quarta-feira, 25 de junho de 2008
quinta-feira, 29 de maio de 2008
EMÍLIA
Em 11 de Dezembro de 1917 nasceu em Coimbra, primeira filha de um militar de carreira cujo casamento seria em rotura com toda a família dele e que o isolou. Nasceu quase escondida, na Messe de Oficiais do Convento de Santa Clara. Os isolou: a si e a todos os filhos que vieram a ser os irmãos da Emília.
Estudou nessa cidade e em Lisboa, onde frequentou o liceu e teve uma formação republicana, do tipo bandeirinha na mão aquando da inauguração da estátua do Marquês, tendo sido companheira e amiga das filhas do Afonso Costa. Indo à Versailles e ao Jardim da Estrela, passeando na Baixa. Educação laica que lhe dizia que os seres vivos, como as pessoas, nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Imortalidade, só a da escala humana, a dos nomes nas lombadas dos livros, nas letras das canções e nas placas das ruas.
Os anos trinta foram o seu turning-point: essas amigas de infância e juventude abandonaram Portugal, morreu a sua mãe, teve de sair de casa (onde tomava conta dos irmãos) para ir para o Sanatório da Guarda com a sua irmã Aida, ambas em tratamento de tuberculose, onde se apaixona por um homem onze anos mais velho e clinicamente considerado um caso sem retorno. Respirou liberdade de obrigações e medos, brevemente, mas com a sensação de que o mundo ia acabar ali e agora, que tudo valia e que seria o fim de dificuldades e pontos negros - é talvez o melhor resumo desta sua fase, com o pano de fundo da guerra, das restrições impostas, do cenário sombrio na casa paterna, da desesperança instalada. Que é também o momento em que, com surpresa e graças a um tratamento inovador vindo de Itália, se cura o homem que ama, com quem casa, e que lhe sorri, por breves momentos, o bem-estar material.
Religião? Até ali nem por isso, só com lógica, muitos argumentos ouvidos, estudados e vezes sem conta desmontados, teimosia de repelir e não aceitar o diferente, o incompreendido por natureza. Primeiro vieram os ritos e a necessidade aflita, contra a parede que aparece à frente, sempre a dúvida de que seja só a parede e nada mais para além dela. Depois vieram aquelas coincidências e partidas da vida aqui e ali, a paz de Fátima, sinais a que prestou atenção e que submeteu à mesma lógica aprendida no liceu, com o pai, com as amigas. A fé só veio depois, uma fé violenta, algo intolerante, de obrigações sentidas, sacrifícios desejados e de imposição aos outros – recuperar tempo perdido?
A partir de então, aceitou o seu futuro como uma aventura, viveu-o como numa ficção, um passeio em que se misturou o pão de cada dia com a desilusão do inatingível, o quase desespero de ver uma dificuldade que um demónio lhe fazia surgir de cada vez que um anjo lhe retirava da frente uma outra dificuldade resolvida, sempre com espaço para o misticismo, cada vez com mais espaço para o misticismo.
Teve os filhos com as alegrias e as tristezas que os filhos dão mas como se, estranha coisa!, os mesmos filhos o fossem mais do pai do que seus.
Conforme os anos foram passando, a vida foi-a privando de tudo o que, só na aparência, lhe fora dado então. Até a privou da realização dos seus sonhos. Foi deixando ficar pedaços dos sentimentos vividos, como testemunho ou como militância, em versos e contos escritos, alguns verdadeiros sobressaltos amargos ou em fases mais serenas, quase todos publicados, escritora quase ignorada mas nem por isso menor. Muitos foram escritos como se de orações se tratasse, olhos nas frases, coração em Deus. Todos os dias a persistência de procurar na Fé o conforto e esperança dos problemas e dificuldades. Anos seguidos. Começou a morrer com a morte súbita do seu companheiro de quatro décadas, trinta e um anos antes de si. Desde esse dia, nos anos setenta, que a vi estender as mãos a agarrar-se à velha parede mas a deixar-se escorregar para o fundo, a querer não ser uma sobrevivência anacrónica. Nunca mais deixou de se colocar à beira do precipício – não a querer saltar mas a querer que o precipício a puxasse, qual abissus abissum, a levasse para onde um dia tivera a certeza de que tudo era um nada e agora tinha a certeza de que afinal era tudo. Mesmo tudo, que nada valia o resto.
Demorou, como se a essa demora fosse obrigada como expiação ou um preço a pagar para se chegar lá. Mas porque não vem a morte e me leva, porque estou aqui onde o meu interesse não mora? Porque não era só da morte de que estava à espera mas dessa outra vida, a que rezara, a que pedira, aquela em nome da qual suportara esta vida – vida? : o amargo fardo da vida, que não há coisa mais amarga do que suportar anos sem fim a desilusão e a tristeza!
Morreu no dia 17. Foi a última dos irmãos a morrer. Está, neste momento, finalmente, do lado de lá da parede, na imortalidade que a Fé lhe deu. E que ela viu. Foi por isso que, apesar do sofrimento dos seus últimos tempos, fez um sorriso ao fechar os olhos. Um sorriso que já não era para nós mas o primeiro de quem quer que chega a qualquer lado. Adeus Emília, adeus Mãe! Até que Deus nos queira juntar outra vez!
Texto escrito dias após o dia em que a minha Mãe morreu, 17 de Maio de 2008.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2007
há mundo lá fora
Há mundo lá fora
(um conto de Natal para quem não gosta do Natal)
©Manuel Cardoso
A Maria João alinhou melhor um dos talheres de sobremesa, passou a ponta do algodão a limpar uma dedada que tinha ficado no Christofle. Suspirou. Olhou lá para fora pela janela, a cúpula da Basílica a brilhar ao sol frio desta manhã de Novembro, por outra o vermelho e amarelo das árvores do jardim da Estrela, o trânsito menos intenso de um sábado. Os filhos tinham saído e deviam estar a regressar para o almoço, o António também, tinha ido só comprar o Expresso, e depois seria a vez dos convidados, uns amigos e colegas da empresa. Era o último sábado com compromissos atrasados, depois viria a lufa-lufa do Natal, começara mesmo a fazer uma lista de que desistira com um sentimento de “hoje ainda não, terei tempo, não vale a pena já”. Acumulava-se à sua frente um montão de tempo. De tempo aflito de pressas e vazio de vontade. Seria preciso algo mais para o desalento? Na semana passada, na missa, encerrara-se o ano litúrgico, dissera o prior, estava-se na semana de início de um novo. Para si, de início de tudo outra vez, do fastio de existir, vontade de fugir sem querer ser covarde, mas presa a tanta coisa de que queria desistir. Esta coisa dos miúdos – quais miúdos? Na idade deles já estava casada! – não lhe saírem de casa nem assumirem um compromisso para a vida, a sua sensação de solidão permanente já desabafada com o António “Isso é da meia-idade, vais ver que logo passa!”, o ter de estar pronta para tudo e sempre, para toda a família, para os primos, para as tias, para os… farta, farta, farta! E não sentir vontade de nada, nem prazer em nada. Sobretudo isto, perder a alegria de ter prazer. Seja em quê. Fosse no que fosse. Aquela sensação de leveza ao dar um presente que alegrasse alguém, a euforia suave que lhe ficava depois de uma noite de amor, a excitação de dar uma boa notícia a esta a àquela, tudo isso se apagava nos dias solitários – ela achava solitários –, nas manhãs lentas de despertar para uma monotonia que a vinha corroendo, a desfazia para lá das lágrimas que disfarçava com make-up e para lá de todo o cinzento com que via toda a casa, os móveis, as pessoas e a sua alma.
Olhou outra vez pelas janelas.
Devem estar quase a chegar.
“O meu casaco? A minha carteira?”
Abriu a porta, desceu as escadas, saiu para a rua. Pôs-se a andar olhando só para o empedrado. E andou, andou, andou até se cansar, era já meio da tarde quando parou. Braços caídos.
Levantou o queixo, sentia fome e frio. Olhou à volta, entrou na primeira pastelaria que viu cheia de pressa.
A Maria João saiu da casa de banho com a resignação decidida de que iria enfrentar qualquer adversidade. A começar pelo cheiro da lixívia forte que se exalava naquele aposento escuro. Não que fosse um mundo novo mas que era uma situação de muitas com as quais queria aprender a lidar. O papel era asperíssimo, tinha tido que usar uma folha para conseguir segurar com menos nojo na pega de acccionar o autoclismo. A torneira da água (só havia de água fria) estava longe de reluzir limpeza num cromado que já há muito deixava ver o metal amarelo com verdetes. Não usara a toalha, nem lhe tocara, havia ao lado um dispensador de toalhetes de papel mas estava vazio. Sacudira as mãos, agitava-as ainda quando se sentou a uma mesa de canto. Notou perfeitamente que as quatro ou cinco pessoas que estavam ali, dois homens de idade que jogavam ao dominó e três mulheres que momentaneamente desviaram a cabeça da televisão, convergiam os olhares na sua direcção. Um homem que estava ao balcão dirigiu-se-lhe “ora boa tarde, se faz favor” e ela pediu um galão e uma torrada.
