© Manuel Cardoso
- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
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Um dos esqueletos mais bem guardados nos antigos armários da casa era loura, tinha olhos azul-água e a cara estampada dalgumas das nossas antepassadas. Dizem que foi despachada para o Brasil com a mãe, levando na bagagem um dote condicionado a não voltar a aparecer. Nunca nenhum de nós soube dela a não ser por uma frase aqui e ali, em momentos mais graves de discussão e temor.
Parece que a avó lhe fez referências, uma vez por outra, naqueles instantes de viuvez em que ainda lhe vinham à flor da alma as sombras do seu casamento com o avô, nem sempre feliz. Quase não me lembro da avó!
Mas houve outros, mais patentes, que ainda hoje se cruzam comigo na rua, com aqueles traços de família que são mais do que um vestígio genético – a evidência flagrante de antepassados comuns e muito mais recentes do que Adão e Eva. Destas e destes, não houve nenhum que me constasse ter morrido em nossa casa.
Uma das pessoas mais chegadas foi a que foi ama de meu Pai. Ficou sempre a governanta da casa e foi da família muito mais que outros que tiveram dela o apelido e a sorte. Mandou ali dentro com a determinação das avós lendárias do século dezoito, senhoras do seu nariz e doutras coisas dos homens e verdadeiras fundadoras dos cabedais que aguentaram toda a parentela durante os dois séculos seguintes. Mas também esteve cá com mansidão e com a delicadeza das mais santas e mais apagadas, dotadas daquela discrição firme que se revela como uma rocha nos momentos mais instáveis dos dramas íntimos de cada família – dotadas também daquele génio que, nos momentos precisos, arrasa qualquer obstáculo. Morreu no quarto das duas camas, depois de uma agonia que lhe desfez definitivamente o fígado. Lembro-me apenas que respirava a espaços como se gorgolejasse e que exalava um hálito pestilento. Quando já não respirava nem palpitava, o pai e a mãe enfiaram-lhe na boca um algodão embebido em álcool canforado, na vã tentativa de disfarçar o cheiro. Foi levada para a sua aldeia, já morta, muito sentada e direita, de automóvel, num táxi cujo chauffeur ainda protestou qualquer coisa quando a viu soçobrar. Desta história ficou um eco ainda vivo nas histórias de ócio nos cafés da terra. Foi a última pessoa da casa a morrer na casa.
Houve tantos a morrer aqui! Alguns no berço ainda, outros já maiores, houve mesmo um pedinte, ainda no tempo do trisavô morgado, que, numa noite de temporal desabrigado, conseguiu que o ouvissem a mal bater, já sem forças, na pesadona porta da cozinha velha que dava para a varanda das galinhas. Entrou para ao pé do lume, onde a criadagem lhe deu um caldo quente e lhe secou a roupa. O homem tremia e tartamudeava qualquer coisa. Morreu aconchegado numas mantas. Que estranha casa, a que se vinha pedir para cá morrer!
A avó morreu pouco depois de eu nascer mas não morreu na casa. Lembro-me muito vagamente de ver bombeiros com capacetes reluzentes a ir junto da cama dela, uma cama grande, D.José, com dossel, na casa das tias, em frente à nossa, onde passara os últimos anos com as irmãs, a Tina e a Ticha. Trouxeram-na para a casa para se lhe rezar e para ser velada.
A irmã mais nova do Pai morreu ainda menina, no ano em que a monarquia se preparava também para morrer. Foi um prenúncio de infelicidades ainda maiores na casa, que os avós quase acabavam de reinaugurar, depois de umas obras posteriores a partilhas.
O tio Alberto, o mais velho, morreu em Lourenço Marques no início dos setenta e a tia Lygia morreu muito antes e muito nova, em trinta e nove e com apenas 34 anos, deixando órfãos os três primos Malheiro: o José, o João e o Chico.
O pai também não morreu na casa. Aliás, saiu de casa para morrer. Lembro-me nitidamente – como poderia esquecer?
De tarde sentiu-se indisposto e com uma dor contínua no peito que se foi esbatendo. Depois de jantar foi até ao Café Central onde esteve com amigos, conversou, gracejou até e ainda passeou com a Pilar, que estava cá porque era fim-de-semana comprido do Corpo de Deus. Sentiu-se, então, pior. Voltou para casa e dali foi para o hospital (um hospital que ele próprio ajudara a construir no Estado Novo e para o qual lhe arranjara algum dinheiro o Frederico Ulrich, então ministro, e no qual nascemos todos os irmãos, excepto o mais velho, tido na casa). A Mãe e a Dulce telefonaram-me, estava eu em Travanca. O Álvaro levou-me ao hospital. O pai estava deitado numa marquesa, o Dr. Simão e o Dr. Urze inclinados sobre ele a fazer-lhe uma massagem cardio-pulmonar. A irmã Judite estava junto. Vi-o ainda a respirar ofegante e profundamente, duas ou três vêzes. Estava morto. Apareceu entretanto o Padre Melo que ainda o ungiu. Levei-o para casa numa ambulância. Fui buscar um caixão. Foi o último da casa que foi velado em casa, no quarto do pátio. Foi o último dos irmãos a morrer.
Foi o último a morrer que foi velado na casa.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, moderna, com máquinas, fácil de arrumar e de limpar!
Esta frase, ouvida vezes sem conta a minha mãe que a soltava num misto de queixume revoltado e de desesperança, irritou sempre de modo especial a minha irmã Margarida para quem a afirmação era mais do que uma ofensa. E se, então, fosse dita num momento de suspiro, diante de uma parede em que a água infiltrada desenhava modelos elaborados do caos, ou depois de uma manhã de limpezas num quarto, em que um tecto de estuque caído fazia uma simulação de guerra, nesses momentos era ainda mais insuportável a ambas: à minha mãe conter-se e à minha irmã ouvi-la:
- A casa é velha, está uma choupana, vão-se mas é embora, meus filhos, isto está tudo a cair!
Levei anos a compreender aquela atitude. De ambas.
A primeira vez que a mãe vira a casa fora dias depois de casar.
Conhecera o meu pai na Guarda, no sanatório, para onde tinham ido nos anos trinta. O pai tinha vindo tuberculoso de Moçambique e a mãe tinha vindo com a tia Aida de Lisboa. Todos tinham chegado à Guarda como quem vai para uma estação de destino – quem diria que seria apenas um apeadeiro?
Decorria a II Grande Guerra quando casaram na igreja de Nª.Sª.de Fátima, ainda em obras, às Avenidas Novas, em Lisboa. Dias depois, a mãe vê-se diante de um meio solar dividido em partilhas de que nunca ouvira falar porque o pai falava sempre na casa.
A mãe chegava como quem ia para um chá na Pastelaria Versailles ou para um passeio a uma esplanada no Jardim da Estrela ou no Campo Grande: chapéu, carteira e sapatos brancos, tailleur de verão com saia curta por cima do joelho, pálpebras e lábios lilases. Foi um choque.
Um bando de outra idade estava à espera no pátio, vestidos de escuro como se ainda velassem por D.Carlos e o Príncipe, tias e tios, primalhada curiosa de ver quem é que o pai trouxera de Lisboa, para uma casa que fora sempre amarga para as mulheres. Amarga para a avó e para as duas filhas que ela tivera, ambas mortas, uma com mêses de idade e a outra, a tia Lygia, tristeza ainda recente, a que deixara os tais três filhos rapazes.
A mãe entrava no pátio, escuro naquela tarde de Outubro de 42, sentindo que uma indefinível hostilidade brotava daquelas paredes.
A pouco e pouco foi mudando algumas coisas. Os soalhos, de esfrega à mão por criadas que, de joelhos, os passavam a escova e sabão, começaram a ser de cêra e lustro puxado. As paredes, de uma cal antiga, nas quais se recortavam as manchas castanhas dos quadros pendurados há décadas e detrás dos quais fugia uma multidão de percevejos quando se remexiam para limpar o pó, foram pintadas de fresco.
O primeiro Inverno foi frio, como o são os de Trás-os-Montes e, à temperatura baixa, com a água a congelar nos canos, vieram juntar-se as contingências do racionamento e da Guerra, a electricidade disponível apenas por horas e a cintilar a espaços, a simpatia apenas educada dos sogros. Além do mais, na casa vivia muita gente, muita mais gente do que a mãe gostaria: os meus avós, sendo que o avô estava já com uma aterosclerose avançada e davam-lhe ataques, os Malheiro, o pai deles e a criadagem, a velha Leonida e as ajudantes.
