eu conheço esse sítio, só não tinha a certeza de se poder lá chegar por aqui. E vocês não vão lá dar uma ajuda?
- Nós?!
- Sim, davam jeito. Está-se a tentar evitar que o fogo passe para os centeios da Paradinha.
- Bem... mas daqui lá...
- Entrem aí para trás. Apertados, cabem todos!
Foram todos, arrumadas as pás, machados e sachos na bagageira, os seis amontoados no banco de trás, emudecidos, a sentir o perfume de uma mulher nova que ia ao lado do condutor. O rádio tocava o Oceano Pacífico da RFM. Houve um que se atreveu:
- O senhor é de Macedo?
- Nem por isso. Sou do Romeu, da Casa Menéres.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

um dia de inverno

Tem sido um dia de Inverno. O primeiro, este ano. Chuva, vento e frio. Até agora tínhamos tido um Outono de esplendor marroquino: frio à noite com estrelas, calor de dia de sol, céu límpido até onde o horizonte chega. Hoje mudou tudo. Ficou afastada a que já se temia ser uma seca. Estamos a passar os meados de Novembro, hoje já são 19, verdade seja.
Tem sido um dia de neura. Contratempos logo de manhã, mais contratempos durante a manhã e mais ainda à tarde. Os da manhã foram de serviço, burocracias que me puseram especado na secretária a resolver problemas e me alteraram a agenda, já de si alterada por ter tido que mudar as aulas que deveria dar hoje, e me impediram de estar em representação numa visita de estudo sobre castanheiros, do Centro de Investigação de Montanha, do IPB. À tarde os contratempos foram mais chegados e mais difíceis: primeiro, o Vasco: caiu na escola ao escorregar com uma das canadianas com que anda por ter partido o joelho esquerdo. Fui buscá-lo, chovia a potes e estava abrigado num toldo de uma loja da rua da Chenop. Trouxe-o para casa, já se vê. Tinha acabado de acender a lareira quando me ligou o Carlos Mendes a dizer que um carro da Terras Quentes se tinha estampado na curva à entrada para o paredão da barragem do Azibo e que a Raquel e o João se tinham magoado. Falei entretanto com a Lília, que estava a caminho do hospital de Macedo, para saber exactamente o que se passava. Já me ligou do de Bragança (agora os doentes são obrigados a passear pelo IP4, que não é “nada” perigoso, para serem atendidos nas diversas valências de que precisam…) onde está de serviço o dr. Mourão (mas afinal quem a tratou foi o meu compadre e amigo dr. Afonso Ruano, nota a posteriori) que a vai tratar a, pelo menos, uma fractura da clavícula. O João, que ia a conduzir o automóvel, fez um curativozito e nada mais, por enquanto. Ao que parece, terão entrado na curva em excesso de velocidade e aquela curva não é para brincadeiras: o piso é em paralelo e eu mesmo já lá andei aos baldões mas sem consequências, há um ano ou dois atrás. E o que iam eles fazer hoje, num dia de chuva, naquela estrada? Pois iam a Limãos, onde andam a substituir o soalho da igreja e onde seria e será necessário inspeccionar o sub-pavimento, que está cheio de corpos enterrados, para averiguar do interesse arqueológico da questão.
Agora estou no sótão, vou corrigir testes, actualizar e-mails – e vou lá abaixo buscar uma cerveja!
Está vento, ouve-se sobre o telhado, em rajadas. Aguardo que me tragam cá a casa um cão, para tratar. Assim que tiver tudo resolvido volto aqui, para escrever. Até daqui a uns dias!

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O PEDIDO DE CASAMENTO


© Manuel Cardoso


Ensolarado e com calor, o doutor Carvalho subiu suavemente as escadas de cantaria da casa e disse a uma criada que o anunciasse ao senhor morgado. Vinha pedir a mão de uma das filhas de Sua Excelência. A conversa passava-se no salão grande e apanhava o morgado desprevenido.
- Oh, senhor doutor Carvalho, tenho que ouvir o que pensa a minha Josefa. Ó Josefa, ó Josefa!
Uma das criadas apareceu.
- O senhor morgado chamou?
- Chamei pela senhora. Onde está?
- A senhora foi só lá abaixo. Eu chamo-a já.
- Chama e diz-lhe que venha que está aqui o senhor doutor Carvalho. E arranja-nos aí qualquer coisa... o senhor doutor toma um chá frio com rodelas de limão? Talvez uma água acidulada... Eu também. Olha! Serve aí na sala de dentro que está mais fresco!
A Josefa chegou sem estranhar a presença do doutor apesar de ser a primeira vez que vinha ali a casa sem ser numa tarde de procissão e festa.
- Olhe, está aqui o senhor doutor Carvalho a pedir uma das nossas filhas para casar com o doutor Sousa.
- Qual delas?
- Ora, senhora D. Josefa, eu não me atrevo a escolher com qual das duas. Acredito que sendo ambas filhas e educadas por vossas excelências...
- Quanto a isso pode crer. E o meu marido? Que acha?
- Bem, eu, desde que a senhora esteja de acordo…
- Pois devo estar. E então, se tem que ser que seja com a mais velha, com a Cândida.
- Fico penhoradíssimo a vossas excelências!...
- Eu vou chamá-las.
Vieram como quem vem para fazer companhia ao chá e, depois dos cumprimentos e de se sentarem à mesa, a D.Josefa deu-lhes a novidade:
- O senhor doutor Sousa mandou fazer um pedido às meninas pelo senhor doutor Carvalho e o pai e eu achamos que seja a menina, Cândida. Vamos ter que pensar na resposta a dar... daqui a uns dias acertamos um prazo, senhor doutor Carvalho. Depois mandamos notícias.
Assim sem mais despediram o doutor Carvalho mas não sem antes este ter agradecido o chá com limão:
- Com este calor, sabe divinamente! Ainda por cima bebo-o como se fosse um brinde de bom augúrio ao futuro do meu querido amigo José e, evidentemente, da gentilíssima menina senhora dona Cândida!...
A Cândida nem piou durante o tempo todo. Apenas se exprimia com o olhar, surpreendidíssimo pelo inesperado.
- Ora, respondeu sacudida a D.Josefa, deixe-se dessas retóricas. Guardamos isso para um brinde a sério quando o José cá vier a casa... ele chama-se José Felizardo, não é?
- E se a senhora D.Josefa me permite, felizardo sê-lo-á mais ainda quando lhe der a boa nova...
- Não, não, doutor Carvalho! As novas dá-las-emos nós daqui a uns dias. Digamos que não dizemos que não. Aqui o senhor morgado e eu vamos acertar uns detalhes e depois mandamos recado.
Os detalhes demoraram bastante. O morgado escrevera a pedir notícias certas sobre o doutor Sousa e demais parentela. Recebera informações de Argemil e de S.Pedro de Padrela mas tardavam de Lisboa. Dizia-se que havia aí qualquer coisa e que o dr. Sousa até mudara de nome...
Tantas delongas enervavam o José Felizardo que, já desesperado, resolveu dirigir-se por escrito ao solar:

Ilustríssimo Senhor Morgado

Por intervenção do nosso amigo comum o Dr. Carvalho mandei pedir a V.Sª. a mão de sua filha mais velha por julgar que serei feliz realizando o meu casamento com ella.
Respondeu-me o medianeiro que V.Sª. annuía ao meu pedido; mas parece que tem havido defficuldades suscitadas depois dessa annuencia e que dahi tem resultado uma quase incerteza, da qual preciso sair.
Dão-se circunstâncias pelas quais necessito tomar com a maior brevidade uma resolução definitiva, e por isso nesta mesma data me dirijo ao nosso Revº. Abbade pedindo-lhe que me trate deste negocio com a seriedade que o caracteriso, e que me dê a resposta que preciso por toda esta semana sem falta. - No entanto entendi que me devia dirigir tambem a V.Sª. por este meio para lhe significar que me julgarei summamente feliz se V.Sª. me quizer dar a honra de entrar no número da sua família, e que muito desprazer sentirei se isso não chegar a realizar-se. Realize-se porem ou não, (o que, como já disse é necessario decidir no prazo indicado, ficando eu certo que no caso de se me não dar uma resposta é o mesmo que em nada se tivesse fallado ), digo faça-se ou não, eu sou e serei

De V.Sª.
Attº.D.or. e Ob.mo. Am.º e C.

Macedo, 17 de Julho de 1870

José Felizardo Rodrigues de Souza


O morgado releu a carta, pousou-a na mesa e ficou a pensar, olhando pela sacada as hortas onde uma data de gente se afadigava na rega, como iria poder apressar o assunto. De facto, o dr.Carvalho pedira uma das duas filhas em casamento. A Josefa sentenciou logo que seria a Cândida. O José soube-o logo, daí agora carregar na tecla. Porquê hesitar? Estavam esclarecidos os antecedentes do homem: um tio padre pagara-lhe os estudos em teologia e ele afinal apareceu bacharel em direito. Foi esperto. O país precisava mais de advogados, que tinha a menos, do que de padres, que tinha a mais. Mesmo as vozes sobre Lisboa, soubera-se: mudara de nome ao fazer o Crisma: chamava-se Felizardo José e passara a chamar-se José Felizardo. Modas.
Ainda antes da ceia falou no assunto à senhora.
- Temos que dar uma resposta, Josefa. Disse que era a Cândida, será a Cândida. Porquê agora tentar que seja a Ana Maria?
- Se o meu marido pensa assim, pois que seja. Chama-se o senhor Reitor e ele que venha cá com o advogado.
E vieram. Encontraram-se no salão grande da entrada os Morgados, o Senhor Abade, Reitor de Macedo e irmão dela e os drs., o José e o Carvalho. Em cima da mesa do centro, sobre uma salva de prata, estavam uma garrafa de cristal em balão e um velho cálice de vidro grosso da fábrica do Rato. Conversas feitas, o Morgado encheu o cálice de aguardente:
- Pois que então seja à saúde da nossa filha e do senhor doutor que lhe vai ser o marido!
Deu um golo e estendeu-o à D.Josefa. A seguir foi cheio de novo e desta vez foi o Abade Tomás Aquino a fazer a saúde. Bebeu em dois tragos. Cheio outra vez, coube ao pretendente fazer um agradecimento e saudar os donos da casa e a menina Cândida.


Tiveram um casamento feliz mas com um desfecho trágico. Ainda hoje existe o cálice do pedido, preciosamente guardado no armário dos vidros da sala de jantar. Na foto, o casal em 1872.

domingo, 4 de novembro de 2007

Latães

©Manuel Cardoso

A aldeia é pequena mas tem um nome erudito. Virá de “latanes”, em latim, aquilo que está escondido.