Lá fora passavam carros numa rua de empedrado irregular e começava o escurecer de fim de tarde. Pessoas cruzavam-se no passeio estreito diante da porta, todas encasacadas, todas desconhecidas. Do lado direito da porta havia uma máquina de cigarros com uma cena colorida de um amolador a arranjar o salto alto de uma bota de uma rapariga que esperava. “Também está sozinha, aquela ali da bota, apesar de vamp”, pensou. Levantou-se e foi buscar um maço. Voltou a sentar-se, abriu-o e acendeu um cigarro. Nesse momento o homem pousou-lhe o galão na mesa “a torrada vem já!”. Ela agarrou no copo com as duas mãos, aquecendo os dedos e a palma no calor do copo. Pôs-lhe o açúcar. Mexeu. O homem pousou a torrada mas ela preferiu acabar o cigarro, primeiro. Deu uns golos no galão. Estava agradável, muito agradável. Sentiu-se melhor. Mudou de posição na cadeira metálica, esticou a perna esquerda, cruzou a direita por cima, respirou fundo e apoiou o queixo na mão, cotovelo na mesa. Deu uma última passa. Apagou o morrão num cinzeiro de alumínio amolgado.
A parede ao lado era toda ela um espelho, um espelho acastanhado que fazia a pequena pastelaria parecer muito maior. Aqui e ali havia autocolantes, uns inteiros e outros rasgados, já antigos. Viu-se no espelho. Estava com ar cansado, lá isso estava, talvez com ar de frio, de certeza com ar de frio. Mas tinha uma expressão de desafio. Desafio de si própria. Um olhar exultante – como podia ter aquele olhar exultante?!
O homem pousava agora o estojo dos guardanapos de papel.
- Como se chama, esta pastelaria?
- A Flor das Natas.
- E esta rua? Que bairro é este?
- A senhora está perdida?
- Perdida, eu?! – sorriu, sorriu por dentro e por fora, diante daquela ideia de estar perdida.
- Não, que ideia! Tenho andado a passear, só isso.
O homem disse-lhe o nome da rua e o do bairro. Ela não fazia a menor ideia de onde era nem uma coisa nem outra. “Ora”, pensou, “também na vida não fazemos a menor ideia dos momentos que nos esperam”. Comeu a torrada, acabou o galão, ao pagar viu que tinha quase cem euros na carteira. Deu as boas tardes, saiu com um obrigado.
Tinha andado meia dúzia de metros quando reparou numa montra num papel “precisa-se de empregada”. Parou e leu outra vez. Espreitou para dentro pelo vidro embaciado.
Hesitou um instante. Voltou atrás, entrou de novo na Flor das Natas – estranho, parecer-lhe familiar tão imediatamente aquela luz, aquele espelho, aquelas pessoas – e pediu um café ao balcão. Voltou a fumar outro cigarro. Depois saiu, desviou-se de algumas pessoas que circulavam na mesma nesga de passeio, andou a meia dúzia de metros até à porta de vidro embaciado, empurrou-a e entrou.
Estava quente, abafado, ruidoso, cheio de luz e de vozes, todas elas se voltaram para si e mediram-na de alto a baixo. Uma aproximou-se e perguntou “tem marcação?”. Com uma curiosidade e um atrevimento que lhe saiu com um prazer inédito, respondeu-lhe:
- Não, não tenho. Também não vim cá para isso. É que vi ali o papel a pedirem uma empregada e estou aqui eu, pensei…
A outra olhava para ela sem desfitar o olhar, incrédula, mais ainda, embasbacada.
- Dona Dina! – chamou na direcção de uma mulher ainda nova que estava de secador na mão apontado a uma das clientes – Está aqui esta… senhora, a perguntar… é melhor a dona Dina vir aqui…
- Sim, faz favor? – aproximou-se a dona Dina, direita, despachada, bata com uma pinça de dentes largos presa no bolso, aproveitando para puxar para trás uma madeixa ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Eu venho aqui por causa do pedido ali na montra de uma empregada…
- Como?!
- Sim, é que ia a passar e li o papel…
Ouviam-se os secadores, o som de uma televisão ao fundo, todas elas estavam mudas e a observar a cena.
- Bem, se é por isso… - a dona Dina não se conteve de a examinar outra vez da cabeça aos pés, não lhe escapava aquele casaco, toda a toillette, os sapatos que valiam um ordenado, a carteira que valia dois – Mas, desculpe, acho que deve haver aqui um enga…
- Não há, acredite-me. Queria muito que me deixasse trabalhar aqui. Não discuto o ordenado que me pague e não estou a brincar. Ponha-me a fazer qualquer coisa! A dona Dina fixou-lhe o olhar por momentos, uns olhos onde lia imenso, ela sabia ler aqueles olhares todos nas clientes e este não lhe escapava.
- Alzira! – chamou uma das ajudantes. Traz aí uma bata para esta… nossa colega…
- Maria João.
- …Maria João. Mas, olhe, vai estragar as unhas, de certeza!
- Corto-as!
- Está bem! Está bem! Sabe lavar cabelos? Aposto que sim!
- Sei!
- Então, olhe, pode começar! – voltou-se de costas e dirigiu-se como que a um auditório: Que é que estão a olhar para mim?! Vamos a despachar, que é sábado e não há que estar paradas! – E, em voz mais baixa, para uma cliente da há anos: Está a ver isto? Não é só nas novelas da televisão! Aqui no salão Beleza também acontecem coisas, às vezes! - Pelo espelho, ambas exprimiram a concordância da sua surpresa.
Uma empregada mais nova explicava à Maria João onde estavam as toalhas e como era a sequência dos shampoos e amaciadores. Ainda lhe perguntou:
- Não quer por umas chinelas de feltro em vez de estar com esses sapatos? Daqui a bocado não se aguenta de pé!
- Agora já não me aguento de pé!
Riram-se as duas. Foi o seu primeiro riso de cumplicidade.
Ao fim de uma hora de cabeças lavadas já estava tu-cá-tu-lá com as clientes. Duas, ao sair, meteram-lhe uma moeda de euro no bolso da bata. Tudo tão diferente! Nem era desagradável, aquela sensação dos dedos nos cabelos delas, massajar, passar o shampoo, passar a água, estar sempre com atenção à temperatura, escorrer, envolver com a toalha, satisfação de mais uma tarefa cumprida!
Conversa mole de revistas baratas, apartes de antecipações de saídas nessa noite, observações picantes sobre homens reais ou imaginários. Ria-se imenso com as bocas, outro tanto com as que lhe eram directamente dirigidas:
- Olhe, sabe que mais? Se se viu livre dele, não queira outro! Arranje vários, querida!
- Sim, que ainda está boa prás curvas, filha! Olhe, homens, só se forem às paletes que é para não ter que se ficar com nenhum!
- Pois a mim bastava-me um! – suspirava uma matrona ao fundo, sentada numa poltrona ao lado de uma begónia, unhas mergulhadas na tina da manicure, arfando o peito para cima e para baixo – Nem tinha que fazer nada! Tratava-o ali nas palminhas, garanto!
- Ó dona Márcia, não venha para aqui com esse enguiço! Credo, mulher, para que os queremos? Olhe, bem, se for assim para uma noite…
Maria João ria-se daqueles argumentos delas, fazia a todas um ar de neutralidade e divertimento, espiavam-na e mediam-lhe cada olhar, cada gesto, na esperança de uma denúncia.
Tinha tido que apanhar o cabelo com um elástico atrás, estava só a cair-lhe e a perturbar-lhe os movimentos da cabeça, ficava-lhe colado ao pé dos olhos e não a deixava ver bem o que fazia e o resto da sala. Sentia-se a transpirar. Sabia-lhe bem, estar a transpirar por fazer aquele trabalho!
O salão parecia não esvaziar, entrava ainda mais uma cliente por cada uma que saía. Era sempre cumprimentada:
- Temos cá uma cara nova!... Hm… não é aqui da Ajuda, pois não?...
Um medo fugaz de ser reconhecida assaltava-a mas logo passava, hipótese recôndita que afogava com o chuveiro a fazer escorrer a espuma do amaciador.
Só depois das dez é que saiu a última das clientes. Uma rapariga varria o chão, ela aproveitava para fumar um cigarro, ofereceu outros às colegas. Foi aí que a dona Dina disse:
- Bem, meninas, venham os cafés e vamos à nossa vez!
Uma delas foi buscar um tabuleiro de bicas quentes à Flor das Natas, sentaram-se por momentos e depois, cortinas corridas, desligado o néon cor-de-rosa e azul que intermitentemente piscava Salão Beleza, arranjaram os penteados umas às outras, experimentaram maquilhagens. Uma delas, com uma pinça, deu um jeitinho a uma das sobrancelhas onde tinha um pelo rebelde.
- Sábado à noite é sempre assim! A nossa semana acaba hoje!
Juntaram e dividiram as gorjetas e depois despediram-se.
- Sabe, Maria João, se quiser volte na segunda-feira mas ainda à experiência. Isto anda mal para todo o mundo mas qualquer coisa… veremos se se arranja.
- Também ainda vou pensar mas um muito obrigado, dona Dina, por esta tarde…
- Olhe, e agora, vai para onde? Que eu não tenho nada com isso…
- Ah, não se preocupe, tenho sempre onde ficar!
