segunda-feira, 19 de novembro de 2007

um dia de inverno

Tem sido um dia de Inverno. O primeiro, este ano. Chuva, vento e frio. Até agora tínhamos tido um Outono de esplendor marroquino: frio à noite com estrelas, calor de dia de sol, céu límpido até onde o horizonte chega. Hoje mudou tudo. Ficou afastada a que já se temia ser uma seca. Estamos a passar os meados de Novembro, hoje já são 19, verdade seja.
Tem sido um dia de neura. Contratempos logo de manhã, mais contratempos durante a manhã e mais ainda à tarde. Os da manhã foram de serviço, burocracias que me puseram especado na secretária a resolver problemas e me alteraram a agenda, já de si alterada por ter tido que mudar as aulas que deveria dar hoje, e me impediram de estar em representação numa visita de estudo sobre castanheiros, do Centro de Investigação de Montanha, do IPB. À tarde os contratempos foram mais chegados e mais difíceis: primeiro, o Vasco: caiu na escola ao escorregar com uma das canadianas com que anda por ter partido o joelho esquerdo. Fui buscá-lo, chovia a potes e estava abrigado num toldo de uma loja da rua da Chenop. Trouxe-o para casa, já se vê. Tinha acabado de acender a lareira quando me ligou o Carlos Mendes a dizer que um carro da Terras Quentes se tinha estampado na curva à entrada para o paredão da barragem do Azibo e que a Raquel e o João se tinham magoado. Falei entretanto com a Lília, que estava a caminho do hospital de Macedo, para saber exactamente o que se passava. Já me ligou do de Bragança (agora os doentes são obrigados a passear pelo IP4, que não é “nada” perigoso, para serem atendidos nas diversas valências de que precisam…) onde está de serviço o dr. Mourão (mas afinal quem a tratou foi o meu compadre e amigo dr. Afonso Ruano, nota a posteriori) que a vai tratar a, pelo menos, uma fractura da clavícula. O João, que ia a conduzir o automóvel, fez um curativozito e nada mais, por enquanto. Ao que parece, terão entrado na curva em excesso de velocidade e aquela curva não é para brincadeiras: o piso é em paralelo e eu mesmo já lá andei aos baldões mas sem consequências, há um ano ou dois atrás. E o que iam eles fazer hoje, num dia de chuva, naquela estrada? Pois iam a Limãos, onde andam a substituir o soalho da igreja e onde seria e será necessário inspeccionar o sub-pavimento, que está cheio de corpos enterrados, para averiguar do interesse arqueológico da questão.
Agora estou no sótão, vou corrigir testes, actualizar e-mails – e vou lá abaixo buscar uma cerveja!
Está vento, ouve-se sobre o telhado, em rajadas. Aguardo que me tragam cá a casa um cão, para tratar. Assim que tiver tudo resolvido volto aqui, para escrever. Até daqui a uns dias!

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O PEDIDO DE CASAMENTO


© Manuel Cardoso


Ensolarado e com calor, o doutor Carvalho subiu suavemente as escadas de cantaria da casa e disse a uma criada que o anunciasse ao senhor morgado. Vinha pedir a mão de uma das filhas de Sua Excelência. A conversa passava-se no salão grande e apanhava o morgado desprevenido.
- Oh, senhor doutor Carvalho, tenho que ouvir o que pensa a minha Josefa. Ó Josefa, ó Josefa!
Uma das criadas apareceu.
- O senhor morgado chamou?
- Chamei pela senhora. Onde está?
- A senhora foi só lá abaixo. Eu chamo-a já.
- Chama e diz-lhe que venha que está aqui o senhor doutor Carvalho. E arranja-nos aí qualquer coisa... o senhor doutor toma um chá frio com rodelas de limão? Talvez uma água acidulada... Eu também. Olha! Serve aí na sala de dentro que está mais fresco!
A Josefa chegou sem estranhar a presença do doutor apesar de ser a primeira vez que vinha ali a casa sem ser numa tarde de procissão e festa.
- Olhe, está aqui o senhor doutor Carvalho a pedir uma das nossas filhas para casar com o doutor Sousa.
- Qual delas?
- Ora, senhora D. Josefa, eu não me atrevo a escolher com qual das duas. Acredito que sendo ambas filhas e educadas por vossas excelências...
- Quanto a isso pode crer. E o meu marido? Que acha?
- Bem, eu, desde que a senhora esteja de acordo…
- Pois devo estar. E então, se tem que ser que seja com a mais velha, com a Cândida.
- Fico penhoradíssimo a vossas excelências!...
- Eu vou chamá-las.
Vieram como quem vem para fazer companhia ao chá e, depois dos cumprimentos e de se sentarem à mesa, a D.Josefa deu-lhes a novidade:
- O senhor doutor Sousa mandou fazer um pedido às meninas pelo senhor doutor Carvalho e o pai e eu achamos que seja a menina, Cândida. Vamos ter que pensar na resposta a dar... daqui a uns dias acertamos um prazo, senhor doutor Carvalho. Depois mandamos notícias.
Assim sem mais despediram o doutor Carvalho mas não sem antes este ter agradecido o chá com limão:
- Com este calor, sabe divinamente! Ainda por cima bebo-o como se fosse um brinde de bom augúrio ao futuro do meu querido amigo José e, evidentemente, da gentilíssima menina senhora dona Cândida!...
A Cândida nem piou durante o tempo todo. Apenas se exprimia com o olhar, surpreendidíssimo pelo inesperado.
- Ora, respondeu sacudida a D.Josefa, deixe-se dessas retóricas. Guardamos isso para um brinde a sério quando o José cá vier a casa... ele chama-se José Felizardo, não é?
- E se a senhora D.Josefa me permite, felizardo sê-lo-á mais ainda quando lhe der a boa nova...
- Não, não, doutor Carvalho! As novas dá-las-emos nós daqui a uns dias. Digamos que não dizemos que não. Aqui o senhor morgado e eu vamos acertar uns detalhes e depois mandamos recado.
Os detalhes demoraram bastante. O morgado escrevera a pedir notícias certas sobre o doutor Sousa e demais parentela. Recebera informações de Argemil e de S.Pedro de Padrela mas tardavam de Lisboa. Dizia-se que havia aí qualquer coisa e que o dr. Sousa até mudara de nome...
Tantas delongas enervavam o José Felizardo que, já desesperado, resolveu dirigir-se por escrito ao solar:

Ilustríssimo Senhor Morgado

Por intervenção do nosso amigo comum o Dr. Carvalho mandei pedir a V.Sª. a mão de sua filha mais velha por julgar que serei feliz realizando o meu casamento com ella.
Respondeu-me o medianeiro que V.Sª. annuía ao meu pedido; mas parece que tem havido defficuldades suscitadas depois dessa annuencia e que dahi tem resultado uma quase incerteza, da qual preciso sair.
Dão-se circunstâncias pelas quais necessito tomar com a maior brevidade uma resolução definitiva, e por isso nesta mesma data me dirijo ao nosso Revº. Abbade pedindo-lhe que me trate deste negocio com a seriedade que o caracteriso, e que me dê a resposta que preciso por toda esta semana sem falta. - No entanto entendi que me devia dirigir tambem a V.Sª. por este meio para lhe significar que me julgarei summamente feliz se V.Sª. me quizer dar a honra de entrar no número da sua família, e que muito desprazer sentirei se isso não chegar a realizar-se. Realize-se porem ou não, (o que, como já disse é necessario decidir no prazo indicado, ficando eu certo que no caso de se me não dar uma resposta é o mesmo que em nada se tivesse fallado ), digo faça-se ou não, eu sou e serei

De V.Sª.
Attº.D.or. e Ob.mo. Am.º e C.

Macedo, 17 de Julho de 1870

José Felizardo Rodrigues de Souza


O morgado releu a carta, pousou-a na mesa e ficou a pensar, olhando pela sacada as hortas onde uma data de gente se afadigava na rega, como iria poder apressar o assunto. De facto, o dr.Carvalho pedira uma das duas filhas em casamento. A Josefa sentenciou logo que seria a Cândida. O José soube-o logo, daí agora carregar na tecla. Porquê hesitar? Estavam esclarecidos os antecedentes do homem: um tio padre pagara-lhe os estudos em teologia e ele afinal apareceu bacharel em direito. Foi esperto. O país precisava mais de advogados, que tinha a menos, do que de padres, que tinha a mais. Mesmo as vozes sobre Lisboa, soubera-se: mudara de nome ao fazer o Crisma: chamava-se Felizardo José e passara a chamar-se José Felizardo. Modas.
Ainda antes da ceia falou no assunto à senhora.
- Temos que dar uma resposta, Josefa. Disse que era a Cândida, será a Cândida. Porquê agora tentar que seja a Ana Maria?
- Se o meu marido pensa assim, pois que seja. Chama-se o senhor Reitor e ele que venha cá com o advogado.
E vieram. Encontraram-se no salão grande da entrada os Morgados, o Senhor Abade, Reitor de Macedo e irmão dela e os drs., o José e o Carvalho. Em cima da mesa do centro, sobre uma salva de prata, estavam uma garrafa de cristal em balão e um velho cálice de vidro grosso da fábrica do Rato. Conversas feitas, o Morgado encheu o cálice de aguardente:
- Pois que então seja à saúde da nossa filha e do senhor doutor que lhe vai ser o marido!
Deu um golo e estendeu-o à D.Josefa. A seguir foi cheio de novo e desta vez foi o Abade Tomás Aquino a fazer a saúde. Bebeu em dois tragos. Cheio outra vez, coube ao pretendente fazer um agradecimento e saudar os donos da casa e a menina Cândida.


Tiveram um casamento feliz mas com um desfecho trágico. Ainda hoje existe o cálice do pedido, preciosamente guardado no armário dos vidros da sala de jantar. Na foto, o casal em 1872.

domingo, 4 de novembro de 2007

Latães

©Manuel Cardoso

A aldeia é pequena mas tem um nome erudito. Virá de “latanes”, em latim, aquilo que está escondido.