Já foi há uns anos. Manhã de novena de bofarra (diz-se por aqui que a bofarra, o nevoeiro, quando vem com o frio do inverno, dura uma novena!), tinha ido à aldeia tratar de um animal qualquer. Não me lembro qual, porque o que se passou a seguir apagou-me essa memória. Nesse tempo, eu deslocava-me de jeep nas deambulações pelas aldeias, um UMM Alter II cheio de audácia, capaz de façanhas de que tenho saudades. Como tivesse que seguir para Corujas, aldeia vizinha, e por alcatrão fosse uma grande volta, perguntei como poderia atravessar pela serra, poupando caminho. Lá me explicaram. Mas, ou porque não visse a derivação com a bruma, de tão densa que estava, ou porque me parecesse mais batido o caminho que subia – quer-me parecer hoje que uma providência feliz, de qual trasgo benfazejo!, me dirigiu então – fui seguindo por umas rodeiras, no meio de giestas, que em breve esmoreceram a pista e se apagaram. Contudo, a luz estava mais forte no meio do cinzentão do dia e eu segui, sempre a subir, tombando as plantas com uma aceleração a baixa velocidade, explorando o terreno.
De repente, momento de revelação e plenitude!, dissipou-se a névoa e fiquei num alto, luminoso e fantástico!
Um mar de nevoeiro estendia-se sob um sol brilhante, céu azul puro, serras ao longe, quilómetros e quilómetros ao longe!, como se fossem ilhas: Bornes, Santa Comba, Marão, Alvão e Padrela; de Espanha, S. Mamede, os Montes de León com La Cabrera – a nossa Sanábria – escondidos atrás da Nogueira. Tudo nítido, numa nitidez absoluta. Parei o jeep. Saí.
Ar frio. Luz, uma luz intensa, uma luz imensa. Entre mim e as serras, o nevoeiro, branco, fantasticamente branco e a mover-se, como num filme. Uma imensidão mesmo. Só, ali, numa nesga de espaço, terreno breve de restolhada de centeio, um carvalho e um sobreiro a pontificar neste ponto mais alto da Serra de Ala, Alturas de Latães, como confidentes de um episódio que era partilhado comigo. Uma emoção tão grande como a paisagem. Tudo inesperado. Porquê naquele dia e ali só eu entre a terra e o céu? Talvez do frio que corria numa aragem cheia de emoção, limpei duas lágrimas. Que lugar tão bom para fazer uma casa!
Passaram-se anos.
Vivíamos na baixa de Macedo, no rés-do-chão da casa de família, lugar aconchegado mas a antítese: pouca luz, horizonte a morrer logo a metros, no muro do quintal e nos telhados do velho palheiro e na antipatia dos telhados dos vizinhos.
Numa ida à Escócia, lugar maravilhoso que para sempre me ficará memorável, tinha podido recordar-me vezes sem conta daquele meu episódio trasmontano. Havia muitos cenários parecidos, era quase o mesmo que Latães mas com castelos! Semanas depois de regressarmos, como sequela de um estiranço em Aberdeen em que andámos quase oito quilómetros a pé para descobrir onde ficava a velha catedral e a visitar, a Mariana adoeceu com uma pneumonia. Que se veio a transformar numa pneumonia de repetição. O médico aconselhou apanhar sol, muito sol. Lembrei-me então das fragilidades dos pulmões dos gémeos prematuros, da necessidade do sol, senti vontade de mudarmos de casa. Lembrei-me do terreno de Latães.
Para aqui viemos. Construir a casa foi o cumprimento de um desígnio. Pagá-la-ei ao longo da vida. Um fardo que terei para sempre? Talvez antes um sonho que viverei para sempre, um sonho que começou na manhã em que atravessei de jeep de Latães para Corujas pela primeira vez.
Tem estado soberbo o horizonte, este Outono. Vê-se tudo até ao fundo, como dessa vez. Ainda hoje estive a ver o pôr-do-sol, alguns aviões a riscar o céu – que a essa hora fica tingido de um violeta que só aqui! – e a respirar fundo. Os tons estão verdes, demasiado verdes ainda, folhas que teimam em não cair e de amarelos atrasados. Há mesmo algumas flores! Estarei a viver do lado de lá / de cá do espelho?????

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O VINHO DAS ARCAS

© Manuel Cardoso

Nas noites de inverno nas aldeias da Terra Fria de Trás-os-Montes, desde tempos imemoriais que se afugenta o gelo com um copo de um vinho excelente que acalenta a mais necessitada das almas. É um vinho que surpreende. Um forasteiro desprevenido, dado o primeiro golo e sentido o sabor forte e aromático, imediatamente é assaltado por uma dúvida evidente: se nestas aldeias altas e frias as vinhas não passam de pequeníssimas manchas nalguma encosta mais soalheira e mal dão uns cachos de uva miúda e agridoce na maioria dos anos, como é possível um vinho destes, graduado, rescendente? “Comprado!”. Mas o dono da casa exprime, orgulhoso:
- Esse foi pisado na nossa casa!
- Ah, tem vinhas...
- Não, não. Compramos as uvas.
Ainda hoje, nas aldeias da Serra de Nogueira se mantém este costume de comprar as uvas lá em baixo, em zonas da Terra Quente, e trazê-las para cima para fazer o vinho.