Do desconforto do frio passava-se para o tórrido do Verão. A mãe tinha preferido o Inverno, o calor fora-lhe sempre insuportável.
Para ter tempo só para si, deixava-se ficar a ler até tarde, na varanda ou na sala, e com o vagar das horas recomeçara até a escrever, como já o fizera em Lisboa em solteira. Ficava normalmente até o petróleo estar a acabar no depósito bojudo de um candeeiro francês, portas abertas para a varanda, escuridão lá fora de onde vinha apenas o ruído constante e agradável da fonte da praça, dos grilos e do canto compassado dos rouxinóis e dos melros, a responder do fundo das hortas.
O pai da minha mãe, militar de carreira, republicano e extremamente racionalista, não instruíra os filhos na religião católica. As convicções da mãe neste domínio formaram-se muito tarde, e foi já depois de casada que aderiu de alma e coração e de tal modo que ficou com aquela fé dos convertidos, muito mais fundamentalista e intolerante do que a dos tradicionalistas como o meu pai, mais aberto e compreensivo, a acreditar mais na redenção do que no castigo final. Na época em que veio para Trás-os-Montes, a mãe ainda não era uma católica convicta, convicta a sério... seria antes uma racionalista praticante. E com aquela tendência que todos temos para adaptar um pouco a religião a nós próprios, pode dizer-se que a mãe começou por praticar mesmo um catolicismo racional.
Na época foi assim – a fé veio depois, e reforçada. Mas, por isso, nunca aceitara até aí que o sobrenatural pudesse estar no dia a dia da vida de cada um – e nunca o aceitou. Tudo o que lhe contassem que fosse sobrenatural teria concerteza uma explicação racional.
Numa dessas noites abafadas de Julho, silêncio cortado apenas por uma ou outra melga que volitava, a mãe escrevia na sala. Embrenhada no texto, não se apercebeu logo de um ruído ritmado e surdo que parecia vir do tecto. Quando notou, achou estranho: por cima do tecto não havia nada, apenas o terceiro, o sótão em bruto que ficava sob o telhado, como podia produzir-se aí um ruído daqueles?! Prestando melhor atenção...o ruído desaparecia. Depois voltava, mais nítido, mais insistente... então parava. Entretanto apareceu por ali o meu pai. Também ouvia, havia ali qualquer coisa a mexer-se. Pegaram num candeeiro de azeite e avançaram para o sótão. Quando abriram a porta puderam ver que, sobre um estrado poeeirento de tábuas, o velho berço de baloiço da casa oscilava sozinho.
Para uma racionalista, foi um episódio algo perturbador, embora a mãe tivesse arranjado uma explicação arejada sobre poder ter sido uma brincadeira de gatos – e os gatos são dados a brincadeiras do género e na casa havia vários. Pelo sim pelo não, o berço que as mãos da tia Lygia tinham empurrado pela última vez e que agora estaria na iminência de ser empurrado pelas da minha mãe, uma estranha na casa, foi arrumado longe, no palheiro, e não serviu mais, nem sequer para o mais velho dos meus irmãos. A mãe mandou vir um berço novo de Lisboa, de rodas com molas e caixa forrada de pergamóide.
A vida da mãe, cá em casa, foi sempre difícil. Crónicas faltas de água, repetidas reparações do telhado e dos tectos, incêndios na cozinha, complicadas teias de relacionamento com a família de meu pai, periódicas dificuldades financeiras. As revistas que chegavam cá e traziam a propaganda alemã, inglesa e americana alimentaram no seu espírito a firme certeza de que a vida americana era a melhor: recurso a meios modernos, electricidade para tudo, sociedade sem preconceitos, casas fáceis de manter. Ainda me lembro de a ouvir dizer ao meu pai, onze anos mais velho e de saúde sempre problemática, num misto de coisa séria, sonho impossível e testemunho para nós, os filhos:
- Devíamos era ir para a América, começar vida nova, nem que fosse lavar pratos. Lá é tudo moderno, é tudo mais fácil!...
Somos seis irmãos. O mais velho é o Carlos, depois a Lígia, a Guida, a Pilar, a Dulce e, no fim, a meia dúzia de anos de distância, eu. Quando as manas eram pequenas, dormiam no quarto lá de cima, o da janela do mirante, paredes-meias com o terceiro e ao cimo das escadas em meio caracol de madeira.
Numa noite em que as luzes já estavam apagadas mas em que ainda conversavam, começaram a ouvir dois sons alternados, um surdo e outro de madeira a martelar madeira, corredor adiante, como de alguém com perna de pau que avança. Primeiro pensaram ser sugestão e os sons virem da rua, mas, a certa altura, notaram distintamente que o alguém subia as escadas na direcção do quarto. Começaram então a chamar alto e bom som pelo pai.
Rapidamente, quem quer que fosse se escapuliu corredor adiante em direcção à saleta. O pai acorreu, inteirou-se do sucedido e passou revista às portas e janelas. Não viu ninguém. As portas e janelas estavam todas fechadas por dentro. Oficialmente, ao almoço do dia seguinte, a avó cunhou a versão, concertada durante a manhã em conversas semiescondidas com o pai, de que teriam sido, ela e a sua bengala, as noctívagas misteriosas. Só que a bengala da avó tinha ponta de borracha...
Uma outra vez, já mais crescidas, ocupavam o quarto das duas camas. A meio da noite notaram um ponto de luz pairando sobre os pés da cama e que se movia, aumentando de volume e aproximando-se, baixando sobre a colcha. Mais uma vez desataram a chamar o pai em brados, que veio correndo e que, ao abrir a porta do quarto delas, esboçou um ar de espanto e recuou, logo recobrando a serenidade e procurando sossegá-las.
Ambos os episódios foram contados e recontados já muitas vêzes ao longo dos anos e até têm servido para fazermos brincadeiras sobre fantasmas e coisas do género a propósito. Contudo, nenhum dos episódios teve uma explicação cabal, várias vêzes foram motivo de conversa mas de nenhuma conclusão e os nossos pais sempre procuraram desvalorizá-los, atribuí-los a sugestões e a pesadelos.
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A vinda com a Mariana comigo para a casa, mais de quarenta anos depois da minha mãe, implicou fazermos obras na casa para adaptarmos o rés-do-chão a ser o nosso apartamento de casados. Na antiga adega fizemos a sala com a lareira, na antiga despensa, quarto dos cestos e casa dos banhos fizemos o quarto da filharada, corredor e uma casa de banho. O nosso quarto ficava no que dantes era a loja das batatas e a respectiva casa de banho ocupa agora o antigo galinheiro pequeno.
A Mariana, tal como a minha mãe, também veio de fora para a casa. Tivemos três incêndios na chaminé e algumas inundações. Tudo acontece ou se inicia quando eu não estou. Essas peripécias, às vêzes pequenos nadas, foram avolumando em nós ao longo dos anos um sentimento de já basta, de exaustão. Decidimos um dia mudar de casa, até porque os nossos filhos vão crescendo e começámos a necessitar de mais espaço.
E decidimos, até, mais do que isso: deixar definitivamente esta casa. Curioso que, sempre que pensava nisso, inspirava-se-me um sentimento de alívio. E sempre que hesitávamos, sempre que por um instante nos assaltava a vontade de prolongar ainda um pouco mais a nossa estadia ali, algo acontecia como que a empurrar-nos a pôr-nos dali para fora.
As últimas reparações depois de um dos incêndios que tivemos puseram a sala confortável como ainda nunca a tínhamos tido. Talvez nos tenha assaltado a ideia de ficar mais um pouco, sentir a sala assim quente e afável. De imediato uma chuvada veio argumentar o contrário, arranjou maneira de se infiltrar pelo canto da televisão, molhou tudo, íamos ficando sem parabólica e sem canais por satélite. Reparei rapidamente os estragos – nova infiltração na parede mestra que ficou inchumbada de água, ressumando humidade para todo o ambiente, tornando desconfortável como nunca a sala que estava acolhedora como nunca!
Já por duas vêzes distintas, eu já quase a adormecer, ouvira nitidamente como num filme de alucinação, no nosso quarto, vozes explícitas numa conversa breve e urgente:
- Diz-me quem, diz-me quem!
A que uma voz aflita respondia um queixume:
- Não, mãe! Não, mãe!
- Mas por que é que...