Saíram, apagaram as luzes. Andou umas dezenas de metros, deixou que as colegas desaparecessem, desceu até à Junqueira, mandou parar um táxi.
- Para a Estrela, se faz favor.
A Maria João respirou duas vezes antes de abrir a porta. Meteu a chave, rodou. Ao mesmo tempo que a luz do hall a atingiu, este encheu-se. O António e os filhos envolveram-na num abraço e olhavam-na com espanto e incredulidade.
- Estávamos preocupados. A tua mãe deve estar a ligar para tudo o que é hospital!
- E ligou para a polícia!
- Até os primos não param de telefonar a saber se já tinhas aparecido! Que aconteceu?
- Onde foi, mãe?
Ela fez um sorriso de que não se lembrava desde o colégio. Fitou-os um a um como se fosse uma primeira vez, sentiu que o seu brilho no olhar podia ir longe de mais para o que queria e disse logo, sem mais delongas, as frases que resumiam o estar ali:
- Estou aqui sã e salva, não estou? Olhem, estou aqui como se fosse o vosso presente de Natal! Eu quero mesmo ser o vosso presente de Natal! Deixam-me ser?
No dia seguinte, à saída da missa, multidão de cumprimentos, beijos cheios de pressupostos e naturalidade aparente. Corria um ventinho que a fez voltar-se por causa do cabelo não lhe ir para a cara. Deu de frente com as árvores do jardim, cheio de sol, folhas a atravessar as grades, a virem para o passeio e a rua. Reconheceu aquele vento e aquela luz. “Apetece-me tomar um café! Vou só ali à bica”. Foi dando alguns passos, o grupo estava ainda nos cumprimentos, foi andando pelo passeio, as vozes foram ficando para trás, o barulho do trânsito, apesar de raro, meteu-se entre si e o da porta da basílica. Olhando para o empedrado, deixou de contar os passos. Foi simplesmente andando, andando, atravessando ruas, descendo as calçadas. Será que iria conseguir que a deixassem ser um presente de Natal?
(um conto de Natal para quem não gosta do Natal)
©Manuel Cardoso
A Maria João alinhou melhor um dos talheres de sobremesa, passou a ponta do algodão a limpar uma dedada que tinha ficado no Christofle. Suspirou. Olhou lá para fora pela janela, a cúpula da Basílica a brilhar ao sol frio desta manhã de Novembro, por outra o vermelho e amarelo das árvores do jardim da Estrela, o trânsito menos intenso de um sábado. Os filhos tinham saído e deviam estar a regressar para o almoço, o António também, tinha ido só comprar o Expresso, e depois seria a vez dos convidados, uns amigos e colegas da empresa. Era o último sábado com compromissos atrasados, depois viria a lufa-lufa do Natal, começara mesmo a fazer uma lista de que desistira com um sentimento de “hoje ainda não, terei tempo, não vale a pena já”. Acumulava-se à sua frente um montão de tempo. De tempo aflito de pressas e vazio de vontade. Seria preciso algo mais para o desalento? Na semana passada, na missa, encerrara-se o ano litúrgico, dissera o prior, estava-se na semana de início de um novo. Para si, de início de tudo outra vez, do fastio de existir, vontade de fugir sem querer ser covarde, mas presa a tanta coisa de que queria desistir. Esta coisa dos miúdos – quais miúdos? Na idade deles já estava casada! – não lhe saírem de casa nem assumirem um compromisso para a vida, a sua sensação de solidão permanente já desabafada com o António “Isso é da meia-idade, vais ver que logo passa!”, o ter de estar pronta para tudo e sempre, para toda a família, para os primos, para as tias, para os… farta, farta, farta! E não sentir vontade de nada, nem prazer em nada. Sobretudo isto, perder a alegria de ter prazer. Seja em quê. Fosse no que fosse. Aquela sensação de leveza ao dar um presente que alegrasse alguém, a euforia suave que lhe ficava depois de uma noite de amor, a excitação de dar uma boa notícia a esta a àquela, tudo isso se apagava nos dias solitários – ela achava solitários –, nas manhãs lentas de despertar para uma monotonia que a vinha corroendo, a desfazia para lá das lágrimas que disfarçava com make-up e para lá de todo o cinzento com que via toda a casa, os móveis, as pessoas e a sua alma.
Olhou outra vez pelas janelas.
Devem estar quase a chegar.
“O meu casaco? A minha carteira?”
Abriu a porta, desceu as escadas, saiu para a rua. Pôs-se a andar olhando só para o empedrado. E andou, andou, andou até se cansar, era já meio da tarde quando parou. Braços caídos.
Levantou o queixo, sentia fome e frio. Olhou à volta, entrou na primeira pastelaria que viu cheia de pressa.
A Maria João saiu da casa de banho com a resignação decidida de que iria enfrentar qualquer adversidade. A começar pelo cheiro da lixívia forte que se exalava naquele aposento escuro. Não que fosse um mundo novo mas que era uma situação de muitas com as quais queria aprender a lidar. O papel era asperíssimo, tinha tido que usar uma folha para conseguir segurar com menos nojo na pega de acccionar o autoclismo. A torneira da água (só havia de água fria) estava longe de reluzir limpeza num cromado que já há muito deixava ver o metal amarelo com verdetes. Não usara a toalha, nem lhe tocara, havia ao lado um dispensador de toalhetes de papel mas estava vazio. Sacudira as mãos, agitava-as ainda quando se sentou a uma mesa de canto. Notou perfeitamente que as quatro ou cinco pessoas que estavam ali, dois homens de idade que jogavam ao dominó e três mulheres que momentaneamente desviaram a cabeça da televisão, convergiam os olhares na sua direcção. Um homem que estava ao balcão dirigiu-se-lhe “ora boa tarde, se faz favor” e ela pediu um galão e uma torrada.
Lá fora passavam carros numa rua de empedrado irregular e começava o escurecer de fim de tarde. Pessoas cruzavam-se no passeio estreito diante da porta, todas encasacadas, todas desconhecidas. Do lado direito da porta havia uma máquina de cigarros com uma cena colorida de um amolador a arranjar o salto alto de uma bota de uma rapariga que esperava. “Também está sozinha, aquela ali da bota, apesar de vamp”, pensou. Levantou-se e foi buscar um maço. Voltou a sentar-se, abriu-o e acendeu um cigarro. Nesse momento o homem pousou-lhe o galão na mesa “a torrada vem já!”. Ela agarrou no copo com as duas mãos, aquecendo os dedos e a palma no calor do copo. Pôs-lhe o açúcar. Mexeu. O homem pousou a torrada mas ela preferiu acabar o cigarro, primeiro. Deu uns golos no galão. Estava agradável, muito agradável. Sentiu-se melhor. Mudou de posição na cadeira metálica, esticou a perna esquerda, cruzou a direita por cima, respirou fundo e apoiou o queixo na mão, cotovelo na mesa. Deu uma última passa. Apagou o morrão num cinzeiro de alumínio amolgado.
A parede ao lado era toda ela um espelho, um espelho acastanhado que fazia a pequena pastelaria parecer muito maior. Aqui e ali havia autocolantes, uns inteiros e outros rasgados, já antigos. Viu-se no espelho. Estava com ar cansado, lá isso estava, talvez com ar de frio, de certeza com ar de frio. Mas tinha uma expressão de desafio. Desafio de si própria. Um olhar exultante – como podia ter aquele olhar exultante?!
O homem pousava agora o estojo dos guardanapos de papel.
- Como se chama, esta pastelaria?
- A Flor das Natas.
- E esta rua? Que bairro é este?
- A senhora está perdida?
- Perdida, eu?! – sorriu, sorriu por dentro e por fora, diante daquela ideia de estar perdida.
- Não, que ideia! Tenho andado a passear, só isso.
O homem disse-lhe o nome da rua e o do bairro. Ela não fazia a menor ideia de onde era nem uma coisa nem outra. “Ora”, pensou, “também na vida não fazemos a menor ideia dos momentos que nos esperam”. Comeu a torrada, acabou o galão, ao pagar viu que tinha quase cem euros na carteira. Deu as boas tardes, saiu com um obrigado.
Tinha andado meia dúzia de metros quando reparou numa montra num papel “precisa-se de empregada”. Parou e leu outra vez. Espreitou para dentro pelo vidro embaciado.
Hesitou um instante. Voltou atrás, entrou de novo na Flor das Natas – estranho, parecer-lhe familiar tão imediatamente aquela luz, aquele espelho, aquelas pessoas – e pediu um café ao balcão. Voltou a fumar outro cigarro. Depois saiu, desviou-se de algumas pessoas que circulavam na mesma nesga de passeio, andou a meia dúzia de metros até à porta de vidro embaciado, empurrou-a e entrou.
Estava quente, abafado, ruidoso, cheio de luz e de vozes, todas elas se voltaram para si e mediram-na de alto a baixo. Uma aproximou-se e perguntou “tem marcação?”. Com uma curiosidade e um atrevimento que lhe saiu com um prazer inédito, respondeu-lhe:
- Não, não tenho. Também não vim cá para isso. É que vi ali o papel a pedirem uma empregada e estou aqui eu, pensei…
A outra olhava para ela sem desfitar o olhar, incrédula, mais ainda, embasbacada.