Ora, conta uma lenda antiga que, certa vez, levado um pipo com as primícias desse ano para Braga, ao Arcebispo, então senhor destas terras do leste do seu território, este terá perguntado:
- De onde são as uvas que tão bom vinho dão?
- De Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!

Esta história é curiosa não só por enaltecer as qualidades das uvas de que falamos mas porque delimita uma área geográfica que corresponde ao que foi o extinto e velhíssimo concelho de Nozelos e que hoje está repartido pelas três freguesias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão. Os terrenos destas três evoluem em encostas abruptas sobre o rio de Macedo e a ribeira de Ferreira, sendo que ambos confluem no vale de Nozelos e que constituem um microclima onde amadurecem as uvas que tão bom vinho dão.

São antiquíssimas as referências ao néctar deste lugar. Já o foral de Agrochão, dado por D.Dinis em 5 de Julho de 1288, manda cobrar como imposto a quarta parte do vinho, medido pela medida de Nozelos. Mais tarde, D.João II, doa a João Teixeira de Macedo, alcaide mor de Montalegre, a 30 de Maio de 1484, as rendas de pão, vinho e aves da terra de Macedo e Nozelos com as aldeias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão.

Ora, no centro da área deste antigo concelho de Nozelos há um planalto breve que tem a extensão necessária para nele se esticar uma aldeia ao sol, a meio da qual se ergue, orgulhoso, o Solar das Arcas, dos Pessanhas. Orgulhoso de quê? Se mais não tivesse de quê, bastar-lhe-ia o vinho, o tal bom vinho que as uvas dão!

O microclima das Arcas fica entre duas regiões vinícolas célebres: o Douro e Vinhais. Se da primeira é supérfluo qualquer comentário, da segunda há que dizer algo. O nome já diz ser terra de vinhedos, vinhal, vinhais. Tradicionalmente, desde o Império Romano segundo alguns autores, foi essa a sua riqueza e, durante séculos, forneceu a zona interior e meridional da Galiza de vinho acabado e mandava aguardente para o Douro e para o Porto. Um geógrafo espanhol, Mendez da Silva, escrevia no tempo da União Ibérica: “es un valle de muchas viñas, donde se origina el nombre”. Um outro doutor coevo, Francisco de Monçon, que, sendo madrileno, viveu na corte de Portugal durante o século XVI, dizia que os portugueses se podiam gabar de ter vinhos que competiam com Alemães e Flamengos e cuja qualidade os suplantava mesmo, nomeadamente os de “Vinhais e outros”.

As crises do oídio e da filoxera arruinaram as vinhas desta região e, ao contrário das do Douro, nunca mais se recompuseram totalmente e perderam as posições de mercado. Estes vinhedos eram paredes-meias com os das Arcas e hoje, debruçados sobre o mapa, não sabemos bem se estas eram uma continuação daqueles e uma sua sobrevivência ou um prenúncio do Douro a cuja sorte viriam a estar ligados.

O solar das Arcas teve uma garrafeira fabulosa. Foi constituída e apurada ao longo do século XIX por Manuel de Almeida Pessanha, grande lavrador, viajado em França e introdutor de inovações, Governador Civil de Bragança e Par do Reino, e mais tarde continuada pelo seu genro, Francisco de Assis Pereira do Lago, Visconde das Arcas. Sucessivas partilhas e outros descaminhos foram-na minguando à formiga. Restam hoje algumas raras garrafas, das anteriores às crises do oídio e da filoxera que dizimaram as antigas cepas. O autor destas linhas pode orgulhar-se de, numa tarde, há uma trintena de anos, no jardim solarengo dos Cortiços, ter provado, apreciado e ouvido uma explicação com devoção sentida, de um vinho seco, decantado e arejado de uma garrafa fosca, colada com um rótulo de uma cercadura azul e manchado, muito manchado e bolorento mas onde se distinguia perfeitamente numa caligrafia castanha escrita à pena: ARCAS 1832 !

A crise do oídio que começou em meados do século XIX deu uma machadada grave nos vetustos vinhedos nacionais mas não fez esmorecer a energia empreendedora da casa das Arcas que leva a fama dos seus produtos até Lisboa a tal ponto que Garcia de Lima, na sessão da Câmara de Deputados de 8 de Junho de 1863, afirma que os vinhos brancos das Arcas são tão bons como os do Douro. Nas Cortes bebia-se vinho das Arcas. Na década seguinte esta fama é justamente reconhecida além fronteiras e, mesmo para lá do Atlântico, os vinhos são premiados nos Estados Unidos da América no concurso internacional de Filadélfia em 1876.

A filoxera devastou todo o país a partir da década de oitenta mas foi num ápice que o Visconde, perspicaz a prever a situação e conhecedor dos métodos modernos de cultivo, fez reconverter as vinhas, possibilitando mesmo que, durante anos, todo o termo das Arcas estivesse integrado na região produtora de mostos de vinho do Porto. Replantou e soube manter os adagues ao abrigo das pragas. Não houve mortórios desolados no termo das Arcas!

E hoje, ao percorrer-se este canto de Trás-os-Montes em que a paisagem apresenta extensões de abandono recente, de incêndios revoltantes ou de matos silvestres onde crescem a preguiça e a crise económica, deparamos com um pequeno microclima de vistas insólitas, matas ordenadas ao pé de vinhedos lavrados, encostas abruptas trabalhadas com teimosia, gentes cavando um chão avaro mas que lhes dá, não o sustento porque agora já se não vive disso, mas um orgulho especial, orgulho que ali foi plantado imemorialmente, apurado pelos Pessanhas e que se materializa no tal vinho surpreendente, de aroma forte e agradável e que inevitavelmente coloca na boca de quem o beba:

- De onde são as uvas que tão bons vinhos dão?
- Das Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!