E neste momento o diálogo interrompia-se, eu levantava a cabeça da almofada e perguntava à Mariana se ouvira também. A Mariana também ouvira. Apesar das dúvidas fui várias vêzes à casa paredes meias com a nossa, a tal metade do solar que as partilhas partiram, ver se nas lojas térreas havia pegadas frescas, mas em vão. Um das noites fui mesmo à polícia...”ora, senhor dr., isso lá é algum namoro às escondidas!”. Só que as vozes não eram de namorados, eram vozes mesmo aflitas, numa conversa rápida de sussurro mal disfarçado.
E acontecia-me muitas vêzes estar precisamente no mesmo quarto com a clara sensação de que estava ali mais alguém, de que aquela torneira a pingar eu tinha fechado antes, aquela gaveta mal metida para dentro eu tinha composto há instantes. O nosso quarto estava com infiltrações nas paredes que vinham desde o telhado, dois pisos acima, de um velho caleiro de zinco podre. E o chão, de tijoleira vermelha, estava a esboroar de humidades capilares. A um canto, o salitre estava já a carcomer uma parede rebocada de novo ainda só há meia dúzia de anos.
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- A casa é velha, filhos, um dia arranjem mas é outra, mais moderna, mais nova!
Esta frase da minha mãe foi produzida, a primeira vez, nunca soube eu quando. Talvez lhe tenha ocorrido pela primeira vez logo depois de, no pátio de entrada da casa, ter entrado, pelo braço de meu pai, e ter visto todos os outros.
Foi sempre impossível à minha irmã Margarida ouvir essa frase sem ripostar. Talvez que se tenha sempre sentido parte orgânica da casa. É que eu não sei explicar porquê mas quando imagino a cena da mãe toda up to date de Lisboa anos quarenta a entrar no pátio, pelo braço do meu pai, e toda aquela parentela grave ali postada à espera de poder fazer o cumprimento de boas vindas, de casaca preta, vejo nitidamente, num dos degraus de granito das escadas, em pé e ao lado de um vaso de folhas verdes de aspidistra, a cara sorridente, francamente sorridente, da minha irmã Margarida, - como se fosse a cena final do Shining, ! –, no meio dos semblantes sorridentes, cerimoniosamente sorridentes, de todos os outros.
domingo, 25 de novembro de 2007
O caixote
© Manuel Cardoso
- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!
Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.
O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!
- Já veio o caixote!
Chegara o caixote! Ainda não a casa mas à estação do combóio, lá longe mas já cá tão perto. Quase um mês antes tinha partido de Lourenço Marques, em Moçambique, e viera num navio a flutuar até Lisboa. Aí tinham-no descarregado de um porão com um guindaste que o pousara no chão do cais com outros caixotes, amarrados por uma rede gigante. Os estivadores arrumaram-no num vagão do combóio de mercadorias.
- E daí veio até cá!
- Não - dizia o pai, alongando a explicação para se assemelhar ao tamanho da viagem – ainda foi preciso mudar na estação de Alcântara, onde distribuem as mercadorias pelos destinos. Depois foi despachado cá para Macedo mas no Tua tiveram de transbordá-lo outra vez para um vagão mais pequeno, dos da nossa linha. Os que vêm de Lisboa e seguem pelo Douro são mais largos.
- Pois, a nossa linha é estreita. Mas o combóio é tão grande!
- Grandes são os de lá de baixo, os expressos e os foguetes, esses é que são grandes! E então em África, filho, em África é que os há tão compridos como da estação a nossa casa, com duas locomotivas a puxar e uma a empurrar!
- Ah! Tão grandes!...
Chegávamos entretanto à estação, a essa hora sem movimento, apenas o Vila Real com a carroça, à espera que um moço de fretes e o factor se entendessem com as etiquetas, penduradas de dois cestos de verga a tresandar a peixe.
- Bom dia, senhor Cardoso! – disseram em uníssono.
- Estará para aí um caixote?
- Está, está, e não veio de perto!
O caixote já aguardava ao pé da porta, numa vagoneta de mão, foi só conferir o recibo e o Vila Real pousou-o na carroça com jeito e cuidado, empurrando-o para debaixo do banco través afim de equilibrar o peso. Apesar da rapidez, pude logo vislumbrar que as tábuas estavam repletas de letras cruzadas e de papéis colados dos diversos despachos, das diversas etapas. Havia mesmo uma grande mancha num dos cantos e atrevi-me a sugerir, apontando o acastanhado ao pai, que talvez tivesse sido dalguma onda, no mar, a que me respondeu de forma cúmplice:
- Talvez, talvez. Ao dobrar o cabo há umas ondas enormes que às vêzes varrem os navios de ponta a ponta!
Todos os anos havia um caixote que partia de nossa casa milimetricamente preenchido de amêndoas, nozes, azeite, vinho dos primos de Cotas, ameixas secas e passas de moscatel do quintal. As garrafas iam acondicionadas em camisas de palha e folhas de Comércios do Porto que, amarrotadas, almofadavam frascos com doces de abóbora, de cerejas e de ginja. Em espaços incongruentes comprimiam-se ladrilhos de marmelada embrulhados em papel vegetal e quando já só faltava pregar, e à força, a última tábua, o pai arranjava ainda maneira de enfiar um derradeiro frasco com alcaparras que ficara esquecido em cima da banca. Este caixote de pinho, feito com tábuas de outros caixotes que cá a casa tinham vindo parar com espumantes da Raposeira e de Monte Crasto, ia depois para a carpintaria do Lameiras onde era novamente couraçado em pinho mais grosso e o espaço que ficava entre ambos os cascos, era todo cheio de serradura e aparas de madeira. No final eram-lhe conferidas as medidas, pintavam-se-lhe as letras de identificação com escantilhões de zinco, já muito borratados, e pesava-se numa balança decimal.
As coisas para meter dentro do caixote tinham sido seleccionadas e preparadas ao longo de mêses, cuidadosamente guardadas nos armários da sala ou especialmente arrumadas numa das prateleiras da despensa. «Esse frasco não se pode encetar: é para mandar para o Alberto!». Uma carta explicativa acompanhava os preparativos e era expedida via aérea no mesmo dia. O caixote ia para a estação na carroça do Vila Real. Despedíamo-nos dele quase como se fosse alguém que partia para uma aventura! E íamos seguindo, numa imaginação permanente, as diversas peripécias daquela viagem. “A estas horas o caixote já chegou ao Tua”. “Agora estão a descarregá-lo para a estiva”. “Já saiu do Tejo”. Dois dias depois o assunto ia esquecendo. Mas num momento imprevisto, quebrando um silêncio a seguir ao café na estalagem, o pai murmurava em segredo, olhando o relógio como se cronometrasse uma etapa:
- Deve estar pelo Equador!
Semanas passavam-se sem mais. Até que o carteiro vinha com o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, um ou dois postais e uma carta de avião!
- Pai! Uma carta do tio Alberto!
Numa letra primorosa e característica, o tio Alberto começava sempre por assuntos para mim menores e só a meio é que vinha o importante: chegara o caixote! Tinha sido festa, afastadas as saudades que todos aqueles mimos traziam de casa.
O caixote que o tio mandava era diferente do nosso. Era maior. As tábuas eram mais grossas e os cantos eram reforçados. Abri-lo, isso era uma cerimónia. Umas vêzes no pátio, outras na cozinha, começava-se sempre por ir tirando folhas de jornais amarrotadas que aconchegavam cocos.
Cocos! Chocalhávamo-los a ouvir a água no interior, pedíamos logo para abrir um furo num para lhe sorver o sumo. Era o início de um espairar de cheiros exóticos que ficavam pela casa, uns mais intensos e outros mais discretos. O dos ananases espalhava-se pela saleta e pelo corredor: em pregos espetados na padieira da porta, ficavam pendurados a aguardar o Natal. O do coco misturava-se com o do caju, guardados na parte de baixo do guarda-louça da sala. O do caril enchia a casa toda nos jantares em que vinham também o senhor Obreia, o dr. Botelho e o dr.Simão. E cada coisa que saía suscitava perguntas e histórias – que o pai contava a espicaçar-nos a imaginação e que só mais tarde pude avaliar até que ponto seriam saudade.
- Uma tarde, estávamos na repartição em Lourenço Marques e houve um tremor de terra. Não foi muito grande mas durou bastante. Caiu tudo o que eu tinha numa prateleira atrás da minha secretária menos uma lata de chá e um frasco de caril que eu tinha para mandar para cá para a Metrópole para os vossos avós e para a Lygia.