- Dona Dina! – chamou na direcção de uma mulher ainda nova que estava de secador na mão apontado a uma das clientes – Está aqui esta… senhora, a perguntar… é melhor a dona Dina vir aqui…
- Sim, faz favor? – aproximou-se a dona Dina, direita, despachada, bata com uma pinça de dentes largos presa no bolso, aproveitando para puxar para trás uma madeixa ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Eu venho aqui por causa do pedido ali na montra de uma empregada…
- Como?!
- Sim, é que ia a passar e li o papel…
Ouviam-se os secadores, o som de uma televisão ao fundo, todas elas estavam mudas e a observar a cena.
- Bem, se é por isso… - a dona Dina não se conteve de a examinar outra vez da cabeça aos pés, não lhe escapava aquele casaco, toda a toillette, os sapatos que valiam um ordenado, a carteira que valia dois – Mas, desculpe, acho que deve haver aqui um enga…
- Não há, acredite-me. Queria muito que me deixasse trabalhar aqui. Não discuto o ordenado que me pague e não estou a brincar. Ponha-me a fazer qualquer coisa! A dona Dina fixou-lhe o olhar por momentos, uns olhos onde lia imenso, ela sabia ler aqueles olhares todos nas clientes e este não lhe escapava.
- Alzira! – chamou uma das ajudantes. Traz aí uma bata para esta… nossa colega…
- Maria João.
- …Maria João. Mas, olhe, vai estragar as unhas, de certeza!
- Corto-as!
- Está bem! Está bem! Sabe lavar cabelos? Aposto que sim!
- Sei!
- Então, olhe, pode começar! – voltou-se de costas e dirigiu-se como que a um auditório: Que é que estão a olhar para mim?! Vamos a despachar, que é sábado e não há que estar paradas! – E, em voz mais baixa, para uma cliente da há anos: Está a ver isto? Não é só nas novelas da televisão! Aqui no salão Beleza também acontecem coisas, às vezes! - Pelo espelho, ambas exprimiram a concordância da sua surpresa.
Uma empregada mais nova explicava à Maria João onde estavam as toalhas e como era a sequência dos shampoos e amaciadores. Ainda lhe perguntou:
- Não quer por umas chinelas de feltro em vez de estar com esses sapatos? Daqui a bocado não se aguenta de pé!
- Agora já não me aguento de pé!
Riram-se as duas. Foi o seu primeiro riso de cumplicidade.
Ao fim de uma hora de cabeças lavadas já estava tu-cá-tu-lá com as clientes. Duas, ao sair, meteram-lhe uma moeda de euro no bolso da bata. Tudo tão diferente! Nem era desagradável, aquela sensação dos dedos nos cabelos delas, massajar, passar o shampoo, passar a água, estar sempre com atenção à temperatura, escorrer, envolver com a toalha, satisfação de mais uma tarefa cumprida!
Conversa mole de revistas baratas, apartes de antecipações de saídas nessa noite, observações picantes sobre homens reais ou imaginários. Ria-se imenso com as bocas, outro tanto com as que lhe eram directamente dirigidas:
- Olhe, sabe que mais? Se se viu livre dele, não queira outro! Arranje vários, querida!
- Sim, que ainda está boa prás curvas, filha! Olhe, homens, só se forem às paletes que é para não ter que se ficar com nenhum!
- Pois a mim bastava-me um! – suspirava uma matrona ao fundo, sentada numa poltrona ao lado de uma begónia, unhas mergulhadas na tina da manicure, arfando o peito para cima e para baixo – Nem tinha que fazer nada! Tratava-o ali nas palminhas, garanto!
- Ó dona Márcia, não venha para aqui com esse enguiço! Credo, mulher, para que os queremos? Olhe, bem, se for assim para uma noite…
Maria João ria-se daqueles argumentos delas, fazia a todas um ar de neutralidade e divertimento, espiavam-na e mediam-lhe cada olhar, cada gesto, na esperança de uma denúncia.
Tinha tido que apanhar o cabelo com um elástico atrás, estava só a cair-lhe e a perturbar-lhe os movimentos da cabeça, ficava-lhe colado ao pé dos olhos e não a deixava ver bem o que fazia e o resto da sala. Sentia-se a transpirar. Sabia-lhe bem, estar a transpirar por fazer aquele trabalho!
O salão parecia não esvaziar, entrava ainda mais uma cliente por cada uma que saía. Era sempre cumprimentada:
- Temos cá uma cara nova!... Hm… não é aqui da Ajuda, pois não?...
Um medo fugaz de ser reconhecida assaltava-a mas logo passava, hipótese recôndita que afogava com o chuveiro a fazer escorrer a espuma do amaciador.
Só depois das dez é que saiu a última das clientes. Uma rapariga varria o chão, ela aproveitava para fumar um cigarro, ofereceu outros às colegas. Foi aí que a dona Dina disse:
- Bem, meninas, venham os cafés e vamos à nossa vez!
Uma delas foi buscar um tabuleiro de bicas quentes à Flor das Natas, sentaram-se por momentos e depois, cortinas corridas, desligado o néon cor-de-rosa e azul que intermitentemente piscava Salão Beleza, arranjaram os penteados umas às outras, experimentaram maquilhagens. Uma delas, com uma pinça, deu um jeitinho a uma das sobrancelhas onde tinha um pelo rebelde.
- Sábado à noite é sempre assim! A nossa semana acaba hoje!
Juntaram e dividiram as gorjetas e depois despediram-se.
- Sabe, Maria João, se quiser volte na segunda-feira mas ainda à experiência. Isto anda mal para todo o mundo mas qualquer coisa… veremos se se arranja.
- Também ainda vou pensar mas um muito obrigado, dona Dina, por esta tarde…
- Olhe, e agora, vai para onde? Que eu não tenho nada com isso…
- Ah, não se preocupe, tenho sempre onde ficar!
Saíram, apagaram as luzes. Andou umas dezenas de metros, deixou que as colegas desaparecessem, desceu até à Junqueira, mandou parar um táxi.
- Para a Estrela, se faz favor.
A Maria João respirou duas vezes antes de abrir a porta. Meteu a chave, rodou. Ao mesmo tempo que a luz do hall a atingiu, este encheu-se. O António e os filhos envolveram-na num abraço e olhavam-na com espanto e incredulidade.
- Estávamos preocupados. A tua mãe deve estar a ligar para tudo o que é hospital!
- E ligou para a polícia!
- Até os primos não param de telefonar a saber se já tinhas aparecido! Que aconteceu?
- Onde foi, mãe?
Ela fez um sorriso de que não se lembrava desde o colégio. Fitou-os um a um como se fosse uma primeira vez, sentiu que o seu brilho no olhar podia ir longe de mais para o que queria e disse logo, sem mais delongas, as frases que resumiam o estar ali:
- Estou aqui sã e salva, não estou? Olhem, estou aqui como se fosse o vosso presente de Natal! Eu quero mesmo ser o vosso presente de Natal! Deixam-me ser?
No dia seguinte, à saída da missa, multidão de cumprimentos, beijos cheios de pressupostos e naturalidade aparente. Corria um ventinho que a fez voltar-se por causa do cabelo não lhe ir para a cara. Deu de frente com as árvores do jardim, cheio de sol, folhas a atravessar as grades, a virem para o passeio e a rua. Reconheceu aquele vento e aquela luz. “Apetece-me tomar um café! Vou só ali à bica”. Foi dando alguns passos, o grupo estava ainda nos cumprimentos, foi andando pelo passeio, as vozes foram ficando para trás, o barulho do trânsito, apesar de raro, meteu-se entre si e o da porta da basílica. Olhando para o empedrado, deixou de contar os passos. Foi simplesmente andando, andando, atravessando ruas, descendo as calçadas. Será que iria conseguir que a deixassem ser um presente de Natal?
domingo, 25 de novembro de 2007
Os últimos e os outros
© Manuel Cardoso
- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
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Um dos esqueletos mais bem guardados nos antigos armários da casa era loura, tinha olhos azul-água e a cara estampada dalgumas das nossas antepassadas. Dizem que foi despachada para o Brasil com a mãe, levando na bagagem um dote condicionado a não voltar a aparecer. Nunca nenhum de nós soube dela a não ser por uma frase aqui e ali, em momentos mais graves de discussão e temor.
Parece que a avó lhe fez referências, uma vez por outra, naqueles instantes de viuvez em que ainda lhe vinham à flor da alma as sombras do seu casamento com o avô, nem sempre feliz. Quase não me lembro da avó!
Mas houve outros, mais patentes, que ainda hoje se cruzam comigo na rua, com aqueles traços de família que são mais do que um vestígio genético – a evidência flagrante de antepassados comuns e muito mais recentes do que Adão e Eva. Destas e destes, não houve nenhum que me constasse ter morrido em nossa casa.