Já foi há uns anos. Manhã de novena de bofarra (diz-se por aqui que a bofarra, o nevoeiro, quando vem com o frio do inverno, dura uma novena!), tinha ido à aldeia tratar de um animal qualquer. Não me lembro qual, porque o que se passou a seguir apagou-me essa memória. Nesse tempo, eu deslocava-me de jeep nas deambulações pelas aldeias, um UMM Alter II cheio de audácia, capaz de façanhas de que tenho saudades. Como tivesse que seguir para Corujas, aldeia vizinha, e por alcatrão fosse uma grande volta, perguntei como poderia atravessar pela serra, poupando caminho. Lá me explicaram. Mas, ou porque não visse a derivação com a bruma, de tão densa que estava, ou porque me parecesse mais batido o caminho que subia – quer-me parecer hoje que uma providência feliz, de qual trasgo benfazejo!, me dirigiu então – fui seguindo por umas rodeiras, no meio de giestas, que em breve esmoreceram a pista e se apagaram. Contudo, a luz estava mais forte no meio do cinzentão do dia e eu segui, sempre a subir, tombando as plantas com uma aceleração a baixa velocidade, explorando o terreno.
De repente, momento de revelação e plenitude!, dissipou-se a névoa e fiquei num alto, luminoso e fantástico!
Um mar de nevoeiro estendia-se sob um sol brilhante, céu azul puro, serras ao longe, quilómetros e quilómetros ao longe!, como se fossem ilhas: Bornes, Santa Comba, Marão, Alvão e Padrela; de Espanha, S. Mamede, os Montes de León com La Cabrera – a nossa Sanábria – escondidos atrás da Nogueira. Tudo nítido, numa nitidez absoluta. Parei o jeep. Saí.
Ar frio. Luz, uma luz intensa, uma luz imensa. Entre mim e as serras, o nevoeiro, branco, fantasticamente branco e a mover-se, como num filme. Uma imensidão mesmo. Só, ali, numa nesga de espaço, terreno breve de restolhada de centeio, um carvalho e um sobreiro a pontificar neste ponto mais alto da Serra de Ala, Alturas de Latães, como confidentes de um episódio que era partilhado comigo. Uma emoção tão grande como a paisagem. Tudo inesperado. Porquê naquele dia e ali só eu entre a terra e o céu? Talvez do frio que corria numa aragem cheia de emoção, limpei duas lágrimas. Que lugar tão bom para fazer uma casa!
Passaram-se anos.
Vivíamos na baixa de Macedo, no rés-do-chão da casa de família, lugar aconchegado mas a antítese: pouca luz, horizonte a morrer logo a metros, no muro do quintal e nos telhados do velho palheiro e na antipatia dos telhados dos vizinhos.
Numa ida à Escócia, lugar maravilhoso que para sempre me ficará memorável, tinha podido recordar-me vezes sem conta daquele meu episódio trasmontano. Havia muitos cenários parecidos, era quase o mesmo que Latães mas com castelos! Semanas depois de regressarmos, como sequela de um estiranço em Aberdeen em que andámos quase oito quilómetros a pé para descobrir onde ficava a velha catedral e a visitar, a Mariana adoeceu com uma pneumonia. Que se veio a transformar numa pneumonia de repetição. O médico aconselhou apanhar sol, muito sol. Lembrei-me então das fragilidades dos pulmões dos gémeos prematuros, da necessidade do sol, senti vontade de mudarmos de casa. Lembrei-me do terreno de Latães.
Para aqui viemos. Construir a casa foi o cumprimento de um desígnio. Pagá-la-ei ao longo da vida. Um fardo que terei para sempre? Talvez antes um sonho que viverei para sempre, um sonho que começou na manhã em que atravessei de jeep de Latães para Corujas pela primeira vez.
Tem estado soberbo o horizonte, este Outono. Vê-se tudo até ao fundo, como dessa vez. Ainda hoje estive a ver o pôr-do-sol, alguns aviões a riscar o céu – que a essa hora fica tingido de um violeta que só aqui! – e a respirar fundo. Os tons estão verdes, demasiado verdes ainda, folhas que teimam em não cair e de amarelos atrasados. Há mesmo algumas flores! Estarei a viver do lado de lá / de cá do espelho?????

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O VINHO DAS ARCAS

© Manuel Cardoso

Nas noites de inverno nas aldeias da Terra Fria de Trás-os-Montes, desde tempos imemoriais que se afugenta o gelo com um copo de um vinho excelente que acalenta a mais necessitada das almas. É um vinho que surpreende. Um forasteiro desprevenido, dado o primeiro golo e sentido o sabor forte e aromático, imediatamente é assaltado por uma dúvida evidente: se nestas aldeias altas e frias as vinhas não passam de pequeníssimas manchas nalguma encosta mais soalheira e mal dão uns cachos de uva miúda e agridoce na maioria dos anos, como é possível um vinho destes, graduado, rescendente? “Comprado!”. Mas o dono da casa exprime, orgulhoso:
- Esse foi pisado na nossa casa!
- Ah, tem vinhas...
- Não, não. Compramos as uvas.
Ainda hoje, nas aldeias da Serra de Nogueira se mantém este costume de comprar as uvas lá em baixo, em zonas da Terra Quente, e trazê-las para cima para fazer o vinho.

Ora, conta uma lenda antiga que, certa vez, levado um pipo com as primícias desse ano para Braga, ao Arcebispo, então senhor destas terras do leste do seu território, este terá perguntado:
- De onde são as uvas que tão bom vinho dão?
- De Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!

Esta história é curiosa não só por enaltecer as qualidades das uvas de que falamos mas porque delimita uma área geográfica que corresponde ao que foi o extinto e velhíssimo concelho de Nozelos e que hoje está repartido pelas três freguesias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão. Os terrenos destas três evoluem em encostas abruptas sobre o rio de Macedo e a ribeira de Ferreira, sendo que ambos confluem no vale de Nozelos e que constituem um microclima onde amadurecem as uvas que tão bom vinho dão.

São antiquíssimas as referências ao néctar deste lugar. Já o foral de Agrochão, dado por D.Dinis em 5 de Julho de 1288, manda cobrar como imposto a quarta parte do vinho, medido pela medida de Nozelos. Mais tarde, D.João II, doa a João Teixeira de Macedo, alcaide mor de Montalegre, a 30 de Maio de 1484, as rendas de pão, vinho e aves da terra de Macedo e Nozelos com as aldeias de Arcas, Vilarinho do Monte e Vilarinho de Agrochão.

Ora, no centro da área deste antigo concelho de Nozelos há um planalto breve que tem a extensão necessária para nele se esticar uma aldeia ao sol, a meio da qual se ergue, orgulhoso, o Solar das Arcas, dos Pessanhas. Orgulhoso de quê? Se mais não tivesse de quê, bastar-lhe-ia o vinho, o tal bom vinho que as uvas dão!

O microclima das Arcas fica entre duas regiões vinícolas célebres: o Douro e Vinhais. Se da primeira é supérfluo qualquer comentário, da segunda há que dizer algo. O nome já diz ser terra de vinhedos, vinhal, vinhais. Tradicionalmente, desde o Império Romano segundo alguns autores, foi essa a sua riqueza e, durante séculos, forneceu a zona interior e meridional da Galiza de vinho acabado e mandava aguardente para o Douro e para o Porto. Um geógrafo espanhol, Mendez da Silva, escrevia no tempo da União Ibérica: “es un valle de muchas viñas, donde se origina el nombre”. Um outro doutor coevo, Francisco de Monçon, que, sendo madrileno, viveu na corte de Portugal durante o século XVI, dizia que os portugueses se podiam gabar de ter vinhos que competiam com Alemães e Flamengos e cuja qualidade os suplantava mesmo, nomeadamente os de “Vinhais e outros”.