Bibliografia:
1.Alves, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança.
2.Pires, Armando Valfredo, O Concelho de Macedo de Cavaleiros.
3.Oliveira, Artur Águedo de, O surpreendente testemunho do Doctor Francisco de Monçon 1544
4.Costa, António Luís Pinto da, A questão do Alto Douro e a exportação de Vinhos do Porto (1865-1909) in Brigantia vol.X nº3
5.Ilustração Portuguesa
6.Gazeta das Aldeias

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O rapto da Tia Dores

© Manuel Cardoso

(As cenas passaram-se com o século XIX já a bem mais de meio.)

Uma manhã de caça a salto e extraviada arrastou o José Manuel desde Alvites até ao Brinço. As perdizes tinham saído de feição, tal como o compadre as prometera, a esvoaçar nas restolhadas, à frente do focinho dos perdigueiros. Parecia que adivinhavam o caminho. Uma vez aqui, outra vez ali, o bando passava sobre os freixos do ribeiro, atravessava o valezito para além, subia pela encosta a desaparecer nos adagues de uma vinha amarela.
- Ó compadre, de quem é esta vinha?
- Isto já é do casal do senhor Abade...
- Então tem um grande casal!
- Grande?! Tem muitas terras aqui, olivais em Alvites, em Vilarinho do Monte, em Vale de Lagoa e na Açoreira, sortes no Vimieiro e na Carrapatinha, lameiros em Ala e em Meles...
- Caramba!
- Tanto como ele só o casal grande, de Ala! O lagar do Brinço só para a casa trabalha ao mês!
Um tiro, logo mais outro, ele mesmo descarregou a espingarda. Com o segundo caiu uma, das do bando mais próximo. Duas tinham ficado mais longe, os cães farejavam-nas numas silvas encostadas a um muro alto. Era o muro da Tapada, uma propriedade dos Lopes obrigatoriamente disputada em partilhas e onde um rebanho pastava os galhos de uma fila de amendoeiras podadas para dar a folha aos animais. Um dos perdigueiros trouxe mais uma perdiz. O José Manuel levava já um cinto bem composto, uma meia dúzia delas e uma lebre que lhe tinha saltado quando saíra duma leira pousada e entrara numa restolha. Estava feita a manhã.
Entraram no Brinço com garbo. O pequeno grupo dava nas vistas: ele com botas e chapéu suíço, calças à montador e cartucheira de cabedal engraxado onde reluziam as fivelas polidas e as cápsulas de latão dos cartuchos St.Étienne, o compadre com o seu chapéu da América, uma das abas revirada, camisa branca de folhos com o colete de caça e cartucheira à bandoleira, como no tempo dos Cabrais em que se bandeava com os Pessanhas. Dois moços, colete lavado e camisas de manga enfonada, levavam-lhes as espingardas e cuidavam dos cães, cauda espetada e focinho à procura das cadelas da terra.
A aldeia preguiçava numa manhã serena. Não se via ninguém. As casas de xisto sombrio e telhas ferrugem permaneciam mudas e quedas. Apenas se ouvia o chiar longínquo de uns carros de bois. Foram andando e deram a volta defronte da Casa do Passadiço, como quem não quer a coisa. Nada. As janelas estavam abertas mas nem uma renda buliu. Estranho. A menina estava avisada. Ele mandara um bilhete, tinha sido claríssimo a combinar aquele encontro casual...
- O compadre tem a certeza...
- Absoluta!
Na rua à esquerda da Igreja estava, ao fundo, a fachada caiada da casa dos senhores e, mais perto, a casa ocre da taberna do Chico com a sua varanda de madeira pintada de zarcão com linhaça. Encaminharam-se para lá. De umas pipas lavadas de fresco, que secavam à sombra de um chorão, espairava-se um cheiro meio a mosto e meio a vinho vinagre.
- Chico, ó Chico!
- Lá vai! – ouviu-se uma voz a vir dos fundos e logo acudiu, a limpar as mãos a um pano, olhar semicerrado de vir para a claridade.
- Olha! Mas é o compadre Zé e o menino Zé Manuel!? Ena, e trazem cá uns cintos!
- Já vimos desde Alvites! Era para ficarmos por lá mas atrás de um bando fomo-nos chegando para aqui...
- E chegam-se muito bem! Eu já os atendo. Rebentou-se-me para ali uma pipa e tenho andado nestes trabalhos mas já os atendo... ó Maria! Ó Maria!
Ouviu-se um “que é l’á?” sumido.
- Anda cá e põe ali um pano naquela mesa. É só um instante, amigos. Isto num esfregante fica tudo nos trinques!
- Tenha calma, homem, temos tempo.
- Não se vê ninguém na aldeia... estão todos a dormir?
- Estão para Meles. Há lá um enterro, da Ti Antónia, já velhinha, e como ainda tem por aí uns primos e parentes, lá foram. Os carros ainda saíram há pouco.
- Então, e foram todos, foi toda a gente?
O Chico hesitou por momentos na resposta.
- Nem todos foram para o enterro, está bem de ver. Daí da casa nem foi ninguém… da do Passadiço também não foram, quero dizer, o senhor Padre foi, tinha de ir para os ofícios, mas o pessoal ficou por aí, a casa até está aberta…
- Então, e a menina Maria das Dores? Ficou cá?
- Eu disso não sei bem, quero dizer, sei que não está cá.
- Ai não está cá?
- Não está.
- Então, onde está?
- Então, compadre Zé, diga-me cá: não foi só pelas perdizes que voam que vieram até aqui! Sempre é verdade o que se diz pela terra. Aqui o menino Zé Manuel é que quer fazer de perdigão... e logo à menina Maria das Dores!
- Ó menino! O que vai arranjar! – ouviu-se a voz da Maria, atentíssima à conversa e incapaz de suster o desabafo.
- Cala-te, mulher! Que é que tens com isso? O menino não leve a mal... as mulheres gostam sempre de meter a colherada. Mas diga-me: é sério? O senhor Morgado e a sua mãezinha, a senhora dona Josefa, dão licença? Que eu não tenho nada que ver...
A mulher entrou outra vez na conversa:
- O senhor Abade ainda vai consentir, vai ver. Ora, famílias tão ilustres...
- Então, se a menina Maria das Dores não está... então está aonde?
- Bem, saíram logo cedo. Parece que foram pô-la em Fornos, nas Oblatas. Diz que é para estudar, para aprender...
Nas freiras! Tinham-na ido por nas freiras e logo em Fornos de Ledra, aldeia pedregosa e pobre, longe de tudo! Estudar, estudar! Para isso que a pusessem em Braga ou no Porto! Agora ali, sumida na tacanhez poeirenta de uma aldeola, de umas paredes de pedra com janelas sem vistas para lado nenhum que não fossem mais pedras e umas oliveiras que se espremiam a custo para dar um azeite turvo!