Uma das pessoas mais chegadas foi a que foi ama de meu Pai. Ficou sempre a governanta da casa e foi da família muito mais que outros que tiveram dela o apelido e a sorte. Mandou ali dentro com a determinação das avós lendárias do século dezoito, senhoras do seu nariz e doutras coisas dos homens e verdadeiras fundadoras dos cabedais que aguentaram toda a parentela durante os dois séculos seguintes. Mas também esteve cá com mansidão e com a delicadeza das mais santas e mais apagadas, dotadas daquela discrição firme que se revela como uma rocha nos momentos mais instáveis dos dramas íntimos de cada família – dotadas também daquele génio que, nos momentos precisos, arrasa qualquer obstáculo. Morreu no quarto das duas camas, depois de uma agonia que lhe desfez definitivamente o fígado. Lembro-me apenas que respirava a espaços como se gorgolejasse e que exalava um hálito pestilento. Quando já não respirava nem palpitava, o pai e a mãe enfiaram-lhe na boca um algodão embebido em álcool canforado, na vã tentativa de disfarçar o cheiro. Foi levada para a sua aldeia, já morta, muito sentada e direita, de automóvel, num táxi cujo chauffeur ainda protestou qualquer coisa quando a viu soçobrar. Desta história ficou um eco ainda vivo nas histórias de ócio nos cafés da terra. Foi a última pessoa da casa a morrer na casa.
Houve tantos a morrer aqui! Alguns no berço ainda, outros já maiores, houve mesmo um pedinte, ainda no tempo do trisavô morgado, que, numa noite de temporal desabrigado, conseguiu que o ouvissem a mal bater, já sem forças, na pesadona porta da cozinha velha que dava para a varanda das galinhas. Entrou para ao pé do lume, onde a criadagem lhe deu um caldo quente e lhe secou a roupa. O homem tremia e tartamudeava qualquer coisa. Morreu aconchegado numas mantas. Que estranha casa, a que se vinha pedir para cá morrer!
A avó morreu pouco depois de eu nascer mas não morreu na casa. Lembro-me muito vagamente de ver bombeiros com capacetes reluzentes a ir junto da cama dela, uma cama grande, D.José, com dossel, na casa das tias, em frente à nossa, onde passara os últimos anos com as irmãs, a Tina e a Ticha. Trouxeram-na para a casa para se lhe rezar e para ser velada.
A irmã mais nova do Pai morreu ainda menina, no ano em que a monarquia se preparava também para morrer. Foi um prenúncio de infelicidades ainda maiores na casa, que os avós quase acabavam de reinaugurar, depois de umas obras posteriores a partilhas.
O tio Alberto, o mais velho, morreu em Lourenço Marques no início dos setenta e a tia Lygia morreu muito antes e muito nova, em trinta e nove e com apenas 34 anos, deixando órfãos os três primos Malheiro: o José, o João e o Chico.
O pai também não morreu na casa. Aliás, saiu de casa para morrer. Lembro-me nitidamente – como poderia esquecer?
De tarde sentiu-se indisposto e com uma dor contínua no peito que se foi esbatendo. Depois de jantar foi até ao Café Central onde esteve com amigos, conversou, gracejou até e ainda passeou com a Pilar, que estava cá porque era fim-de-semana comprido do Corpo de Deus. Sentiu-se, então, pior. Voltou para casa e dali foi para o hospital (um hospital que ele próprio ajudara a construir no Estado Novo e para o qual lhe arranjara algum dinheiro o Frederico Ulrich, então ministro, e no qual nascemos todos os irmãos, excepto o mais velho, tido na casa). A Mãe e a Dulce telefonaram-me, estava eu em Travanca. O Álvaro levou-me ao hospital. O pai estava deitado numa marquesa, o Dr. Simão e o Dr. Urze inclinados sobre ele a fazer-lhe uma massagem cardio-pulmonar. A irmã Judite estava junto. Vi-o ainda a respirar ofegante e profundamente, duas ou três vêzes. Estava morto. Apareceu entretanto o Padre Melo que ainda o ungiu. Levei-o para casa numa ambulância. Fui buscar um caixão. Foi o último da casa que foi velado em casa, no quarto do pátio. Foi o último dos irmãos a morrer.
Foi o último a morrer que foi velado na casa.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
Esta frase, ouvida vezes sem conta a minha mãe que a soltava num misto de queixume revoltado e de desesperança, irritou sempre de modo especial a minha irmã Margarida para quem a afirmação era mais do que uma ofensa. E se, então, fosse dita num momento de suspiro, diante de uma parede em que a água infiltrada desenhava modelos elaborados do caos, ou depois de uma manhã de limpezas num quarto, em que um tecto de estuque caído fazia uma simulação de guerra, nesses momentos era ainda mais insuportável a ambas: à minha mãe conter-se e à minha irmã ouvi-la:
- A casa é velha, está uma choupana, vão-se mas é embora, meus filhos, isto está tudo a cair!
Levei anos a compreender aquela atitude. De ambas.
A primeira vez que a mãe vira a casa fora dias depois de casar.
Conhecera o meu pai na Guarda, no sanatório, para onde tinham ido nos anos trinta. O pai tinha vindo tuberculoso de Moçambique e a mãe tinha vindo com a tia Aida de Lisboa. Todos tinham chegado à Guarda como quem vai para uma estação de destino – quem diria que seria apenas um apeadeiro?
Decorria a II Grande Guerra quando casaram na igreja de Nª.Sª.de Fátima, ainda em obras, às Avenidas Novas, em Lisboa. Dias depois, a mãe vê-se diante de um meio solar dividido em partilhas de que nunca ouvira falar porque o pai falava sempre na casa.
A mãe chegava como quem ia para um chá na Pastelaria Versailles ou para um passeio a uma esplanada no Jardim da Estrela ou no Campo Grande: chapéu, carteira e sapatos brancos, tailleur de verão com saia curta por cima do joelho, pálpebras e lábios lilases. Foi um choque.
Um bando de outra idade estava à espera no pátio, vestidos de escuro como se ainda velassem por D.Carlos e o Príncipe, tias e tios, primalhada curiosa de ver quem é que o pai trouxera de Lisboa, para uma casa que fora sempre amarga para as mulheres. Amarga para a avó e para as duas filhas que ela tivera, ambas mortas, uma com mêses de idade e a outra, a tia Lygia, tristeza ainda recente, a que deixara os tais três filhos rapazes.
A mãe entrava no pátio, escuro naquela tarde de Outubro de 42, sentindo que uma indefinível hostilidade brotava daquelas paredes.
A pouco e pouco foi mudando algumas coisas. Os soalhos, de esfrega à mão por criadas que, de joelhos, os passavam a escova e sabão, começaram a ser de cêra e lustro puxado. As paredes, de uma cal antiga, nas quais se recortavam as manchas castanhas dos quadros pendurados há décadas e detrás dos quais fugia uma multidão de percevejos quando se remexiam para limpar o pó, foram pintadas de fresco.
O primeiro Inverno foi frio, como o são os de Trás-os-Montes e, à temperatura baixa, com a água a congelar nos canos, vieram juntar-se as contingências do racionamento e da Guerra, a electricidade disponível apenas por horas e a cintilar a espaços, a simpatia apenas educada dos sogros. Além do mais, na casa vivia muita gente, muita mais gente do que a mãe gostaria: os meus avós, sendo que o avô estava já com uma aterosclerose avançada e davam-lhe ataques, os Malheiro, o pai deles e a criadagem, a velha Leonida e as ajudantes.
Do desconforto do frio passava-se para o tórrido do Verão. A mãe tinha preferido o Inverno, o calor fora-lhe sempre insuportável.
Para ter tempo só para si, deixava-se ficar a ler até tarde, na varanda ou na sala, e com o vagar das horas recomeçara até a escrever, como já o fizera em Lisboa em solteira. Ficava normalmente até o petróleo estar a acabar no depósito bojudo de um candeeiro francês, portas abertas para a varanda, escuridão lá fora de onde vinha apenas o ruído constante e agradável da fonte da praça, dos grilos e do canto compassado dos rouxinóis e dos melros, a responder do fundo das hortas.
O pai da minha mãe, militar de carreira, republicano e extremamente racionalista, não instruíra os filhos na religião católica. As convicções da mãe neste domínio formaram-se muito tarde, e foi já depois de casada que aderiu de alma e coração e de tal modo que ficou com aquela fé dos convertidos, muito mais fundamentalista e intolerante do que a dos tradicionalistas como o meu pai, mais aberto e compreensivo, a acreditar mais na redenção do que no castigo final. Na época em que veio para Trás-os-Montes, a mãe ainda não era uma católica convicta, convicta a sério... seria antes uma racionalista praticante. E com aquela tendência que todos temos para adaptar um pouco a religião a nós próprios, pode dizer-se que a mãe começou por praticar mesmo um catolicismo racional.
Na época foi assim – a fé veio depois, e reforçada. Mas, por isso, nunca aceitara até aí que o sobrenatural pudesse estar no dia a dia da vida de cada um – e nunca o aceitou. Tudo o que lhe contassem que fosse sobrenatural teria concerteza uma explicação racional.