As crises do oídio e da filoxera arruinaram as vinhas desta região e, ao contrário das do Douro, nunca mais se recompuseram totalmente e perderam as posições de mercado. Estes vinhedos eram paredes-meias com os das Arcas e hoje, debruçados sobre o mapa, não sabemos bem se estas eram uma continuação daqueles e uma sua sobrevivência ou um prenúncio do Douro a cuja sorte viriam a estar ligados.

O solar das Arcas teve uma garrafeira fabulosa. Foi constituída e apurada ao longo do século XIX por Manuel de Almeida Pessanha, grande lavrador, viajado em França e introdutor de inovações, Governador Civil de Bragança e Par do Reino, e mais tarde continuada pelo seu genro, Francisco de Assis Pereira do Lago, Visconde das Arcas. Sucessivas partilhas e outros descaminhos foram-na minguando à formiga. Restam hoje algumas raras garrafas, das anteriores às crises do oídio e da filoxera que dizimaram as antigas cepas. O autor destas linhas pode orgulhar-se de, numa tarde, há uma trintena de anos, no jardim solarengo dos Cortiços, ter provado, apreciado e ouvido uma explicação com devoção sentida, de um vinho seco, decantado e arejado de uma garrafa fosca, colada com um rótulo de uma cercadura azul e manchado, muito manchado e bolorento mas onde se distinguia perfeitamente numa caligrafia castanha escrita à pena: ARCAS 1832 !

A crise do oídio que começou em meados do século XIX deu uma machadada grave nos vetustos vinhedos nacionais mas não fez esmorecer a energia empreendedora da casa das Arcas que leva a fama dos seus produtos até Lisboa a tal ponto que Garcia de Lima, na sessão da Câmara de Deputados de 8 de Junho de 1863, afirma que os vinhos brancos das Arcas são tão bons como os do Douro. Nas Cortes bebia-se vinho das Arcas. Na década seguinte esta fama é justamente reconhecida além fronteiras e, mesmo para lá do Atlântico, os vinhos são premiados nos Estados Unidos da América no concurso internacional de Filadélfia em 1876.

A filoxera devastou todo o país a partir da década de oitenta mas foi num ápice que o Visconde, perspicaz a prever a situação e conhecedor dos métodos modernos de cultivo, fez reconverter as vinhas, possibilitando mesmo que, durante anos, todo o termo das Arcas estivesse integrado na região produtora de mostos de vinho do Porto. Replantou e soube manter os adagues ao abrigo das pragas. Não houve mortórios desolados no termo das Arcas!

E hoje, ao percorrer-se este canto de Trás-os-Montes em que a paisagem apresenta extensões de abandono recente, de incêndios revoltantes ou de matos silvestres onde crescem a preguiça e a crise económica, deparamos com um pequeno microclima de vistas insólitas, matas ordenadas ao pé de vinhedos lavrados, encostas abruptas trabalhadas com teimosia, gentes cavando um chão avaro mas que lhes dá, não o sustento porque agora já se não vive disso, mas um orgulho especial, orgulho que ali foi plantado imemorialmente, apurado pelos Pessanhas e que se materializa no tal vinho surpreendente, de aroma forte e agradável e que inevitavelmente coloca na boca de quem o beba:

- De onde são as uvas que tão bons vinhos dão?
- Das Arcas e Nozelos, de Vilarinho de Agrochão!


Bibliografia:
1.Alves, Francisco Manuel, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança.
2.Pires, Armando Valfredo, O Concelho de Macedo de Cavaleiros.
3.Oliveira, Artur Águedo de, O surpreendente testemunho do Doctor Francisco de Monçon 1544
4.Costa, António Luís Pinto da, A questão do Alto Douro e a exportação de Vinhos do Porto (1865-1909) in Brigantia vol.X nº3
5.Ilustração Portuguesa
6.Gazeta das Aldeias

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

O rapto da Tia Dores

© Manuel Cardoso

(As cenas passaram-se com o século XIX já a bem mais de meio.)