Depois de vazio, quase esgotado todo aquele manancial tropical, o caixote ficava uns dias no pátio de dentro, à porta da adega, até que o Zézé carpinteiro o levava para ainda lhe usar as tábuas.
- Isto é que é madeira!
Virava-o de um lado e de outro para o observar com minúcia, apontava uma rachadela ali como se fosse um achado mas logo aparava o reparo:
- Já viu, senhor Cardoso, nem sequer um nó à vista! Aquilo é que devem ser árvores!
E eram. Havia fotografias ainda das voltas em que pai por lá andara e viam-se árvores enormes, quase gigantes, muito maiores que o castanheiro da Índia que tínhamos no quintal ou do que a nogueira grande do Lameirão que o ciclone de 41 partira por meio.
O Zézé levava o caixote vazio e por conta fazia depois uns trabalhitos de reparação nos móveis da casa.
Os ananases acabavam pelo Natal, o caju e os cocos ao longo do inverno. Na Páscoa ainda se bebia chá de Moçambique e houve um ano, grande acontecimento!, que, para se assinalar que já tínhamos telefone, se pediu de véspera uma ligação intercontinental com pré-aviso para a casa do Tio Alberto. Nós aguardávamos na sala, sentados à mesa, folar , chá e doce de abóbora com ovos e nozes. O pai falava da saleta, ouviamos-lhe a voz e o contentamento. Quando acabou, abriu-se a porta e logo nos disse, brilho nos olhos, óculos na mão e a polir as lentes com um lenço:
- O Alberto manda muitos beijos e saudades para todos. Diz que também estão a comer doce de abóbora e a beber do mesmo chá que nós!
O frasco azul
© Manuel Cardoso
Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?
A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!
No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?
O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.
A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.
Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!
Nunca pude pegar no frasco azul que estava na prateleira de cima do armário fechado à chave. Era diferente de todos os que estavam na mesma fila e, durante muitos anos, foi mais do que um frasco, foi o centro dos mistérios daquela farmácia porque o doutor Alves, grave e rabugento quando eu lhe falava nele, só me advertia:
- Naquele frasco nunca se mexe!
E eu chegava a pensar em Aladinos escondidos porque, de outro modo, para que se havia de querer um frasco em que nunca se mexe?
A farmácia era um mundo maravilhoso. Armários de cerejeira com portas de vidrinhos forravam todas as paredes e serviam de divisória a vários compartimentos. Tinham linhas esguias com movimentos arte nova que lhes acentuavam mistérios e encantos. O balcão ficava ao centro do salão de entrada onde as pessoas eram atendidas. Sobre ele, havia duas balanças: uma de precisão, dentro de uma caixa de vidro, e outra de pratos de latão reluzente onde o ajudante Julinho pesava cartuchos com folhas de sene e outros chás. Todos estes estavam em potes de faiança, em prateleiras à vista, e eu gostava de assistir àquelas andanças de tira o pote, pousa no balcão, tira a tampa, estende um papel, despeja folhas secas. Cada pote com a sua virtude, com a sua cor e, sobretudo, com o seu aroma peculiar.
Que para aromas a sério não havia como as essências. Estas estavam num armário lá dentro, em frasquinhos pequeninos de vidros multicores, e era também lá dentro que, com gestos de uma meticulosidade de exagero, se misturavam, gota-a-gota, à água de rosas ou à água-de-colónia para dar uma apurada fragrância. Ficava no ar um perfume que logo fazia ali o cheiro da casa das tias ou da casa dos primos, segundo as gotas a mais ou a menos que se vertiam disto ou daquilo dentro das garrafinhas quadradas de vidro facetado, de rótulos já gastos e em que murchavam flores amarelas.
De vez em quando, vinham receitas de manipulados mais complicados que o Julinho lia com ar entendido mas para as quais ia chamar o doutor Alves que ou estava à porta a conversar com os amigos ou estava sentado a uma secretária cheia de papéis. Quando eu andava por ali (e eu andava por ali quando o meu pai conversava com o doutor Alves) ia até lá dentro depois do pai dar licença, dizendo:
- Ó Alves, deixe lá o garoto ir lá dentro meter o bedelho – e olhava para mim com manifesta cumplicidade.
E eu ia e ficava fascinado a ver abrir-se o armário onde estava o frasco azul e a tirar-se um pozinho de outro frasco com a ponta de uma espátula, misturá-lo num almofariz de porcelana, juntar gotas de qualquer coisa, misturar depois com manteiga de cacau e meter, cuidadosamente, numa caixinha redonda de papel encerado em cuja tampa se escreviam umas letras e uns números. Ficava sempre tudo no seu lugar e o armário era fechado à chave, uma chave pequenina que o doutor Alves tinha presa à corrente do relógio. O Julinho aparecia então e limpava escrupulosamente a pedra de mármore, as espátulas e tudo o que fora utilizado.
Uma tarde houve uma dessas receitas para aviar. Já estava eu lá dentro e o doutor Alves olhou para o papel, fitou-me um instante e disse-me:
- Chega-te mais pr’além!
Tirou a chave do bolso do colete, esticou a corrente, abriu o armário. Estendeu o braço e levou a mão ao frasco azul, pousando-o com todo o cuidado no tampo de mármore e dele tirou um quase nada de pó, com uma espatulazinha, que sacudiu para um papel colocado numa balança pequena de pratos suspensos. Fechou o frasco, voltou a pô-lo na prateleira, lá em cima, à esquerda de todos, e disse-me:
- Neste frasco nunca se mexe!
Como ficava suspenso daquela frase! Um frasco intocável a não ser para o doutor Alves! Atarracado e muito azul, parecido com o do iodo mas mais forte, boca mais larga, mais pequeno e mais rotundo e misterioso, muito mais misterioso que o do iodo! Daí que tenha sido uma desilusão quando, finda mais uma hora de esperas e de misturas, vi o doutor Alves entregar ao cliente um frasquito com um líquido transparente e recomendar-lhe que devia pôr umas quantas gotas no olho inflamado. Estava à espera de algo mais sensacional, mais raro do que um simples remédio, um colírio para os olhos! Foi a única vez que vi mexer no frasco azul para aviar uma receita. Ainda me atrevi a perguntar o porquê de um frasco tão especial mas a resposta foi vaga demais:
- Não é para meninos! Nunca se mexe naquele frasco!
No fim desse verão fui para um colégio e quando voltei no Natal tive o desapontamento de saber que o doutor Alves morrera e que a farmácia fechara. Solteirão, vieram uns sobrinhos de fora herdar o espólio e o doutor Castro, um advogado que tratara da liquidação da herança, viera a ficar com parte do recheio como forma de pagamento. Pelo Ano Novo já se sabia que vinha para cá um outro doutor a abrir outra farmácia. Teve que ser outra porque o dono da casa onde ficava a antiga não se entendeu com o novo inquilino quanto a valores de arrendamento. Mas quase tudo o que estava naquela passou para a nova. Foi o Julinho quem tratou da mudança e ele foi junto com a mobília, adoptando logo o novo patrão, o doutor Jorge. Correu tudo bem, ainda assisti ao transporte dos armários na carroça do Vila Real antes de partir para as aulas, vi encherem-se as estantes com a frascaria e os apetrechos todos. Quase todos porque o cofre e o armário pequeno lá de dentro ficaram em casa do doutor Castro. Dizia o Julinho que ele queria mais tarde fazer negócio com o novo doutor. Ele achava aquilo mal, não devia ter ficado com aquelas coisas em casa. Afinal, eram da farmácia e os sobrinhos do doutor Alves não lhe tinham já pago o suficiente em dinheiro?
O doutor Castro tinha uma filha, mais velha do que eu mas muito nova também. Todos diziam que era muito bonita, que era mesmo a mais bonita das meninas da vila mas nem por isso tinha pretendentes porque o pai a aferrolhava e a mantinha à distância de calças. Que eu soubesse. Mas ela morreu enquanto eu estive fora nesse trimestre e quando cheguei para férias da Páscoa recebi instruções terminantes em casa para não falar do assunto a ninguém e muito menos não dizer nada à família do doutor Castro. Nem sequer os pêsames. A história estava para mim completa se não fosse a visita à nova farmácia.