Numa dessas noites abafadas de Julho, silêncio cortado apenas por uma ou outra melga que volitava, a mãe escrevia na sala. Embrenhada no texto, não se apercebeu logo de um ruído ritmado e surdo que parecia vir do tecto. Quando notou, achou estranho: por cima do tecto não havia nada, apenas o terceiro, o sótão em bruto que ficava sob o telhado, como podia produzir-se aí um ruído daqueles?! Prestando melhor atenção...o ruído desaparecia. Depois voltava, mais nítido, mais insistente... então parava. Entretanto apareceu por ali o meu pai. Também ouvia, havia ali qualquer coisa a mexer-se. Pegaram num candeeiro de azeite e avançaram para o sótão. Quando abriram a porta puderam ver que, sobre um estrado poeeirento de tábuas, o velho berço de baloiço da casa oscilava sozinho.
Para uma racionalista, foi um episódio algo perturbador, embora a mãe tivesse arranjado uma explicação arejada sobre poder ter sido uma brincadeira de gatos – e os gatos são dados a brincadeiras do género e na casa havia vários. Pelo sim pelo não, o berço que as mãos da tia Lygia tinham empurrado pela última vez e que agora estaria na iminência de ser empurrado pelas da minha mãe, uma estranha na casa, foi arrumado longe, no palheiro, e não serviu mais, nem sequer para o mais velho dos meus irmãos. A mãe mandou vir um berço novo de Lisboa, de rodas com molas e caixa forrada de pergamóide.
A vida da mãe, cá em casa, foi sempre difícil. Crónicas faltas de água, repetidas reparações do telhado e dos tectos, incêndios na cozinha, complicadas teias de relacionamento com a família de meu pai, periódicas dificuldades financeiras. As revistas que chegavam cá e traziam a propaganda alemã, inglesa e americana alimentaram no seu espírito a firme certeza de que a vida americana era a melhor: recurso a meios modernos, electricidade para tudo, sociedade sem preconceitos, casas fáceis de manter. Ainda me lembro de a ouvir dizer ao meu pai, onze anos mais velho e de saúde sempre problemática, num misto de coisa séria, sonho impossível e testemunho para nós, os filhos:
- Devíamos era ir para a América, começar vida nova, nem que fosse lavar pratos. Lá é tudo moderno, é tudo mais fácil!...
Somos seis irmãos. O mais velho é o Carlos, depois a Lígia, a Guida, a Pilar, a Dulce e, no fim, a meia dúzia de anos de distância, eu. Quando as manas eram pequenas, dormiam no quarto lá de cima, o da janela do mirante, paredes-meias com o terceiro e ao cimo das escadas em meio caracol de madeira.
Numa noite em que as luzes já estavam apagadas mas em que ainda conversavam, começaram a ouvir dois sons alternados, um surdo e outro de madeira a martelar madeira, corredor adiante, como de alguém com perna de pau que avança. Primeiro pensaram ser sugestão e os sons virem da rua, mas, a certa altura, notaram distintamente que o alguém subia as escadas na direcção do quarto. Começaram então a chamar alto e bom som pelo pai.
Rapidamente, quem quer que fosse se escapuliu corredor adiante em direcção à saleta. O pai acorreu, inteirou-se do sucedido e passou revista às portas e janelas. Não viu ninguém. As portas e janelas estavam todas fechadas por dentro. Oficialmente, ao almoço do dia seguinte, a avó cunhou a versão, concertada durante a manhã em conversas semiescondidas com o pai, de que teriam sido, ela e a sua bengala, as noctívagas misteriosas. Só que a bengala da avó tinha ponta de borracha...
Uma outra vez, já mais crescidas, ocupavam o quarto das duas camas. A meio da noite notaram um ponto de luz pairando sobre os pés da cama e que se movia, aumentando de volume e aproximando-se, baixando sobre a colcha. Mais uma vez desataram a chamar o pai em brados, que veio correndo e que, ao abrir a porta do quarto delas, esboçou um ar de espanto e recuou, logo recobrando a serenidade e procurando sossegá-las.
Ambos os episódios foram contados e recontados já muitas vêzes ao longo dos anos e até têm servido para fazermos brincadeiras sobre fantasmas e coisas do género a propósito. Contudo, nenhum dos episódios teve uma explicação cabal, várias vêzes foram motivo de conversa mas de nenhuma conclusão e os nossos pais sempre procuraram desvalorizá-los, atribuí-los a sugestões e a pesadelos.
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A vinda com a Mariana comigo para a casa, mais de quarenta anos depois da minha mãe, implicou fazermos obras na casa para adaptarmos o rés-do-chão a ser o nosso apartamento de casados. Na antiga adega fizemos a sala com a lareira, na antiga despensa, quarto dos cestos e casa dos banhos fizemos o quarto da filharada, corredor e uma casa de banho. O nosso quarto ficava no que dantes era a loja das batatas e a respectiva casa de banho ocupa agora o antigo galinheiro pequeno.
A Mariana, tal como a minha mãe, também veio de fora para a casa. Tivemos três incêndios na chaminé e algumas inundações. Tudo acontece ou se inicia quando eu não estou. Essas peripécias, às vêzes pequenos nadas, foram avolumando em nós ao longo dos anos um sentimento de já basta, de exaustão. Decidimos um dia mudar de casa, até porque os nossos filhos vão crescendo e começámos a necessitar de mais espaço.
E decidimos, até, mais do que isso: deixar definitivamente esta casa. Curioso que, sempre que pensava nisso, inspirava-se-me um sentimento de alívio. E sempre que hesitávamos, sempre que por um instante nos assaltava a vontade de prolongar ainda um pouco mais a nossa estadia ali, algo acontecia como que a empurrar-nos a pôr-nos dali para fora.
As últimas reparações depois de um dos incêndios que tivemos puseram a sala confortável como ainda nunca a tínhamos tido. Talvez nos tenha assaltado a ideia de ficar mais um pouco, sentir a sala assim quente e afável. De imediato uma chuvada veio argumentar o contrário, arranjou maneira de se infiltrar pelo canto da televisão, molhou tudo, íamos ficando sem parabólica e sem canais por satélite. Reparei rapidamente os estragos – nova infiltração na parede mestra que ficou inchumbada de água, ressumando humidade para todo o ambiente, tornando desconfortável como nunca a sala que estava acolhedora como nunca!
Já por duas vêzes distintas, eu já quase a adormecer, ouvira nitidamente como num filme de alucinação, no nosso quarto, vozes explícitas numa conversa breve e urgente:
- Diz-me quem, diz-me quem!
A que uma voz aflita respondia um queixume:
- Não, mãe! Não, mãe!
- Mas por que é que...
E neste momento o diálogo interrompia-se, eu levantava a cabeça da almofada e perguntava à Mariana se ouvira também. A Mariana também ouvira. Apesar das dúvidas fui várias vêzes à casa paredes meias com a nossa, a tal metade do solar que as partilhas partiram, ver se nas lojas térreas havia pegadas frescas, mas em vão. Um das noites fui mesmo à polícia...”ora, senhor dr., isso lá é algum namoro às escondidas!”. Só que as vozes não eram de namorados, eram vozes mesmo aflitas, numa conversa rápida de sussurro mal disfarçado.
E acontecia-me muitas vêzes estar precisamente no mesmo quarto com a clara sensação de que estava ali mais alguém, de que aquela torneira a pingar eu tinha fechado antes, aquela gaveta mal metida para dentro eu tinha composto há instantes. O nosso quarto estava com infiltrações nas paredes que vinham desde o telhado, dois pisos acima, de um velho caleiro de zinco podre. E o chão, de tijoleira vermelha, estava a esboroar de humidades capilares. A um canto, o salitre estava já a carcomer uma parede rebocada de novo ainda só há meia dúzia de anos.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, mais moderna, mais nova!
Esta frase da minha mãe foi produzida, a primeira vez, nunca soube eu quando. Talvez lhe tenha ocorrido pela primeira vez logo depois de, no pátio de entrada da casa, ter entrado, pelo braço de meu pai, e ter visto todos os outros.
Foi sempre impossível à minha irmã Margarida ouvir essa frase sem ripostar. Talvez que se tenha sempre sentido parte orgânica da casa. É que eu não sei explicar porquê mas quando imagino a cena da mãe toda up to date de Lisboa anos quarenta a entrar no pátio, pelo braço do meu pai, e toda aquela parentela grave ali postada à espera de poder fazer o cumprimento de boas vindas, de casaca preta, vejo nitidamente, num dos degraus de granito das escadas, em pé e ao lado de um vaso de folhas verdes de aspidistra, a cara sorridente, francamente sorridente, da minha irmã Margarida, - como se fosse a cena final do Shining, ! –, no meio dos semblantes sorridentes, cerimoniosamente sorridentes, de todos os outros.
- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
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Um dos esqueletos mais bem guardados nos antigos armários da casa era loura, tinha olhos azul-água e a cara estampada dalgumas das nossas antepassadas. Dizem que foi despachada para o Brasil com a mãe, levando na bagagem um dote condicionado a não voltar a aparecer. Nunca nenhum de nós soube dela a não ser por uma frase aqui e ali, em momentos mais graves de discussão e temor.
Parece que a avó lhe fez referências, uma vez por outra, naqueles instantes de viuvez em que ainda lhe vinham à flor da alma as sombras do seu casamento com o avô, nem sempre feliz. Quase não me lembro da avó!
Mas houve outros, mais patentes, que ainda hoje se cruzam comigo na rua, com aqueles traços de família que são mais do que um vestígio genético – a evidência flagrante de antepassados comuns e muito mais recentes do que Adão e Eva. Destas e destes, não houve nenhum que me constasse ter morrido em nossa casa.