Uma manhã de caça a salto e extraviada arrastou o José Manuel desde Alvites até ao Brinço. As perdizes tinham saído de feição, tal como o compadre as prometera, a esvoaçar nas restolhadas, à frente do focinho dos perdigueiros. Parecia que adivinhavam o caminho. Uma vez aqui, outra vez ali, o bando passava sobre os freixos do ribeiro, atravessava o valezito para além, subia pela encosta a desaparecer nos adagues de uma vinha amarela.
- Ó compadre, de quem é esta vinha?
- Isto já é do casal do senhor Abade...
- Então tem um grande casal!
- Grande?! Tem muitas terras aqui, olivais em Alvites, em Vilarinho do Monte, em Vale de Lagoa e na Açoreira, sortes no Vimieiro e na Carrapatinha, lameiros em Ala e em Meles...
- Caramba!
- Tanto como ele só o casal grande, de Ala! O lagar do Brinço só para a casa trabalha ao mês!
Um tiro, logo mais outro, ele mesmo descarregou a espingarda. Com o segundo caiu uma, das do bando mais próximo. Duas tinham ficado mais longe, os cães farejavam-nas numas silvas encostadas a um muro alto. Era o muro da Tapada, uma propriedade dos Lopes obrigatoriamente disputada em partilhas e onde um rebanho pastava os galhos de uma fila de amendoeiras podadas para dar a folha aos animais. Um dos perdigueiros trouxe mais uma perdiz. O José Manuel levava já um cinto bem composto, uma meia dúzia delas e uma lebre que lhe tinha saltado quando saíra duma leira pousada e entrara numa restolha. Estava feita a manhã.
Entraram no Brinço com garbo. O pequeno grupo dava nas vistas: ele com botas e chapéu suíço, calças à montador e cartucheira de cabedal engraxado onde reluziam as fivelas polidas e as cápsulas de latão dos cartuchos St.Étienne, o compadre com o seu chapéu da América, uma das abas revirada, camisa branca de folhos com o colete de caça e cartucheira à bandoleira, como no tempo dos Cabrais em que se bandeava com os Pessanhas. Dois moços, colete lavado e camisas de manga enfonada, levavam-lhes as espingardas e cuidavam dos cães, cauda espetada e focinho à procura das cadelas da terra.
A aldeia preguiçava numa manhã serena. Não se via ninguém. As casas de xisto sombrio e telhas ferrugem permaneciam mudas e quedas. Apenas se ouvia o chiar longínquo de uns carros de bois. Foram andando e deram a volta defronte da Casa do Passadiço, como quem não quer a coisa. Nada. As janelas estavam abertas mas nem uma renda buliu. Estranho. A menina estava avisada. Ele mandara um bilhete, tinha sido claríssimo a combinar aquele encontro casual...
- O compadre tem a certeza...
- Absoluta!
Na rua à esquerda da Igreja estava, ao fundo, a fachada caiada da casa dos senhores e, mais perto, a casa ocre da taberna do Chico com a sua varanda de madeira pintada de zarcão com linhaça. Encaminharam-se para lá. De umas pipas lavadas de fresco, que secavam à sombra de um chorão, espairava-se um cheiro meio a mosto e meio a vinho vinagre.
- Chico, ó Chico!
- Lá vai! – ouviu-se uma voz a vir dos fundos e logo acudiu, a limpar as mãos a um pano, olhar semicerrado de vir para a claridade.
- Olha! Mas é o compadre Zé e o menino Zé Manuel!? Ena, e trazem cá uns cintos!
- Já vimos desde Alvites! Era para ficarmos por lá mas atrás de um bando fomo-nos chegando para aqui...
- E chegam-se muito bem! Eu já os atendo. Rebentou-se-me para ali uma pipa e tenho andado nestes trabalhos mas já os atendo... ó Maria! Ó Maria!
Ouviu-se um “que é l’á?” sumido.
- Anda cá e põe ali um pano naquela mesa. É só um instante, amigos. Isto num esfregante fica tudo nos trinques!
- Tenha calma, homem, temos tempo.
- Não se vê ninguém na aldeia... estão todos a dormir?
- Estão para Meles. Há lá um enterro, da Ti Antónia, já velhinha, e como ainda tem por aí uns primos e parentes, lá foram. Os carros ainda saíram há pouco.
- Então, e foram todos, foi toda a gente?
O Chico hesitou por momentos na resposta.
- Nem todos foram para o enterro, está bem de ver. Daí da casa nem foi ninguém… da do Passadiço também não foram, quero dizer, o senhor Padre foi, tinha de ir para os ofícios, mas o pessoal ficou por aí, a casa até está aberta…
- Então, e a menina Maria das Dores? Ficou cá?
- Eu disso não sei bem, quero dizer, sei que não está cá.
- Ai não está cá?
- Não está.
- Então, onde está?
- Então, compadre Zé, diga-me cá: não foi só pelas perdizes que voam que vieram até aqui! Sempre é verdade o que se diz pela terra. Aqui o menino Zé Manuel é que quer fazer de perdigão... e logo à menina Maria das Dores!
- Ó menino! O que vai arranjar! – ouviu-se a voz da Maria, atentíssima à conversa e incapaz de suster o desabafo.
- Cala-te, mulher! Que é que tens com isso? O menino não leve a mal... as mulheres gostam sempre de meter a colherada. Mas diga-me: é sério? O senhor Morgado e a sua mãezinha, a senhora dona Josefa, dão licença? Que eu não tenho nada que ver...
A mulher entrou outra vez na conversa:
- O senhor Abade ainda vai consentir, vai ver. Ora, famílias tão ilustres...
- Então, se a menina Maria das Dores não está... então está aonde?
- Bem, saíram logo cedo. Parece que foram pô-la em Fornos, nas Oblatas. Diz que é para estudar, para aprender...
Nas freiras! Tinham-na ido por nas freiras e logo em Fornos de Ledra, aldeia pedregosa e pobre, longe de tudo! Estudar, estudar! Para isso que a pusessem em Braga ou no Porto! Agora ali, sumida na tacanhez poeirenta de uma aldeola, de umas paredes de pedra com janelas sem vistas para lado nenhum que não fossem mais pedras e umas oliveiras que se espremiam a custo para dar um azeite turvo!



O Abade de Ala era fulminante nos discursos. E intolerante nas opiniões. Arrebatava um mundo numa hora de pregação – e não se comovia nem pestanejava pelos que não convencia. Gostava de ter por perto os que com ele concordavam e os outros, os irreconciliáveis, ficavam-lhe para sempre na mira de um ajuste de contas político. Gabava-se de ser um homem de corpo inteiro e, por isso, a Maria das Dores nunca lhe constituíu um estorvo: era a filha que seria sua herdeira. E que herdeira! Mas logo havia de se ter embeiçado por aquele fidalgote de Macedo, o filho do Morgado! Que lhe diziam dele? Caçava, ia pelas feiras com o pai, passava os dias a ler... ainda se lhe desse para estudar! Mas diziam-lhe que só lia escritores! Poesias e romances! Ainda por cima nunca seria morgado: o Mousinho acabara-lhes com o privilégio. Que ele lá tinha uns cabedais, os pais acautelaram-lhe as libras e fizeram-lhe uma casa grande ao lado do solar, para rendimento... Mas não! Quando os anos passassem tudo iria sumido no tempo gasto em livros, no desleixo e nas viagens de folga ao Douro e a Chaves, nas ervas a crescer e a afogar olivais e prados.
“A menina que faça as malas!” - Ia estudar que bem precisava, depois dava-lhe um dote e que procuraria poiso com alguém mais conforme.
- Oh, Padrinho, se calhar quer-me casar com algum viúvo já de cabelos brancos!
- E se fosse? Pelo menos era alguém que eu já lhe conhecia a vida, não era como esse, esse...
- Que é que ele tem? Ideias políticas diferentes... vive noutra época, só isso.
- Só isso?! Só isso?! Começa logo porque é mais novo! Sim, um miúdo!...
- Ora, Pai! A mãe dele é mais velha catorze anos que o pai dele!
- Hmmm!