O Abade de Ala era fulminante nos discursos. E intolerante nas opiniões. Arrebatava um mundo numa hora de pregação – e não se comovia nem pestanejava pelos que não convencia. Gostava de ter por perto os que com ele concordavam e os outros, os irreconciliáveis, ficavam-lhe para sempre na mira de um ajuste de contas político. Gabava-se de ser um homem de corpo inteiro e, por isso, a Maria das Dores nunca lhe constituíu um estorvo: era a filha que seria sua herdeira. E que herdeira! Mas logo havia de se ter embeiçado por aquele fidalgote de Macedo, o filho do Morgado! Que lhe diziam dele? Caçava, ia pelas feiras com o pai, passava os dias a ler... ainda se lhe desse para estudar! Mas diziam-lhe que só lia escritores! Poesias e romances! Ainda por cima nunca seria morgado: o Mousinho acabara-lhes com o privilégio. Que ele lá tinha uns cabedais, os pais acautelaram-lhe as libras e fizeram-lhe uma casa grande ao lado do solar, para rendimento... Mas não! Quando os anos passassem tudo iria sumido no tempo gasto em livros, no desleixo e nas viagens de folga ao Douro e a Chaves, nas ervas a crescer e a afogar olivais e prados.
“A menina que faça as malas!” - Ia estudar que bem precisava, depois dava-lhe um dote e que procuraria poiso com alguém mais conforme.
- Oh, Padrinho, se calhar quer-me casar com algum viúvo já de cabelos brancos!
- E se fosse? Pelo menos era alguém que eu já lhe conhecia a vida, não era como esse, esse...
- Que é que ele tem? Ideias políticas diferentes... vive noutra época, só isso.
- Só isso?! Só isso?! Começa logo porque é mais novo! Sim, um miúdo!...
- Ora, Pai! A mãe dele é mais velha catorze anos que o pai dele!
- Hmmm!



(As Oblatas de Fornos de Ledra eram uma casa que começara para ser grande, raízes esticadas a beber bom húmus em pleno tempo de D.Miguel, mas a que as vicissitudes dos anos seguintes, em que preponderara o anticlericalismo violento sinuoso do século dezanove, estiolaram a prossecussão do objectivo. O convento, como lhe chamava o povo, foi-se aguentando com algumas internas 'filhas-família' de fidalgotes sovinas ou com menos rendas para as mandar para Braga ou para o Porto, e tirava partido de se encontrar no meio de um deserto cultural imenso já que outras casas religiosas das imediações iam já extintas na voragem liberal. Passava-lhe perto uma antiga estrada romana e que agora era a estrada real da Torre para Bragança. O convento desapareceu com os alvores da república. Ficou um edifício de granito, grande para a aldeia em que as casas são tão acanhadas como era a visão do mundo das gentes, com uma igreja de paredes meias e um jardim onde cresciam ervas medicinais e aromáticas. Deram-lhe o destino de servir de palheiro e nesta condição albergou uns republicanos 'rojos' fugidos das falanges na guerra de Espanha, na segunda metade da década de trinta do século vinte. Um descuido destes inflamou a palha e o feno lá guardado e o edifício ficou reduzido às paredes num incêndio memorável. Depois disso ainda lhe puseram um telhado... e agora no interior vivem umas pessoas e criam-se porcos!)