A nova farmácia cheirava a drogas mas de um modo diferente da antiga, era um cheiro mais limpo. Havia umas estantes novas em que se alinhavam remédios já prontos, em embalagens coloridas que agora se vendiam muito. O Julinho mostrou-me tudo e até me disse que o novo doutor sabia mais do que o doutor Alves e que estava a aumentar muito a freguesia. Também lhe tinha aumentado o ordenado. Os compartimentos de dentro eram mais simples e ao sítio onde se faziam as preparações e manipulados, o Julinho chamava agora laboratório. Era neste espaço que estava o armário com os frascos fechados à chave. Lá estavam todos com os seus rótulos que eu agora lia bem. Havia nomes de pronúncia engraçada como “estricnina” e mesmo cómicos como “fezes de ouro”. Dois frascos iguais de “cantáridas em pó” e ... não estava lá o frasco azul!
- Então o menino não sabe? Com esse frasco é que se matou a filha do doutor Castro! Eu logo vi que não era frasco que se tivesse em casa!
Fiquei atónito! Então por isso...e o Julinho continuou:
- Aquele frasco era veneno! O maior veneno da farmácia!
- Como é que se chamava?
- Cianeto!
- Cianeto! E então o frasco? Onde é que está?
- O frasco está no tribunal.
Não percebi então muito bem as explicações do Julinho sobre tudo aquilo mas fiquei perfeitamente a entender o ar sério do doutor Alves quando mexia no frasco e afirmava peremptório:
- Neste frasco nunca se mexe!
O tribunal mandou o frasco para a farmácia do hospital e por lá andou durante anos até que ficou vazio e até que o hospital teve obras. Este foi praticamente arrasado e todo o mobiliário, utensílios obsoletos e trastes que sempre aparecem em edifícios antigos andaram aos tombos por arrecadações provisórias, foram diminuindo por delapidações e destruições, dos restos acabou por fazer-se um leilão ao monte.
Dezenas de anos depois, num rebusco no armazém onde se guardava o bric-à-brac, a Joaninha Centeno encontrou meia dúzia de frascos e de potes antigos. Ela é a farmacêutica nova, filha do doutor Jorge, acabou o curso e de refazer a velha farmácia da vila. Com a remodelação tudo mudou. Os armários, o balcão, a luz, tudo diferente. Não há filas de frascos e potes orgulhosamente perfilados em prateleiras arrumadas. Gavetas, com rolamentos suaves, guardam por ordem alfabética centenas de caixas com nomes insípidos lidos com indiferença por um visor de uma máquina de pagamento automático. Daí que a Joaninha quisesse essa meia dúzia de frascos e de potes antigos para decorar, para dar um toque de farmácia à sua loja. No meio deles encontrou o frasco azul. Ficou contente quando o marido, dado a antiguidades, lho gabou. Que era antiquíssimo, da fábrica do Rato ou dos primeiros da Marinha Grande, uma preciosidade. Atarracado, boca larga, tampa esmerilada e já falhosa na pega, bonito, diferente de todos os outros. E quando o vi sozinho e em destaque na prateleira de vidro numa destas tardes em que fui comprar aspirinas, estendi os dedos para lhe pegar. Ouvi de súbito a Joaninha:
- Manel, nesse frasco não se mexe!
Ela contou-me a preciosidade que ali tinha. Que não queria por nada que se partisse. Eu contei-lhe a minha história do frasco. E nunca mexi naquele frasco!
O Kaladrium
© Manuel Cardoso
Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.
Em Safres, pequeno lugar agreste encastoado nos penhascos de granito sobre o Tua, brotou uma família de clérigos. Entre todos, o António desconcertava e sobressaía. Logo pela manhã, rezada a hora prima, ar ainda frio e promessa ainda da luz nascente, saía a caminho dos seus pobres e com tal entusiasmo – ele amava o próprio amor! – que se diria antes ter Deus à sua espera. Era essa a sua oração íntima: “um dia, meu Deus, fazei-me ir ter convosco nesta hora!”.
Nesse afã se demorava mas sem faltar a qualquer obrigação, de modo que se murmurava que alguém mais o ajudava a calcorrear as distâncias e a não ser notado nas ausências. Não faltava sequer quem jurasse que, na ponte de Sabrosa, num ápice atravessava aos saltos de ameia em ameia.
De tal modo que, apesar do recôndito do sítio, a ele chegou o olhar arguto de D.João de Sousa, Bispo do Porto e Arcebispo Primaz de Braga, fazendo dele seu pagem e capelão – e abrigando-o assim de uma penumbra de superstição que sobre ele se vinha tecendo.
Serviu o prelado durante anos a fio até que um dia começou a doer-se dos rins. E cegou. A sua resignação fez-se à altura da sua fatalidade. Nem os médicos de Sabrosa nem os de Murça, metidos a caminho de Safres no mister de lhe dar saúde, lhe aliviavam, sequer, as dores.
Desde finados de 1709 que ficou de cama.
O vento e a invernia fustigavam as janelas do quarto e ramalhavam a mata. As neves desse inverno grave de fomes trouxeram os lobos a rondar como agentes dessa morte anunciada e os seus uivos repetidos ouviam-se como um eco dos gemidos aflitos do padre. Pelo Natal ficou sem se mover, dores constantes e mais agudas, de hora a hora pedindo que o mudassem não tanto para alívio mas mais para entreter a morte, prolongar a redenção.
Apesar de cego, das pontadas que lhe atenazavam as costas, das dores que lhe oprimiam o estômago, da incapacidade de se mexer, o seu espírito estava sempre refugiado naquelas que foram as suas horas das horas, nos momentos da luz nascente das manhãs, no tempo da sua felicidade.
Lúcido, acompanhava as orações que se faziam no quarto, dia a dia, semana a semana, recitadas pelos circunstantes que o visitavam de longe, toada monótona de invocações e suspiros. Até que numa terça feira de Fevereiro se apercebeu de um som diferente. E perguntou.
Todos se calaram, atentos a uma toada inaudita num timbre inaudito. Vinha de fora de casa. Abriram uma das janelas. Não chovia mas as árvores pingavam ainda. Num sobreiro, encosta acima, um pássaro branco desconhecido entoava uma melodia suave, apaziguadora.
Pediu os sacramentos. Rezaram-lhe o ofício da agonia. Três dias o pássaro cantou, música penetrante pelos pingos da chuva que caía, escura e persistente. Desde manhã de sexta feira que uma inquietação interior o perturbou mais ainda. A mesma ave cantou mais forte, mais melodiosa, mais arrebatadora. Abriram de novo a portada da janela para se ouvir melhor. Foi então que, a flutuar, o kaladrium passou defronte e, virando o pescoço, fitou os olhos vazios do doente.
Abraçado a um Cristo, sentiu que as dores o estavam a deixar. “Só não sei, meu Deus, por que não me deixastes morrer no princípio de uma manhã, a cair da ponte de Sabrosa ou da de Canaveses, quando ainda mal se vê e o sol desponta onde despontou também a vossa luz”.
Um vento suave lavou o céu sobre o rio, a leste de Safres, e uma luz paradoxal, vinda de nascente, brilhou por instantes nos seus olhos cegos.
- Eu a pensar que ia ser noite e ainda vai ser a aurora!
Nunca mais ninguém viu ou ouviu aquele pássaro branco.
FOGO!
© Manuel Cardoso
- Deixa arder! Deixa arder, que é do Menéres!
- Sai daí que ainda te chamuscas, ó palonço!, deixa arder, que é do Menéres!
O incêndio lavrava feroz na encosta de cá do rio, um mato denso de tojo e de estevas em que pontificavam umas dezenas de sobreiros, tochas gigantes a sumir-se num estralejar mirífico e portentoso que se fundia na noite. Um grupo assistia, cá de longe, encavalitado numa fraga vasta a servir de balcão ao espectáculo, armado de pás, machadas e sachos, sôfrego às labaredas a consumirem, uma a uma, as árvores centenárias. De onde em onde viam-se os pirilampos azuis dos carros de bombeiros vogando no meio do negrume sobreposto no laranja. Um rapaz, camisa meia rasgada por alguma ponta de esteva, chegava ofegante, olhar suado:
- Não se consegue fazer parar! O vento voltou e agora não se segura deste lado!
- Mas tu que andas praí armado em valente? Deixa arder que ninguém te paga para isso! Os bombeiros não andam aí?
- E nós não devemos ajudar?
- Ajudar, a quê? Os sobreiros não são nossos, não fomos nós que chegámos o fogo, não temos nada que ver com isto. O Menéres, que é rico, que venha cá! E também, a ele, não lhe faz diferença.