Uma das pessoas mais chegadas foi a que foi ama de meu Pai. Ficou sempre a governanta da casa e foi da família muito mais que outros que tiveram dela o apelido e a sorte. Mandou ali dentro com a determinação das avós lendárias do século dezoito, senhoras do seu nariz e doutras coisas dos homens e verdadeiras fundadoras dos cabedais que aguentaram toda a parentela durante os dois séculos seguintes. Mas também esteve cá com mansidão e com a delicadeza das mais santas e mais apagadas, dotadas daquela discrição firme que se revela como uma rocha nos momentos mais instáveis dos dramas íntimos de cada família – dotadas também daquele génio que, nos momentos precisos, arrasa qualquer obstáculo. Morreu no quarto das duas camas, depois de uma agonia que lhe desfez definitivamente o fígado. Lembro-me apenas que respirava a espaços como se gorgolejasse e que exalava um hálito pestilento. Quando já não respirava nem palpitava, o pai e a mãe enfiaram-lhe na boca um algodão embebido em álcool canforado, na vã tentativa de disfarçar o cheiro. Foi levada para a sua aldeia, já morta, muito sentada e direita, de automóvel, num táxi cujo chauffeur ainda protestou qualquer coisa quando a viu soçobrar. Desta história ficou um eco ainda vivo nas histórias de ócio nos cafés da terra. Foi a última pessoa da casa a morrer na casa.
Houve tantos a morrer aqui! Alguns no berço ainda, outros já maiores, houve mesmo um pedinte, ainda no tempo do trisavô morgado, que, numa noite de temporal desabrigado, conseguiu que o ouvissem a mal bater, já sem forças, na pesadona porta da cozinha velha que dava para a varanda das galinhas. Entrou para ao pé do lume, onde a criadagem lhe deu um caldo quente e lhe secou a roupa. O homem tremia e tartamudeava qualquer coisa. Morreu aconchegado numas mantas. Que estranha casa, a que se vinha pedir para cá morrer!
A avó morreu pouco depois de eu nascer mas não morreu na casa. Lembro-me muito vagamente de ver bombeiros com capacetes reluzentes a ir junto da cama dela, uma cama grande, D.José, com dossel, na casa das tias, em frente à nossa, onde passara os últimos anos com as irmãs, a Tina e a Ticha. Trouxeram-na para a casa para se lhe rezar e para ser velada.
A irmã mais nova do Pai morreu ainda menina, no ano em que a monarquia se preparava também para morrer. Foi um prenúncio de infelicidades ainda maiores na casa, que os avós quase acabavam de reinaugurar, depois de umas obras posteriores a partilhas.
O tio Alberto, o mais velho, morreu em Lourenço Marques no início dos setenta e a tia Lygia morreu muito antes e muito nova, em trinta e nove e com apenas 34 anos, deixando órfãos os três primos Malheiro: o José, o João e o Chico.
O pai também não morreu na casa. Aliás, saiu de casa para morrer. Lembro-me nitidamente – como poderia esquecer?
De tarde sentiu-se indisposto e com uma dor contínua no peito que se foi esbatendo. Depois de jantar foi até ao Café Central onde esteve com amigos, conversou, gracejou até e ainda passeou com a Pilar, que estava cá porque era fim-de-semana comprido do Corpo de Deus. Sentiu-se, então, pior. Voltou para casa e dali foi para o hospital (um hospital que ele próprio ajudara a construir no Estado Novo e para o qual lhe arranjara algum dinheiro o Frederico Ulrich, então ministro, e no qual nascemos todos os irmãos, excepto o mais velho, tido na casa). A Mãe e a Dulce telefonaram-me, estava eu em Travanca. O Álvaro levou-me ao hospital. O pai estava deitado numa marquesa, o Dr. Simão e o Dr. Urze inclinados sobre ele a fazer-lhe uma massagem cardio-pulmonar. A irmã Judite estava junto. Vi-o ainda a respirar ofegante e profundamente, duas ou três vêzes. Estava morto. Apareceu entretanto o Padre Melo que ainda o ungiu. Levei-o para casa numa ambulância. Fui buscar um caixão. Foi o último da casa que foi velado em casa, no quarto do pátio. Foi o último dos irmãos a morrer.
Foi o último a morrer que foi velado na casa.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
Esta frase, ouvida vezes sem conta a minha mãe que a soltava num misto de queixume revoltado e de desesperança, irritou sempre de modo especial a minha irmã Margarida para quem a afirmação era mais do que uma ofensa. E se, então, fosse dita num momento de suspiro, diante de uma parede em que a água infiltrada desenhava modelos elaborados do caos, ou depois de uma manhã de limpezas num quarto, em que um tecto de estuque caído fazia uma simulação de guerra, nesses momentos era ainda mais insuportável a ambas: à minha mãe conter-se e à minha irmã ouvi-la:
- A casa é velha, está uma choupana, vão-se mas é embora, meus filhos, isto está tudo a cair!
Levei anos a compreender aquela atitude. De ambas.
A primeira vez que a mãe vira a casa fora dias depois de casar.
Conhecera o meu pai na Guarda, no sanatório, para onde tinham ido nos anos trinta. O pai tinha vindo tuberculoso de Moçambique e a mãe tinha vindo com a tia Aida de Lisboa. Todos tinham chegado à Guarda como quem vai para uma estação de destino – quem diria que seria apenas um apeadeiro?
Decorria a II Grande Guerra quando casaram na igreja de Nª.Sª.de Fátima, ainda em obras, às Avenidas Novas, em Lisboa. Dias depois, a mãe vê-se diante de um meio solar dividido em partilhas de que nunca ouvira falar porque o pai falava sempre na casa.
A mãe chegava como quem ia para um chá na Pastelaria Versailles ou para um passeio a uma esplanada no Jardim da Estrela ou no Campo Grande: chapéu, carteira e sapatos brancos, tailleur de verão com saia curta por cima do joelho, pálpebras e lábios lilases. Foi um choque.
Um bando de outra idade estava à espera no pátio, vestidos de escuro como se ainda velassem por D.Carlos e o Príncipe, tias e tios, primalhada curiosa de ver quem é que o pai trouxera de Lisboa, para uma casa que fora sempre amarga para as mulheres. Amarga para a avó e para as duas filhas que ela tivera, ambas mortas, uma com mêses de idade e a outra, a tia Lygia, tristeza ainda recente, a que deixara os tais três filhos rapazes.
A mãe entrava no pátio, escuro naquela tarde de Outubro de 42, sentindo que uma indefinível hostilidade brotava daquelas paredes.
A pouco e pouco foi mudando algumas coisas. Os soalhos, de esfrega à mão por criadas que, de joelhos, os passavam a escova e sabão, começaram a ser de cêra e lustro puxado. As paredes, de uma cal antiga, nas quais se recortavam as manchas castanhas dos quadros pendurados há décadas e detrás dos quais fugia uma multidão de percevejos quando se remexiam para limpar o pó, foram pintadas de fresco.
O primeiro Inverno foi frio, como o são os de Trás-os-Montes e, à temperatura baixa, com a água a congelar nos canos, vieram juntar-se as contingências do racionamento e da Guerra, a electricidade disponível apenas por horas e a cintilar a espaços, a simpatia apenas educada dos sogros. Além do mais, na casa vivia muita gente, muita mais gente do que a mãe gostaria: os meus avós, sendo que o avô estava já com uma aterosclerose avançada e davam-lhe ataques, os Malheiro, o pai deles e a criadagem, a velha Leonida e as ajudantes.
Do desconforto do frio passava-se para o tórrido do Verão. A mãe tinha preferido o Inverno, o calor fora-lhe sempre insuportável.
Para ter tempo só para si, deixava-se ficar a ler até tarde, na varanda ou na sala, e com o vagar das horas recomeçara até a escrever, como já o fizera em Lisboa em solteira. Ficava normalmente até o petróleo estar a acabar no depósito bojudo de um candeeiro francês, portas abertas para a varanda, escuridão lá fora de onde vinha apenas o ruído constante e agradável da fonte da praça, dos grilos e do canto compassado dos rouxinóis e dos melros, a responder do fundo das hortas.
O pai da minha mãe, militar de carreira, republicano e extremamente racionalista, não instruíra os filhos na religião católica. As convicções da mãe neste domínio formaram-se muito tarde, e foi já depois de casada que aderiu de alma e coração e de tal modo que ficou com aquela fé dos convertidos, muito mais fundamentalista e intolerante do que a dos tradicionalistas como o meu pai, mais aberto e compreensivo, a acreditar mais na redenção do que no castigo final. Na época em que veio para Trás-os-Montes, a mãe ainda não era uma católica convicta, convicta a sério... seria antes uma racionalista praticante. E com aquela tendência que todos temos para adaptar um pouco a religião a nós próprios, pode dizer-se que a mãe começou por praticar mesmo um catolicismo racional.
Na época foi assim – a fé veio depois, e reforçada. Mas, por isso, nunca aceitara até aí que o sobrenatural pudesse estar no dia a dia da vida de cada um – e nunca o aceitou. Tudo o que lhe contassem que fosse sobrenatural teria concerteza uma explicação racional.