 
No tempo da tia Dores ainda o convento era das Oblatas e foram elas quem lhe ensinaram o que as meninas aprendiam: umas letras, umas contas, uns bordados e pinturas. Ensinavam também como lidar com os homens: ser submissas para poder mandar neles. Daí que, quando o Zé Manuel lhe apareceu com o plano mirabolante de fugir do convento e lho explicou detalhe a detalhe, ela tenha concordado logo. Só não entendia aquela necessidade de se esconderem durante umas horas debaixo da ponte de pedra dos Vilares.
- Então?! É para ser como no Alexandre Dumas!
- Ah!, pronto, está bem, está bem, como o Zé Manuel achar melhor!...
Esta troca breve de palavras foi num assomo rápido à porta da capela numa visita que ele veio fazer. Tinha tudo previsto. Estava tudo acertado. Até a Madre Superiora, prevenida por um bilhetinho a embrulhar uma meia libra para as intenções do convento que lhe mandara a D.Josefa, mãe do José Manuel, tinha concordado em só mandar fazer uma busca a cavalo e mandar notícias para o Brinço duas horas depois do fim da missa. Os fidalgos de Mascarenhas tinham concordado em recebê-los lá e em ficar com a Maria das Dores até se aplacar a fúria com que o Abade receberia o aviso. O compadre viria até Fornos com a égua ruça à arreata a acompanhar as meninas de Lamalonga que vinham à missa e, à saída, trariam com elas a Maria das Dores. Não daria nas vistas. Eram conhecidas e amigas. Na estrada de Vila Nova é que se apartariam. Aí estaria ele à espera. Depois seguiriam para Mascarenhas a galope. Teriam que parar na ponte dos Vilares.
E pararam. À espera deles estava um moço que tinha chegado, havia nada, da taberna dos Vilares.
- Então?
- Estavam lá, sim, iam sair depois de mim. Mas não trazem pressa. Os cavalos já vêm cansados e devem só vir a trote e devagar.
Esconderam-se debaixo de um dos arcos, os cavalos tinham-nos posto a pastar num lameiro mais abaixo, tapado por uma volta do renque de freixos e choupos do rio. Sentiram o trote das montadas a passar. Eram três. O Abade mandara os seus três criados a bater a estrada menos provável. Que não lhe restava senão aceitar os factos. Na véspera, ainda recebera uma inesperada carta dos Morgados de Macedo, a pô-lo ao corrente que o filho tinha intenções de casar com a Maria das Dores e que ambos tinham para isso a sua bênção, que ela para todos os efeitos passaria a ser sua filha.
O som das ferraduras foi esmorecendo. Saíram debaixo da ponte, curiosos e muito excitados com tudo aquilo. Perscrutaram a estrada para ambos os lados. Nem vivalma! Foi ela quem falou:
- Então, José Manuel?
- Viu isto? Viu isto? Tal como eu previ! Tal como no Alexandre Dumas!