Um carro dos bombeiros passou mais perto, acertou com os faróis no grupo, assim descoberto no meio do mato como numa ilha de anedota e acelerou a roncar numa reduzida em direcção ao magote. Empoleirados no cimo, agarrados a um canhão de água, dois bombeiros distinguiam-se contra o clarão vermelho que refulgia nos capacetes e nas viseiras levantadas. O carro parou com uma oscilação que levantou poeira.
- Olha! – ouviu-se uma voz do grupo – eu não me importava de ir lá em cima pra que me ajudassem a segurar na mangueira!
- Mas, quem é aquela?!
- É uma bombeira!
- Estes são de Mogadouro! Caramba, andam cá muitos bombeiros!
- Ó menina, ó menina! Não precisa de mais um ajudante?
- Cala-te! Não vês que os outros podem não achar piada?
- Ora, isso que tem? Nós somos mais, não há que ter medo!
Um bombeiro que vinha dentro da cabina esticou a cabeça mais para fora para fugir à confusão das mensagens rádio que algaraviavam e perguntou:
- Daqui há algum caminho para a aldeia?
- Precisam de água para o depósito, é? – perguntou um dos do grupo.
- A gente queria era beber uma cerveja. Já há uma hora que andamos aqui e estamos cheios de sede.
- O caminho é por ali, detrás daquelas carrasqueiras, sempre prá direita.
- Obrigado.
Arrancaram com uma fumarada de gasóleo e poeira.
- Olha-me estes! Então os bombeiros podem beber em serviço?
- Por isso é que depois não são capazes de apagar os incêndios!
- Uma cerveja agora também não ia mal! Ó Artur, vai lá buscar uma grade à Zita. Traz cá para a gente.
- Pagas tú?
- Deixa na conta do Menéres! Hoje o incêndio é por conta dele!
- Olha que ele hoje não mete para aqui as botas!
- E pra quê? Mesmo que isto lhe arda inda vai ganhar a nota se meter um projecto. Mais lhe vale estar quieto.
- Os ricos têm sempre sorte!
- Anda que não é a mim que ele apanha para ir para ali!
- Está descansado que aqui não o vês, pá. Inda se fosse no Verão a medir a pilha da cortiça...
- Uma das pilhas! Praí eu ia! Podia ser que me desse sociedade! Agora práli pró fogo...
- Inda chamuscas as farrepas!
- Quer não que eu não gosto da minha farpela!
O incêndio recrudescia. Ouvia-se o crepitar, aumentava o clarão e o fumo, subia pela encosta o ruído de fritadeira que fazem as estevas e as urzes quando o calor lhes ferve as seivas e lhes rebenta os caules. O barulho mais intenso chamou a atenção do grupo que olhava todo na mesma direcção onde agora aumentava o vermelho, de que o vento levava pedaços céu acima, misturados com cinzas e fumos.
- Ele inda há-de ir ter aos pães dos da Paradinha. Os pobres. Aquilo já não vale muito...
- Se agora estávamos lá abaixo no Carril inda atalhávamos a algum coelho a fugir!
- Ou a algum porco! O ano passado o Zé Monte caçou um a fugir ao fogo de Malta.
- Eu inda comi um cacho desse!
- Deu-lhe um tiro?
- Qual tiro! Atirou-se a ele e cravou-lhe uma faca de mato entre as costelas que o tombou logo!...Isso sim, foi de ser visto!...
- E o porco não o feriu sequer?
- Não era grande e vinha já cansado, meio tonto…
- Ah! Assim está bem. Senão anda que o Zé inda se lixava, que os porcos com aqueles dentes haviam de o deixar pior que um Cristo!
- Com’ó cão do Zé Preto que quando foi da batida ficou co’as tripas de fora!
- E inda se safou! Eu quando os vi dar aquele dinheiro ao veterinário inda lho disse “mas pra que ides gastar? O cão vai morrer decerto! Deixai-o mas é!” E inda se safou, o lafrúzio!
Mais dois homens vinham a pé, ar cansado e roçadoura nas mãos, ignorando o grupo que se calou ao vê-los. Seguiram caminho adiante, meio curvados do esforço e dos anos que já tinham. Passado o resquício de respeito, o magote recuperou o pio.
- Bem, pessoal, vamo-nos mas é para a aldeia que são horas. Assim como assim inda podemos ver o programa das garinas na SIC.
- E elas são boas! Na sexta passada aquilo era material...
- Calai-vos lá! Material do melhor era o que Talas trazia há dias no BM quando parou no Feira Nova. Aquilo sim!
Assobios.
- Pois o que tu querias era ter uma mula dessas, ó Chamusco! Olha que dá muita despesa!
- Mas também dá rendimento! E mais que a minha a lavrar por aí!
- Ai isso é! Rende mais essa numa hora no bem-bom do que a tua à semana a lavrar sulcos!
- Mas também a minha contenta-se com feno e erva enquanto que as outras...
- Caramba, desgraçam um homem! Olha o Zé Ruivo: foi-se a elas, andava por lá uma dessas de alto sustento que era de Braga...
- Era brasileira!
- Não era nada, era dessas russas ou romenas...
- Então foi outra porque esta era de Braga...
- Não era! Porque enteimas? Era brasileira!
- Então não era aquela que aparecia no Duque...
- Não, pá! Essa era das de Bragança, do Abano! Esta, a do Zé Ruivo, era de Braga...
- Caramba que és teimoso! Era brasileira!
- Mas tu viste-a, foi?
- Não só a vi como ainda lhe botei as mãos...
- Aaaah! Então tu também ajudaste à festa do desgraçado!
- A mim lixou-me duzentos contos! Em quinze dias!
- Pois o Zé ficou sem mais de mil! Teve que vender o lameiro das Lagas.
- E ficou sem a mulher que lhe fugiu com os filhos para casa da mãe!
- Quanto a isso não sei se foi mal se foi bem porque com um pau de virar tripas como aquela rabujona ele não ia longe!
Gargalhadas.
- Eh! Pá, olhai lá além ao fundo: é um carro a arder?
- Não, não. É o sobreiro da Mesa que acabou de tombar e está a arder.
- Mas está lá mais qualquer coisa...
- Ai está, está...
- Ah! Já sei! É o carreto do teu tio que estava debaixo.
- Ena, pois é! E ainda este ano lhe tinha posto tábuas novas e uma folha de zinco!
- Já não volta a dormir lá com a Marquinhas!
- Vamos embora ou não? Já tenho a garganta seca.
- Vamos! Pode ser que ainda lá estejam as bombeiras de Mogadouro!
Saltaram da fraga abaixo, dois dos que estavam mais na beira. Entretanto, uma luz de faróis varreu o grupo e quando chegou mais perto, a vir do caminho da aldeia e a roçar pelas carrascadas, percebeu-se que era um Range Rover.
- Altamente! Quem é que mete para aqui um jeep destes?, disse um dos que ainda estavam em cima.
Abriu-se o vidro do condutor e uma pronúncia só levemente à Porto, saída debaixo de um boné de padrão inglês, perguntou:
- Se faz favor dizem-me, para ir para a clareira dos Quatro Caminhos é por aqui, não é?
- É sim, sempre para baixo até ao rio e depois um desvio à direita ao pé de uma fraga grande.
- Estão para lá os bombeiros – acrescentou outro -, vai ver logo as luzes.
- Estão a bombar água de um fundão que há ali...
- Eu conheço esse sítio, só não tinha a certeza de se poder lá chegar por aqui. E vocês não vão lá dar uma ajuda?
- Nós?!
- Sim, davam jeito. Está-se a tentar evitar que o fogo passe para os centeios da Paradinha.
- Bem... mas daqui lá...
- Entrem aí para trás. Apertados, cabem todos!
Foram todos, arrumadas as pás, machados e sachos na bagageira, os seis amontoados no banco de trás, emudecidos, a sentir o perfume de uma mulher nova que ia ao lado do condutor. O rádio tocava o Oceano Pacífico da RFM. Houve um que se atreveu:
- O senhor é de Macedo?
- Nem por isso. Sou do Romeu, da Casa Menéres.
- Deixa arder! Deixa arder, que é do Menéres!
- Sai daí que ainda te chamuscas, ó palonço!, deixa arder, que é do Menéres!