Numa dessas noites abafadas de Julho, silêncio cortado apenas por uma ou outra melga que volitava, a mãe escrevia na sala. Embrenhada no texto, não se apercebeu logo de um ruído ritmado e surdo que parecia vir do tecto. Quando notou, achou estranho: por cima do tecto não havia nada, apenas o terceiro, o sótão em bruto que ficava sob o telhado, como podia produzir-se aí um ruído daqueles?! Prestando melhor atenção...o ruído desaparecia. Depois voltava, mais nítido, mais insistente... então parava. Entretanto apareceu por ali o meu pai. Também ouvia, havia ali qualquer coisa a mexer-se. Pegaram num candeeiro de azeite e avançaram para o sótão. Quando abriram a porta puderam ver que, sobre um estrado poeeirento de tábuas, o velho berço de baloiço da casa oscilava sozinho.
Para uma racionalista, foi um episódio algo perturbador, embora a mãe tivesse arranjado uma explicação arejada sobre poder ter sido uma brincadeira de gatos – e os gatos são dados a brincadeiras do género e na casa havia vários. Pelo sim pelo não, o berço que as mãos da tia Lygia tinham empurrado pela última vez e que agora estaria na iminência de ser empurrado pelas da minha mãe, uma estranha na casa, foi arrumado longe, no palheiro, e não serviu mais, nem sequer para o mais velho dos meus irmãos. A mãe mandou vir um berço novo de Lisboa, de rodas com molas e caixa forrada de pergamóide.
A vida da mãe, cá em casa, foi sempre difícil. Crónicas faltas de água, repetidas reparações do telhado e dos tectos, incêndios na cozinha, complicadas teias de relacionamento com a família de meu pai, periódicas dificuldades financeiras. As revistas que chegavam cá e traziam a propaganda alemã, inglesa e americana alimentaram no seu espírito a firme certeza de que a vida americana era a melhor: recurso a meios modernos, electricidade para tudo, sociedade sem preconceitos, casas fáceis de manter. Ainda me lembro de a ouvir dizer ao meu pai, onze anos mais velho e de saúde sempre problemática, num misto de coisa séria, sonho impossível e testemunho para nós, os filhos:
- Devíamos era ir para a América, começar vida nova, nem que fosse lavar pratos. Lá é tudo moderno, é tudo mais fácil!...
Somos seis irmãos. O mais velho é o Carlos, depois a Lígia, a Guida, a Pilar, a Dulce e, no fim, a meia dúzia de anos de distância, eu. Quando as manas eram pequenas, dormiam no quarto lá de cima, o da janela do mirante, paredes-meias com o terceiro e ao cimo das escadas em meio caracol de madeira.
Numa noite em que as luzes já estavam apagadas mas em que ainda conversavam, começaram a ouvir dois sons alternados, um surdo e outro de madeira a martelar madeira, corredor adiante, como de alguém com perna de pau que avança. Primeiro pensaram ser sugestão e os sons virem da rua, mas, a certa altura, notaram distintamente que o alguém subia as escadas na direcção do quarto. Começaram então a chamar alto e bom som pelo pai.
Rapidamente, quem quer que fosse se escapuliu corredor adiante em direcção à saleta. O pai acorreu, inteirou-se do sucedido e passou revista às portas e janelas. Não viu ninguém. As portas e janelas estavam todas fechadas por dentro. Oficialmente, ao almoço do dia seguinte, a avó cunhou a versão, concertada durante a manhã em conversas semiescondidas com o pai, de que teriam sido, ela e a sua bengala, as noctívagas misteriosas. Só que a bengala da avó tinha ponta de borracha...
Uma outra vez, já mais crescidas, ocupavam o quarto das duas camas. A meio da noite notaram um ponto de luz pairando sobre os pés da cama e que se movia, aumentando de volume e aproximando-se, baixando sobre a colcha. Mais uma vez desataram a chamar o pai em brados, que veio correndo e que, ao abrir a porta do quarto delas, esboçou um ar de espanto e recuou, logo recobrando a serenidade e procurando sossegá-las.
Ambos os episódios foram contados e recontados já muitas vêzes ao longo dos anos e até têm servido para fazermos brincadeiras sobre fantasmas e coisas do género a propósito. Contudo, nenhum dos episódios teve uma explicação cabal, várias vêzes foram motivo de conversa mas de nenhuma conclusão e os nossos pais sempre procuraram desvalorizá-los, atribuí-los a sugestões e a pesadelos.
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A vinda com a Mariana comigo para a casa, mais de quarenta anos depois da minha mãe, implicou fazermos obras na casa para adaptarmos o rés-do-chão a ser o nosso apartamento de casados. Na antiga adega fizemos a sala com a lareira, na antiga despensa, quarto dos cestos e casa dos banhos fizemos o quarto da filharada, corredor e uma casa de banho. O nosso quarto ficava no que dantes era a loja das batatas e a respectiva casa de banho ocupa agora o antigo galinheiro pequeno.
A Mariana, tal como a minha mãe, também veio de fora para a casa. Tivemos três incêndios na chaminé e algumas inundações. Tudo acontece ou se inicia quando eu não estou. Essas peripécias, às vêzes pequenos nadas, foram avolumando em nós ao longo dos anos um sentimento de já basta, de exaustão. Decidimos um dia mudar de casa, até porque os nossos filhos vão crescendo e começámos a necessitar de mais espaço.
E decidimos, até, mais do que isso: deixar definitivamente esta casa. Curioso que, sempre que pensava nisso, inspirava-se-me um sentimento de alívio. E sempre que hesitávamos, sempre que por um instante nos assaltava a vontade de prolongar ainda um pouco mais a nossa estadia ali, algo acontecia como que a empurrar-nos a pôr-nos dali para fora.
As últimas reparações depois de um dos incêndios que tivemos puseram a sala confortável como ainda nunca a tínhamos tido. Talvez nos tenha assaltado a ideia de ficar mais um pouco, sentir a sala assim quente e afável. De imediato uma chuvada veio argumentar o contrário, arranjou maneira de se infiltrar pelo canto da televisão, molhou tudo, íamos ficando sem parabólica e sem canais por satélite. Reparei rapidamente os estragos – nova infiltração na parede mestra que ficou inchumbada de água, ressumando humidade para todo o ambiente, tornando desconfortável como nunca a sala que estava acolhedora como nunca!
Já por duas vêzes distintas, eu já quase a adormecer, ouvira nitidamente como num filme de alucinação, no nosso quarto, vozes explícitas numa conversa breve e urgente:
- Diz-me quem, diz-me quem!
A que uma voz aflita respondia um queixume:
- Não, mãe! Não, mãe!
- Mas por que é que...
E neste momento o diálogo interrompia-se, eu levantava a cabeça da almofada e perguntava à Mariana se ouvira também. A Mariana também ouvira. Apesar das dúvidas fui várias vêzes à casa paredes meias com a nossa, a tal metade do solar que as partilhas partiram, ver se nas lojas térreas havia pegadas frescas, mas em vão. Um das noites fui mesmo à polícia...”ora, senhor dr., isso lá é algum namoro às escondidas!”. Só que as vozes não eram de namorados, eram vozes mesmo aflitas, numa conversa rápida de sussurro mal disfarçado.
E acontecia-me muitas vêzes estar precisamente no mesmo quarto com a clara sensação de que estava ali mais alguém, de que aquela torneira a pingar eu tinha fechado antes, aquela gaveta mal metida para dentro eu tinha composto há instantes. O nosso quarto estava com infiltrações nas paredes que vinham desde o telhado, dois pisos acima, de um velho caleiro de zinco podre. E o chão, de tijoleira vermelha, estava a esboroar de humidades capilares. A um canto, o salitre estava já a carcomer uma parede rebocada de novo ainda só há meia dúzia de anos.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, mais moderna, mais nova!
Esta frase da minha mãe foi produzida, a primeira vez, nunca soube eu quando. Talvez lhe tenha ocorrido pela primeira vez logo depois de, no pátio de entrada da casa, ter entrado, pelo braço de meu pai, e ter visto todos os outros.
Foi sempre impossível à minha irmã Margarida ouvir essa frase sem ripostar. Talvez que se tenha sempre sentido parte orgânica da casa. É que eu não sei explicar porquê mas quando imagino a cena da mãe toda up to date de Lisboa anos quarenta a entrar no pátio, pelo braço do meu pai, e toda aquela parentela grave ali postada à espera de poder fazer o cumprimento de boas vindas, de casaca preta, vejo nitidamente, num dos degraus de granito das escadas, em pé e ao lado de um vaso de folhas verdes de aspidistra, a cara sorridente, francamente sorridente, da minha irmã Margarida, - como se fosse a cena final do Shining, ! –, no meio dos semblantes sorridentes, cerimoniosamente sorridentes, de todos os outros.
O caixote
© Manuel Cardoso
- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!
Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.
O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!
- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!
Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.
O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!
O frasco azul
© Manuel Cardoso
Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?
A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!
No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?
O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.
A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.
Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!
Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?
A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!
No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?
O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.
A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.
Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!
O Kaladrium
© Manuel Cardoso
Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.
Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.
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