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Pulseira de Prata

© Manuel Cardoso

Quando foi preciso reparar o fecho do cordão de ouro e os brincos de esmeralda da D.Josefa, o senhor morgado, Bernardino José, aproveitou a boleia e comprou no ourives uma pulseira de prata de dois aros torcidos para uma das suas favoritas de travesseiro, a Custódia do Vilar.
Ofereceu-lha numa noite especial para aplacar os cuidados e medos em que ela andava porque sabia que o seu irmão, de maus bigodes para aquele romance, apregoara na praça que, na próxima vez que o morgado fosse lá a casa, lhe daria a ele desanda tamanha que a D.Josefa demoraria uns mêses para lhe consertar os ossos.
E com efeito, nessa noite, em casa da Custódia, ainda mal aquecido o colchão, ouviu-se um burburinho nas escadas da varanda. Ela começou com lamúrias baixinho mas ele, espadaúdo de ombros e mais ainda de alma, levantou-se, vestiu-se, ajeitou o coldre do St. Étienne para o ter à mão, pôs o chapéu de abas e apertou calmamente os alamares de prata do vasto capote de saragoça. Desenfiou do bolso a sua navalha de lâmina de Toledo. Ela benzeu-se. Ele abriu a porta.
Uma dúzia de homens dispunha-se escada abaixo, vultos contra a parede, degraus de granito de esfrega clareando com o luar. Ficaram-se todos por um silêncio que tudo dizia e o morgado desceu os degraus um a um, lâmina refulgente a fingir que limpava as unhas, cotovelos para os lados a avolumar mais o capote. Já no último degrau, com um assobio, chamou o moço que, num palheiro adiante, lhe guardava o cavalo. Dobrou a navalha, enfiou-a no bolso e, num garbo que lhe era reconhecido:
- Senhores, boa noute vos dê Deus!
Atarantados, enrolaram umas “boas noutes senhor morgado” que não saíram em uníssono. E toda a raiva que os juntara ali ficou esvaída em respeito, um respeito atávico resumido naquelas palavras.
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A D.Josefa não tinha ciúmes. Depois de lhe dar quatro filhos voltara-se para ele e dissera-lhe que já chegava, que estava cumprida a sua parte. Enfiara-se na alcova da sala pequena e não mais lhe visitou o quarto, um quarto enorme e frio de tecto lavrado e de paredes forradas com telas largas e graves de santos. Ele respeitou-lhe a vontade e obedeceu-lhe mais como filho que aceita do que como marido que compreende. Mais novo catorze anos do que ela, era-lhe difícil contrariar a senhora que o levara ao altar com um dote de truz. Ainda por cima cheia de força apesar de seca e pequena, e de capacidades, ou não herdara do tio, Abade de Medrões, confessor privado dos Marqueses de Fronteira, uma inteligência de assombro? Era ela quem administrava a casa, contratava e despedia, decretava ordens aos caseiros das quintas mais longe, recebia rendas das aldeias onde tinham foros, negociava as madeiras e os animais, cobrava os juros das letras de empréstimos, executava a liquidação destes nos casos arrastados e insolúveis. Ela fazia tudo.
De forma que a ele sobrava-lhe tempo. Para ir às feiras e arraiais, à caça e às visitas aos amigos, que tinha muitos – e às saias, que tinha algumas. Mas guardava à sua Josefa um grande respeito e, até, afeição. No bolso do colete trazia sempre um medalhão forrado de veludo, dentro do qual se estampava a figura magestática da sua Josefa. Trazia-a sempre junto ao peito como uma raridade extravagante e todas as outras lhe tinham admirado já o passe-partout que se abria e que, no centro de uma cercadura de bronze, tinha o daguerreotipo da fidalga pintado com um vestido de seda, brincos de ouro e olhar de Miranda.
A par dessa aparente tolerância em matéria de raparigas, ela tinha-lhe definido claramente duas ou três linhas de intransigência: nada de se meter com casadas; nada de jogatinas ou bebedeiras de perder o tino; nada de jóias para as amantes. Com o seu nariz de feitio administrador, sobretudo este último ponto lhe era importante já que “a desforrar-se de capital, que o desforre na família. Prata, ouro e jóias, só cá para dentro, para poder ser herdado – se for para o resto, perde-se e diminui-nos!”.
Levavam assim uma vida de harmonia, ele deixando-a mandar e ela aturando-lhe as aventuras e as manias – que tinha algumas. Fidalgo desde sempre, afinara um bom sentido para a mesa e tinha um paladar apurado. Ela era intransigente em matéria de contas – ele era-o nos cozinhados.
Um dia, sentado à mesa, chega-se-lhe uma travessa de ervilhas. Espetou o garfo. Saltaram para um lado e para o outro.
- Ah, não estão cozidas! Então hoje temos balas! – disse, mais alto de modos a que se ouvisse na cozinha.
Pegou na travessa, atirou-as ao chão fazendo logo correr os seus galgos de caça a farejar o chouriço.
Com estas, a D.Josefa deitava as mãos à cabeça. Porque não queria que o marido tivesse queixas de casa. Queria-o bem vestido, bem alimentado, bem contente. Era, por isso, um drama quando havia reclamações de cozinha e ela logo avançava corredor adiante a dar descomposturas e a provar das panelas não fosse a cena repetir-se.
“Olha lá, Efigénia, cozeste as batatas com a cebola lá dentro como gosta o senhor morgado? Uma cebola para três batatas? Ouve lá, Ricardina, o caldo do senhor morgado foi mexido com a colher de prata?”, pormenores que ele notava.
Então este da colher de prata era um mistério e um superlativo que fizera fama e sobre o qual havia, até, apostas. Em casa dos Sarmentos ele provara de dois caldos verdes e logo afirmara, sem margem para dúvidas, qual é que tinha sido mexido com a colher de pau e qual é que tinha sido mexido com uma colher de prata.
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Depois de uma ausência para a feira de Chacim, chegado ao solar num fim de tarde, foi informado por um dos criados que a senhora saíra, levara a égua branca e fora também o menino José Manuel no Riscão. Tinham ido ao Vilar. Tinha vindo recado a dizer que morrera a Custódia. O senhor morgado sentiu um súbito calor.
- Morreu a Custódia!? E que foi lá a fazer a senhora?
- Não sei, senhor morgado.
Em casa também não sabiam. Só havia recado que pela noitinha a senhora estaria de volta. E esteve, o tempo de ele fazer um semicúpio e mudar de roupa.
- Então, Josefa, que foi a senhora fazer ao Vilar?
- Apresentar pêsames e contribuir para o enterro.
- E para isso não estão lá os nossos primos?
- Estão mas não estão para tudo. A coitada morreu, o resto já não interessa. Vou ver como estão as coisas pela cozinha.
Ele percebeu a não-conversa. Deixou-a ir. Falariam mais tarde sobre a morte da Custódia.
Na cozinha era tanta a azáfama como a fumarada.
- Clementina, já começaram com o caldo? Hoje mexe-lo com a colher de pau, a queimada.
- O senhor morgado hoje não ceia, senhora?
- Ceia, ceia... ceia e bem!
- Mas vosselência...
- Mas que é isto? Fazes porque eu mando e pronto. E sou eu que lho sirvo, ouviste?
- Sim, senhora.
Ao estar pronto, tirada a tampa da panela de tripé a fumegar, foi a fidalga quem se ocupou de o lançar no prato.
O morgado começou a comer o caldo pelas bordas, escaldava. Sorveu e ficou pensativo. Havia ali qualquer coisa... provou outra vez. Havia ali um travo a madeira... mas não. O gosto não era o de sempre mas era impreciso o defeito, não lhe parecia ter faltado a colher de prata. Talvez de estar tão quente. Pousou a colher. Todos achavam que sim, que estava muito quente. Esfarelou uns miolos de pão para arrefecer. Recomeçou a comer. Topou qualquer coisa no fundo, sob as couves.
A D.Josefa, em pé ao lado dele, aguardava.
Com a colher tacteou melhor e levantou, surpreendido e boquiaberto, envolvida nos fios das couves, uma pulseira de prata de dois aros torcidos.