(As Oblatas de Fornos de Ledra eram uma casa que começara para ser grande, raízes esticadas a beber bom húmus em pleno tempo de D.Miguel, mas a que as vicissitudes dos anos seguintes, em que preponderara o anticlericalismo violento sinuoso do século dezanove, estiolaram a prossecussão do objectivo. O convento, como lhe chamava o povo, foi-se aguentando com algumas internas 'filhas-família' de fidalgotes sovinas ou com menos rendas para as mandar para Braga ou para o Porto, e tirava partido de se encontrar no meio de um deserto cultural imenso já que outras casas religiosas das imediações iam já extintas na voragem liberal. Passava-lhe perto uma antiga estrada romana e que agora era a estrada real da Torre para Bragança. O convento desapareceu com os alvores da república. Ficou um edifício de granito, grande para a aldeia em que as casas são tão acanhadas como era a visão do mundo das gentes, com uma igreja de paredes meias e um jardim onde cresciam ervas medicinais e aromáticas. Deram-lhe o destino de servir de palheiro e nesta condição albergou uns republicanos 'rojos' fugidos das falanges na guerra de Espanha, na segunda metade da década de trinta do século vinte. Um descuido destes inflamou a palha e o feno lá guardado e o edifício ficou reduzido às paredes num incêndio memorável. Depois disso ainda lhe puseram um telhado... e agora no interior vivem umas pessoas e criam-se porcos!)

 
No tempo da tia Dores ainda o convento era das Oblatas e foram elas quem lhe ensinaram o que as meninas aprendiam: umas letras, umas contas, uns bordados e pinturas. Ensinavam também como lidar com os homens: ser submissas para poder mandar neles. Daí que, quando o Zé Manuel lhe apareceu com o plano mirabolante de fugir do convento e lho explicou detalhe a detalhe, ela tenha concordado logo. Só não entendia aquela necessidade de se esconderem durante umas horas debaixo da ponte de pedra dos Vilares.
- Então?! É para ser como no Alexandre Dumas!
- Ah!, pronto, está bem, está bem, como o Zé Manuel achar melhor!...
Esta troca breve de palavras foi num assomo rápido à porta da capela numa visita que ele veio fazer. Tinha tudo previsto. Estava tudo acertado. Até a Madre Superiora, prevenida por um bilhetinho a embrulhar uma meia libra para as intenções do convento que lhe mandara a D.Josefa, mãe do José Manuel, tinha concordado em só mandar fazer uma busca a cavalo e mandar notícias para o Brinço duas horas depois do fim da missa. Os fidalgos de Mascarenhas tinham concordado em recebê-los lá e em ficar com a Maria das Dores até se aplacar a fúria com que o Abade receberia o aviso. O compadre viria até Fornos com a égua ruça à arreata a acompanhar as meninas de Lamalonga que vinham à missa e, à saída, trariam com elas a Maria das Dores. Não daria nas vistas. Eram conhecidas e amigas. Na estrada de Vila Nova é que se apartariam. Aí estaria ele à espera. Depois seguiriam para Mascarenhas a galope. Teriam que parar na ponte dos Vilares.
E pararam. À espera deles estava um moço que tinha chegado, havia nada, da taberna dos Vilares.
- Então?
- Estavam lá, sim, iam sair depois de mim. Mas não trazem pressa. Os cavalos já vêm cansados e devem só vir a trote e devagar.
Esconderam-se debaixo de um dos arcos, os cavalos tinham-nos posto a pastar num lameiro mais abaixo, tapado por uma volta do renque de freixos e choupos do rio. Sentiram o trote das montadas a passar. Eram três. O Abade mandara os seus três criados a bater a estrada menos provável. Que não lhe restava senão aceitar os factos. Na véspera, ainda recebera uma inesperada carta dos Morgados de Macedo, a pô-lo ao corrente que o filho tinha intenções de casar com a Maria das Dores e que ambos tinham para isso a sua bênção, que ela para todos os efeitos passaria a ser sua filha.
O som das ferraduras foi esmorecendo. Saíram debaixo da ponte, curiosos e muito excitados com tudo aquilo. Perscrutaram a estrada para ambos os lados. Nem vivalma! Foi ela quem falou:
- Então, José Manuel?
- Viu isto? Viu isto? Tal como eu previ! Tal como no Alexandre Dumas!