O incêndio lavrava feroz na encosta de cá do rio, um mato denso de tojo e de estevas em que pontificavam umas dezenas de sobreiros, tochas gigantes a sumir-se num estralejar mirífico e portentoso que se fundia na noite. Um grupo assistia, cá de longe, encavalitado numa fraga vasta a servir de balcão ao espectáculo, armado de pás, machadas e sachos, sôfrego às labaredas a consumirem, uma a uma, as árvores centenárias. De onde em onde viam-se os pirilampos azuis dos carros de bombeiros vogando no meio do negrume sobreposto no laranja. Um rapaz, camisa meia rasgada por alguma ponta de esteva, chegava ofegante, olhar suado:
- Não se consegue fazer parar! O vento voltou e agora não se segura deste lado!
- Mas tu que andas praí armado em valente? Deixa arder que ninguém te paga para isso! Os bombeiros não andam aí?
- E nós não devemos ajudar?
- Ajudar, a quê? Os sobreiros não são nossos, não fomos nós que chegámos o fogo, não temos nada que ver com isto. O Menéres, que é rico, que venha cá! E também, a ele, não lhe faz diferença.
Um carro dos bombeiros passou mais perto, acertou com os faróis no grupo, assim descoberto no meio do mato como numa ilha de anedota e acelerou a roncar numa reduzida em direcção ao magote. Empoleirados no cimo, agarrados a um canhão de água, dois bombeiros distinguiam-se contra o clarão vermelho que refulgia nos capacetes e nas viseiras levantadas. O carro parou com uma oscilação que levantou poeira.
- Olha! – ouviu-se uma voz do grupo – eu não me importava de ir lá em cima pra que me ajudassem a segurar na mangueira!
- Mas, quem é aquela?!
- É uma bombeira!
- Estes são de Mogadouro! Caramba, andam cá muitos bombeiros!
- Ó menina, ó menina! Não precisa de mais um ajudante?
- Cala-te! Não vês que os outros podem não achar piada?
- Ora, isso que tem? Nós somos mais, não há que ter medo!
Um bombeiro que vinha dentro da cabina esticou a cabeça mais para fora para fugir à confusão das mensagens rádio que algaraviavam e perguntou:
- Daqui há algum caminho para a aldeia?
- Precisam de água para o depósito, é? – perguntou um dos do grupo.
- A gente queria era beber uma cerveja. Já há uma hora que andamos aqui e estamos cheios de sede.
- O caminho é por ali, detrás daquelas carrasqueiras, sempre prá direita.
- Obrigado.
Arrancaram com uma fumarada de gasóleo e poeira.
- Olha-me estes! Então os bombeiros podem beber em serviço?
- Por isso é que depois não são capazes de apagar os incêndios!
- Uma cerveja agora também não ia mal! Ó Artur, vai lá buscar uma grade à Zita. Traz cá para a gente.
- Pagas tú?
- Deixa na conta do Menéres! Hoje o incêndio é por conta dele!
- Olha que ele hoje não mete para aqui as botas!
- E pra quê? Mesmo que isto lhe arda inda vai ganhar a nota se meter um projecto. Mais lhe vale estar quieto.
- Os ricos têm sempre sorte!
- Anda que não é a mim que ele apanha para ir para ali!
- Está descansado que aqui não o vês, pá. Inda se fosse no Verão a medir a pilha da cortiça...
- Uma das pilhas! Praí eu ia! Podia ser que me desse sociedade! Agora práli pró fogo...
- Inda chamuscas as farrepas!
- Quer não que eu não gosto da minha farpela!
O incêndio recrudescia. Ouvia-se o crepitar, aumentava o clarão e o fumo, subia pela encosta o ruído de fritadeira que fazem as estevas e as urzes quando o calor lhes ferve as seivas e lhes rebenta os caules. O barulho mais intenso chamou a atenção do grupo que olhava todo na mesma direcção onde agora aumentava o vermelho, de que o vento levava pedaços céu acima, misturados com cinzas e fumos.
- Ele inda há-de ir ter aos pães dos da Paradinha. Os pobres. Aquilo já não vale muito...
- Se agora estávamos lá abaixo no Carril inda atalhávamos a algum coelho a fugir!
- Ou a algum porco! O ano passado o Zé Monte caçou um a fugir ao fogo de Malta.
- Eu inda comi um cacho desse!
- Deu-lhe um tiro?
- Qual tiro! Atirou-se a ele e cravou-lhe uma faca de mato entre as costelas que o tombou logo!...Isso sim, foi de ser visto!...
- E o porco não o feriu sequer?
- Não era grande e vinha já cansado, meio tonto…
- Ah! Assim está bem. Senão anda que o Zé inda se lixava, que os porcos com aqueles dentes haviam de o deixar pior que um Cristo!
- Com’ó cão do Zé Preto que quando foi da batida ficou co’as tripas de fora!
- E inda se safou! Eu quando os vi dar aquele dinheiro ao veterinário inda lho disse “mas pra que ides gastar? O cão vai morrer decerto! Deixai-o mas é!” E inda se safou, o lafrúzio!
Mais dois homens vinham a pé, ar cansado e roçadoura nas mãos, ignorando o grupo que se calou ao vê-los. Seguiram caminho adiante, meio curvados do esforço e dos anos que já tinham. Passado o resquício de respeito, o magote recuperou o pio.
- Bem, pessoal, vamo-nos mas é para a aldeia que são horas. Assim como assim inda podemos ver o programa das garinas na SIC.
- E elas são boas! Na sexta passada aquilo era material...
- Calai-vos lá! Material do melhor era o que Talas trazia há dias no BM quando parou no Feira Nova. Aquilo sim!
Assobios.
- Pois o que tu querias era ter uma mula dessas, ó Chamusco! Olha que dá muita despesa!
- Mas também dá rendimento! E mais que a minha a lavrar por aí!
- Ai isso é! Rende mais essa numa hora no bem-bom do que a tua à semana a lavrar sulcos!
- Mas também a minha contenta-se com feno e erva enquanto que as outras...
- Caramba, desgraçam um homem! Olha o Zé Ruivo: foi-se a elas, andava por lá uma dessas de alto sustento que era de Braga...
- Era brasileira!
- Não era nada, era dessas russas ou romenas...
- Então foi outra porque esta era de Braga...
- Não era! Porque enteimas? Era brasileira!
- Então não era aquela que aparecia no Duque...
- Não, pá! Essa era das de Bragança, do Abano! Esta, a do Zé Ruivo, era de Braga...
- Caramba que és teimoso! Era brasileira!
- Mas tu viste-a, foi?
- Não só a vi como ainda lhe botei as mãos...
- Aaaah! Então tu também ajudaste à festa do desgraçado!
- A mim lixou-me duzentos contos! Em quinze dias!
- Pois o Zé ficou sem mais de mil! Teve que vender o lameiro das Lagas.
- E ficou sem a mulher que lhe fugiu com os filhos para casa da mãe!
- Quanto a isso não sei se foi mal se foi bem porque com um pau de virar tripas como aquela rabujona ele não ia longe!
Gargalhadas.
- Eh! Pá, olhai lá além ao fundo: é um carro a arder?
- Não, não. É o sobreiro da Mesa que acabou de tombar e está a arder.
- Mas está lá mais qualquer coisa...
- Ai está, está...
- Ah! Já sei! É o carreto do teu tio que estava debaixo.
- Ena, pois é! E ainda este ano lhe tinha posto tábuas novas e uma folha de zinco!
- Já não volta a dormir lá com a Marquinhas!
- Vamos embora ou não? Já tenho a garganta seca.
- Vamos! Pode ser que ainda lá estejam as bombeiras de Mogadouro!
Saltaram da fraga abaixo, dois dos que estavam mais na beira. Entretanto, uma luz de faróis varreu o grupo e quando chegou mais perto, a vir do caminho da aldeia e a roçar pelas carrascadas, percebeu-se que era um Range Rover.
- Altamente! Quem é que mete para aqui um jeep destes?, disse um dos que ainda estavam em cima.
Abriu-se o vidro do condutor e uma pronúncia só levemente à Porto, saída debaixo de um boné de padrão inglês, perguntou:
- Se faz favor dizem-me, para ir para a clareira dos Quatro Caminhos é por aqui, não é?
- É sim, sempre para baixo até ao rio e depois um desvio à direita ao pé de uma fraga grande.
- Estão para lá os bombeiros – acrescentou outro -, vai ver logo as luzes.
- Estão a bombar água de um fundão que há ali...
- Eu conheço esse sítio, só não tinha a certeza de se poder lá chegar por aqui. E vocês não vão lá dar uma ajuda?
- Nós?!
- Sim, davam jeito. Está-se a tentar evitar que o fogo passe para os centeios da Paradinha.
- Bem... mas daqui lá...
- Entrem aí para trás. Apertados, cabem todos!
Foram todos, arrumadas as pás, machados e sachos na bagageira, os seis amontoados no banco de trás, emudecidos, a sentir o perfume de uma mulher nova que ia ao lado do condutor. O rádio tocava o Oceano Pacífico da RFM. Houve um que se atreveu:
- O senhor é de Macedo?
- Nem por isso. Sou do Romeu, da Casa Menéres.
textos transferidos
Por uma questão de coerência e uniformidade, vou transferir para adriveinmycountry alguns textos que se encontram também no blog d'O Sol, afim de estarem de algum modo compreendidos pelo mesmo conjunto espacial, tal como o estiveram na concepção. Não o vou fazer com os que foram repescados de textos publicados e que trunquei propositadamente aqui e ali conforme fui necessitando naquele espaço.
Aliás, vou deixar o blog d'O Sol para meros apontamentos ou alguma intervenção propositada - o que não faz com que sejam menos importantes! Às vezes um apontamento é tudo!
Estarão entre esses trasladados o Fogo!, Os Foguetes, O Kaladrium, etc., todos os que têm um cunho mais familiar ou conterrâneo.
A ideia é ir revendo-os e daí que, ao longo do tempo, possam vir a sofrer algumas modificações que as sucessivas revisitações venham a fazer...
Aliás, vou deixar o blog d'O Sol para meros apontamentos ou alguma intervenção propositada - o que não faz com que sejam menos importantes! Às vezes um apontamento é tudo!
Estarão entre esses trasladados o Fogo!, Os Foguetes, O Kaladrium, etc., todos os que têm um cunho mais familiar ou conterrâneo.
A ideia é ir revendo-os e daí que, ao longo do tempo, possam vir a sofrer algumas modificações que as sucessivas revisitações venham a fazer...
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
Ontem fui à Travessa da Espera
Anteontem e ontem estive em Lisboa a tratar de assuntos diversos relacionados com uma das minhas actividades e, mesmo em cima da hora de me vir embora, passei pelo Bairro Alto onde me aguardava o meu filho Vicente por causa de uma mudança de móveis. Uns cunhados meus foram viver para Nova Iorque e deixaram vago um terceiro andar/águas furtadas na Travessa da Espera. Ficam num edifício com história, familiar e não só, e no qual a Mariana e eu, no rés-do-chão, passámos os dois primeiros anos depois de casarmos. Chega-se ao dito terceiro andar por umas escadas que existem no miolo do prédio, sobre as quais uma enorme clarabóia deixa cair luz a jorros. Já junto ao telhado, todos os aposentos são cheios de luz, também, com janelas grandes, mirantes sobre as telhas e vidraças de trapeira. Havia sol e, dentro, todos os aposentos estavam e estão com aquele ar de abandono, falhos de móveis, trastes espalhados, restos de papelada, algumas estantes e armários vazios. Na entrada há ainda o espaço dos bilhetes de recados com alguns punaises a prender folhinhas e aqui e ali ficou nas paredes esta ou aquela moldura, alguns bibelots pelo chão, bric-à-brac por todo o lado, abandonado deste lado do Atlântico. E livros.
Umas poucas dezenas de livros ficaram numa pilha e nuns caixotes de cartão. A Giulia e o Pedro tinham dito que os poderíamos levar. Peguei nuns quantos e trouxe-os. Dois deles, em tamanho dos mais pequenos, chamaram-me a atenção pela capa e há um que me tem feito hoje companhia. Já o folheei e comecei a ler durante a hora de um teste de anatomia que há bocado dei aos alunos. Chama-se Family and Friends, é de uma Anita Brookner, que desconhecia até ontem,e é daqueles que apetece ler de um ápice, que se tem pena de o não ter escrito e que só falta ser comestível: na capa um retrato de Klimt, daqueles que o génio dele faz das mulheres seres etéreos, reais ainda, pintados com cores que são tudo menos cores, são só sensibilidade e riqueza interior. A capa é um detalhe do retrato de Gertha Felsövanyi, pintado em 1902 e que está numa colecção privada da Galeria Welz, de Salzburgo. Ainda por cima, dos de bolso e guardado meses e meses, senão anos, sem ser aberto, tem aquele cheirinho característico dos livros ingleses de bolso antes dos químicos do papel reciclado.
Estou agora com imensa vontade de ler o livro todo (187 páginas), de saber quem é Sofka e o que irá acontecer a Frederick, a Alfred, a Mireille e a Babette (Mimi e Betty) e de saber onde é que a autora desencantou a foto com que começa o livro, uma foto que não vemos mas de cuja descrição parte todo o enredo.
É que é um gosto enorme observar fotos, entrar dentro delas, descobrir e cumprimentar as pessoas que lá estão, viver nas situações, experimentar as alegrias e dramas que chegam através dos olhares. Fotografias de sépia em que pego ou que vejo em computador e que me olham de uma forma inexistente mas, à sua maneira, também etéria, e me interpelam num silêncio e num olhar arrebatador como o olhar sensível e cheio de riqueza interior de um retrato de Klimt. Não me canso de olhar para a Gertha Felsövanyi, nunca me canso de um destes olhares de Klimt! Como será a Anita Brookner?
Eu ontem não sabia, ao andar com o Vicente, aposento a aposento, a imaginar como é que a empresa transportadora irá desmontar e trazer as estantes e cómodas e mesas que vamos trazer para aqui, que hoje iria estar com um puzzlle feito de olhares e a ler um livro escrito a partir de uma foto! Vou ter de mandar um e-mail à Giulia e ao Pedro! A dizer obrigado!
Umas poucas dezenas de livros ficaram numa pilha e nuns caixotes de cartão. A Giulia e o Pedro tinham dito que os poderíamos levar. Peguei nuns quantos e trouxe-os. Dois deles, em tamanho dos mais pequenos, chamaram-me a atenção pela capa e há um que me tem feito hoje companhia. Já o folheei e comecei a ler durante a hora de um teste de anatomia que há bocado dei aos alunos. Chama-se Family and Friends, é de uma Anita Brookner, que desconhecia até ontem,e é daqueles que apetece ler de um ápice, que se tem pena de o não ter escrito e que só falta ser comestível: na capa um retrato de Klimt, daqueles que o génio dele faz das mulheres seres etéreos, reais ainda, pintados com cores que são tudo menos cores, são só sensibilidade e riqueza interior. A capa é um detalhe do retrato de Gertha Felsövanyi, pintado em 1902 e que está numa colecção privada da Galeria Welz, de Salzburgo. Ainda por cima, dos de bolso e guardado meses e meses, senão anos, sem ser aberto, tem aquele cheirinho característico dos livros ingleses de bolso antes dos químicos do papel reciclado.
Estou agora com imensa vontade de ler o livro todo (187 páginas), de saber quem é Sofka e o que irá acontecer a Frederick, a Alfred, a Mireille e a Babette (Mimi e Betty) e de saber onde é que a autora desencantou a foto com que começa o livro, uma foto que não vemos mas de cuja descrição parte todo o enredo.
É que é um gosto enorme observar fotos, entrar dentro delas, descobrir e cumprimentar as pessoas que lá estão, viver nas situações, experimentar as alegrias e dramas que chegam através dos olhares. Fotografias de sépia em que pego ou que vejo em computador e que me olham de uma forma inexistente mas, à sua maneira, também etéria, e me interpelam num silêncio e num olhar arrebatador como o olhar sensível e cheio de riqueza interior de um retrato de Klimt. Não me canso de olhar para a Gertha Felsövanyi, nunca me canso de um destes olhares de Klimt! Como será a Anita Brookner?
Eu ontem não sabia, ao andar com o Vicente, aposento a aposento, a imaginar como é que a empresa transportadora irá desmontar e trazer as estantes e cómodas e mesas que vamos trazer para aqui, que hoje iria estar com um puzzlle feito de olhares e a ler um livro escrito a partir de uma foto! Vou ter de mandar um e-mail à Giulia e ao Pedro! A dizer obrigado!
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© Manuel Cardoso Outubro 2020 (Nota prévia: as fotos deste post não fazem justiça nem aos locais nem às cenas a que se referem ...
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Vidas de um veterinário no campo ©Manuel Cardoso 2.ª Edição, anotada e comentada, Lisboa, 2020. Introdução A primeira ediç...
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