As folhas de chá

© Manuel Cardoso

O senhor morgado tinha ido a banhos. Estivera uma semana no Moledo do Douro e antes de regressar a casa dera ainda uma saltada de dois dias ao Porto para ver as vistas e trazer uns embrulhos para as senhoras. Já no fim da volta ainda passara na Chinesa e comprara chocolate, café e uma lata de chá, um chá oriental cujo aroma - “cheire só, senhor morgado, depois de o provar a sua netinha não vai querer doutro!” - já produzia efeito. Fizera as compras, despachara uns assuntos, telegrafara para casa a dizer que já ia e metera-se no trem na Campanhã, depois de meia hora de caleche desde a baixa. Tinha tido um tempo esplêndido mas a partir da Régua o céu cobrira e o ar, apesar de Setembro estar no início, arrefeceu. O trasbordo no Tua fez-se já com uma chuva persistente e depois até Mirandela, noite entrada, foi um crescendo de pingos que não esmoreciam. De fora da estação, num negrume que não se distinguia do vapor do combóio em manobras, esperava já a diligência, veículo temível coberto de oleados a pingar. O morgado e o Alves, que o acompanhava desde o início da jornada, acomodaram-se como puderam no interior acanhado.
- Safa, uns dias tão bons acabarem assim!
- E vamos com calma, senhor morgado, ainda nos esperam umas horas até Macedo!
Esperavam, de facto, e mais ainda quando a uma milha do Vilar de Ledra, à saída da ponte de pedra, a traquitana oscila para o lado, bate na guarda e empena o eixo mesmo rés-vés ao cubo da roda. Os viajantes apanharam um susto, saíram e avaliaram a situação. Desatrelaram-se os cavalos para ir por ajuda. Um grupo meteu-se a pé até ao Vilar, à venda da Rosa, onde se faziam as mudas. Neste grupo foi o senhor morgado, levando na mão apenas a mala pequena onde cabia uma camisa, o estojo da toillette, o das colónias, e onde se comprimia a um canto a lata de chá para a sua neta Micas.
Que alívio, chegar à venda da Rosa! Velha matrona trombuda que nunca aprendera nada com os viajantes, ficara sempre rude como a mais rude das fragas. Valia-lhe ter a destreza de moça e a força de um homem pelo que servia ali no ofício de trocar as parelhas quando passavam as diligências. Ele evitava-lhe o poiso sempre que podia. Mas hoje, pelo menos, estava ali a seco e agora com vagar podiam comer qualquer coisa. O lume, a um canto, estralejava giestas e estevas.
O moço de fretes da Rosa, tão atarantado como ela pela chegada inoportuna de tanta gente que vinha para se instalar, não parava de um lado para o outro a acender os lampiões, a espevitar com a tenaz os guiços incandescentes. Que, normalmente, as pessoas vinham só de passagem, mudavam-se os cavalos e seguia-se adiante, os passageiros só bebiam um trago e pronto. Porque é que não se tinham aviado em Mirandela?!
O atraso já era muito, e, também, quem esperava ter de se parar aqui?!
- Ó mulher, também não se aflija que a gente só quer abancar para comer! E paga-se! Não vai de fiado!
- Ora pois! Secamo-nos aqui ao borralho e num par de horas mal será se da vila não nos mandam uma carroça qualquer para seguir de viagem! Entretanto dê-nos aí um petisco a trincar!
- Mas que lhes hei-de dar? Não tenho cá nada, hoje foi feira na vila, já por cá passou muita gente!...Só se lhes der bacalhau! Umas lascas. Que não o tenho de molho...
Ao morgado não lhe apetecia bacalhau. Estava moído da viagem, aborrecido dos contratempos, enjoado de estar ali enfiado naquele buraco mal iluminado por lampiões de azeite, fedendo a vinho estragado e a bacalhau passado. Mas que fazer?!
- Olhe, ó Alves, vamos aqui a uma cartada com estes comparsas de viagem.
- E bebemos o quê, entretanto?
- Ora eu levo aqui um chá da China que vão ver, meus amigos, é um chá dos deuses! – e, pegando na lata colorida de tons castanhos e encarnados escritos a preto, estendeu-a à Rosa para que lhe fizesse aquele chá – Veja bem a senhora, nunca cá teve um chá destes, tome lá e faça-o aí! Só com o cheiro vai-se a fome! E acompanhe-o com umas torradas! Faça aí umas torradas que com o chá vão que nem sonhos!
À terceira ou quarta volta de cartas já o aroma fino se sobrepunha e o senhor morgado urgia:
- Então esse chá, vem ou não vem?
- Está quase, senhor morgado! Não demora nada!
A tisana tardava mas o jogo corria bem, os naipes vinham de feição e o morgado entusiasmava-se:
- Que cheirinho, hem?, ó Rosa!
Passou ainda um bocado mas finalmente sentiu-se a chegada da matrona.
- Ora aqui bem o tchá da tchina com turradas!
Com gesto satisfeito de dever cumprido, deixando um rasto fumegante de cheiro inconfundível, a Rosa pousou um prato manchado de faiança grosseira onde um monte de chá cozido à maneira de esparregado se erguia cercado por torradas de centeio. O morgado, pousando as cartas e arregalando a surpresa para evitar a explosão de mau génio, só articulou em lamento:
- O meu chá para a Micas!...
- Cheira bem e cozidinho! Está aí todo – diz a Rosa - , e mais que não é muito!
- E a água, o que fez à água de o cozer?
- A água?! Para que é que o senhor morgado queria a água?! Temos cá binho! Era para sopa?
- Mas o que fez à água?
- Ora, a água foi para a vianda dos porcos!

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

A Pulseira de Prata

© Manuel Cardoso

Quando foi preciso reparar o fecho do cordão de ouro e os brincos de esmeralda da D.Josefa, o senhor morgado, Bernardino José, aproveitou a boleia e comprou no ourives uma pulseira de prata de dois aros torcidos para uma das suas favoritas de travesseiro, a Custódia do Vilar.
Ofereceu-lha numa noite especial para aplacar os cuidados e medos em que ela andava porque sabia que o seu irmão, de maus bigodes para aquele romance, apregoara na praça que, na próxima vez que o morgado fosse lá a casa, lhe daria a ele desanda tamanha que a D.Josefa demoraria uns mêses para lhe consertar os ossos.
E com efeito, nessa noite, em casa da Custódia, ainda mal aquecido o colchão, ouviu-se um burburinho nas escadas da varanda. Ela começou com lamúrias baixinho mas ele, espadaúdo de ombros e mais ainda de alma, levantou-se, vestiu-se, ajeitou o coldre do St. Étienne para o ter à mão, pôs o chapéu de abas e apertou calmamente os alamares de prata do vasto capote de saragoça. Desenfiou do bolso a sua navalha de lâmina de Toledo. Ela benzeu-se. Ele abriu a porta.
Uma dúzia de homens dispunha-se escada abaixo, vultos contra a parede, degraus de granito de esfrega clareando com o luar. Ficaram-se todos por um silêncio que tudo dizia e o morgado desceu os degraus um a um, lâmina refulgente a fingir que limpava as unhas, cotovelos para os lados a avolumar mais o capote. Já no último degrau, com um assobio, chamou o moço que, num palheiro adiante, lhe guardava o cavalo. Dobrou a navalha, enfiou-a no bolso e, num garbo que lhe era reconhecido:
- Senhores, boa noute vos dê Deus!
Atarantados, enrolaram umas “boas noutes senhor morgado” que não saíram em uníssono. E toda a raiva que os juntara ali ficou esvaída em respeito, um respeito atávico resumido naquelas palavras.
#
A D.Josefa não tinha ciúmes. Depois de lhe dar quatro filhos voltara-se para ele e dissera-lhe que já chegava, que estava cumprida a sua parte. Enfiara-se na alcova da sala pequena e não mais lhe visitou o quarto, um quarto enorme e frio de tecto lavrado e de paredes forradas com telas largas e graves de santos. Ele respeitou-lhe a vontade e obedeceu-lhe mais como filho que aceita do que como marido que compreende. Mais novo catorze anos do que ela, era-lhe difícil contrariar a senhora que o levara ao altar com um dote de truz. Ainda por cima cheia de força apesar de seca e pequena, e de capacidades, ou não herdara do tio, Abade de Medrões, confessor privado dos Marqueses de Fronteira, uma inteligência de assombro? Era ela quem administrava a casa, contratava e despedia, decretava ordens aos caseiros das quintas mais longe, recebia rendas das aldeias onde tinham foros, negociava as madeiras e os animais, cobrava os juros das letras de empréstimos, executava a liquidação destes nos casos arrastados e insolúveis. Ela fazia tudo.
De forma que a ele sobrava-lhe tempo. Para ir às feiras e arraiais, à caça e às visitas aos amigos, que tinha muitos – e às saias, que tinha algumas. Mas guardava à sua Josefa um grande respeito e, até, afeição. No bolso do colete trazia sempre um medalhão forrado de veludo, dentro do qual se estampava a figura magestática da sua Josefa. Trazia-a sempre junto ao peito como uma raridade extravagante e todas as outras lhe tinham admirado já o passe-partout que se abria e que, no centro de uma cercadura de bronze, tinha o daguerreotipo da fidalga pintado com um vestido de seda, brincos de ouro e olhar de Miranda.
A par dessa aparente tolerância em matéria de raparigas, ela tinha-lhe definido claramente duas ou três linhas de intransigência: nada de se meter com casadas; nada de jogatinas ou bebedeiras de perder o tino; nada de jóias para as amantes. Com o seu nariz de feitio administrador, sobretudo este último ponto lhe era importante já que “a desforrar-se de capital, que o desforre na família. Prata, ouro e jóias, só cá para dentro, para poder ser herdado – se for para o resto, perde-se e diminui-nos!”.
Levavam assim uma vida de harmonia, ele deixando-a mandar e ela aturando-lhe as aventuras e as manias – que tinha algumas. Fidalgo desde sempre, afinara um bom sentido para a mesa e tinha um paladar apurado. Ela era intransigente em matéria de contas – ele era-o nos cozinhados.
Um dia, sentado à mesa, chega-se-lhe uma travessa de ervilhas. Espetou o garfo. Saltaram para um lado e para o outro.
- Ah, não estão cozidas! Então hoje temos balas! – disse, mais alto de modos a que se ouvisse na cozinha.
Pegou na travessa, atirou-as ao chão fazendo logo correr os seus galgos de caça a farejar o chouriço.
Com estas, a D.Josefa deitava as mãos à cabeça. Porque não queria que o marido tivesse queixas de casa. Queria-o bem vestido, bem alimentado, bem contente. Era, por isso, um drama quando havia reclamações de cozinha e ela logo avançava corredor adiante a dar descomposturas e a provar das panelas não fosse a cena repetir-se.
“Olha lá, Efigénia, cozeste as batatas com a cebola lá dentro como gosta o senhor morgado? Uma cebola para três batatas? Ouve lá, Ricardina, o caldo do senhor morgado foi mexido com a colher de prata?”, pormenores que ele notava.
Então este da colher de prata era um mistério e um superlativo que fizera fama e sobre o qual havia, até, apostas. Em casa dos Sarmentos ele provara de dois caldos verdes e logo afirmara, sem margem para dúvidas, qual é que tinha sido mexido com a colher de pau e qual é que tinha sido mexido com uma colher de prata.
#
Depois de uma ausência para a feira de Chacim, chegado ao solar num fim de tarde, foi informado por um dos criados que a senhora saíra, levara a égua branca e fora também o menino José Manuel no Riscão. Tinham ido ao Vilar. Tinha vindo recado a dizer que morrera a Custódia. O senhor morgado sentiu um súbito calor.
- Morreu a Custódia!? E que foi lá a fazer a senhora?
- Não sei, senhor morgado.
Em casa também não sabiam. Só havia recado que pela noitinha a senhora estaria de volta. E esteve, o tempo de ele fazer um semicúpio e mudar de roupa.
- Então, Josefa, que foi a senhora fazer ao Vilar?
- Apresentar pêsames e contribuir para o enterro.
- E para isso não estão lá os nossos primos?
- Estão mas não estão para tudo. A coitada morreu, o resto já não interessa. Vou ver como estão as coisas pela cozinha.
Ele percebeu a não-conversa. Deixou-a ir. Falariam mais tarde sobre a morte da Custódia.
Na cozinha era tanta a azáfama como a fumarada.
- Clementina, já começaram com o caldo? Hoje mexe-lo com a colher de pau, a queimada.
- O senhor morgado hoje não ceia, senhora?
- Ceia, ceia... ceia e bem!
- Mas vosselência...
- Mas que é isto? Fazes porque eu mando e pronto. E sou eu que lho sirvo, ouviste?
- Sim, senhora.
Ao estar pronto, tirada a tampa da panela de tripé a fumegar, foi a fidalga quem se ocupou de o lançar no prato.
O morgado começou a comer o caldo pelas bordas, escaldava. Sorveu e ficou pensativo. Havia ali qualquer coisa... provou outra vez. Havia ali um travo a madeira... mas não. O gosto não era o de sempre mas era impreciso o defeito, não lhe parecia ter faltado a colher de prata. Talvez de estar tão quente. Pousou a colher. Todos achavam que sim, que estava muito quente. Esfarelou uns miolos de pão para arrefecer. Recomeçou a comer. Topou qualquer coisa no fundo, sob as couves.
A D.Josefa, em pé ao lado dele, aguardava.
Com a colher tacteou melhor e levantou, surpreendido e boquiaberto, envolvida nos fios das couves, uma pulseira de prata de dois aros torcidos.